[crônica] A Casa Enevoada (ou a imagem sem voz)

Você já encontrou uma lembrança de infância esquecida? As minhas são, quase todas, desagradáveis. Prefiro desviar da maioria dessas memórias com o mesmo cuidado instintivo que me impede de tocar panelas quentes e chutar quinas de móveis. Você pode concluir que as três coisas acontecem de vez em quando.

A lembrança que encontrei, nove dias atrás, no entanto, se comportou no sentido contrário de machucar e assustar. Depois de uma hora e meia hora de conversa com minha mãe e de simultâneo monólogo do meu pai meio caduco, uma aventura apareceu no meio da serração daquele interior de Minas Gerais.

Logo aos pés de uma pedra escura e oval de quase trezentos metros de altura, se estendia a rua principal do Berra Onça, um bairro nos limites da cidade. Após a última rua transversal e sem saída, acabavam os paralelepípedos e começavam as chácaras, plantações, currais e o grande descampado terraplanado que viria a ser a área de eventos do município. Na segunda das sete casas daquela rua, morávamos eu e a parte da família que ainda não conseguira se libertar da maldição que enraíza as pessoas naquele solo infértil e ácido. Todas aquelas casas, construídas na década de 1970, seguiam o mesmo padrão de varandas com muretas baixas, telhas de terracota e pintura em tons pasteis de rosa, azul ou verde. A exceção era a primeira residência da rua, que já possuía laje de concreto e onde morava um filho único mimado, chorão e agressivo, como devem ser os príncipes. Mas, não é dessa casa que pretendia falar.

Uma ponta dessa rua terminava numa mureta, que servia para instigar as crianças a atravessarem o córrego por detrás. A outra ponta dava para a rua principal, na qual casas mais antigas e mais novas se encarapitavam na base do morro, quase grudadas na grande pedra. Nas manhãs de serração mais densa, essa fileira de pequenos sobrados era a última a aparecer. Uma dessas casas demorava mais a entrar em foco e, me arrisco a dizer, estava sempre enevoada.

Diferente das reformas ordenadoras que transformavam tudo em caixas de concreto e alumínio, a casa enevoada parecia feita só de barro, tijolo, madeira e prego. Esticada e desconjuntada, apertada quase sem respirar, ela se dividia em três patamares desproporcionais e o mais alto devia ser apenas um pequeno cômodo baixo com um óculo colorido em cada parede. Algumas janelas eram mais esticadas, outras eram quadradas, mas todas eram de madeira entortada pelo tempo.

A Casa Enevoada, 2018, nanquim sobre papel, 21×14,5cm

Ao lado direto do bloco que dava para a rua surgia um portão pequeno e gordo, o qual dava acesso a uma escada estreita, que quebrava para a direta, depois para a esquerda e terminava num pequeno quintal.

Esse quintal era coberto por telhas onduladas mal instaladas, remendadas com pedaços de plástico e de latas de óleo. Ali não havia muito espaço, pois depois de uns dois metros já começava a pedra preta, antecedida por uma barreira de capim. A umidade acumulada por essa mistura de madeira velha, barro, a eterna sombra da pedra grande e o pouco espaço, fazia com que houvesse limo e mofo em cada canto. Se você conseguisse destravar o portão enferrujado e superar os degraus escorregadios até o quintal, ficaria com receio de se sentar nos tamboretes escuros e moles. Menos que isso! Talvez você não soubesse onde se sentar, em meio ao acúmulo de panelas manchadas, móveis improvisados, canecos, copos, xícaras, garrafas e embalagens espalhadas pelo chão de terra batida. Caso você encontrasse a trilha por onde caminhar, poderia se incomodar com o cheiro dos pedaços de carne, pendurados por arame nas vigas do telhado, com as moscas que iam e vinham entre os cortes frescos e os cortes secos de patas de porco, ou com o calor intenso que emanava do fogão a lenha sem te dar distância para não suar. E se você fosse como as outras pessoas da região, iria se incomodar com a velha manca, de boca deformada, que mexia o tacho cheio de gordura.

Todas as crianças do bairro sabiam que ela era uma bruxa. Todos os adultos diziam para não chegar perto da casa da velha louca-cigana-macumbeira. As mães sempre ficavam de olho nas brincadeiras de fim de tarde, pois era quando a velha atraía a molecada corajosa com pedaços de carne de porco, retirados do sebo que usava para fazer sabão. No Cosme e Damião a atenção era redobrada para evitar que qualquer audaciosa atravessasse o portão a procura dos doces, que a velha sempre deixava numa bacia na entrada do quintal. Se você se demorasse lá dentro, não voltava mais e se desse muito mole, era certeza que ia virar sabão.

Nunca vi a Dona Bruxa sair da casa. Não me lembro de a ver sequer descer as escadas. Tenho uma nítida imagem da velha, formada pelas várias manhãs em que a visitava, ganhava pedaços de carne seca e tomava café em frente ao fogão a lenha, antes de seguir para a escola. Ainda assim, não me lembro de sua voz.

Quando veio a bronca de minha mãe e a proibição de comer daquela carne ou subir aquelas escadas, parei de visitar a Dona Bruxa. Isso teve um resultado curioso.

Na manhã do dia em que nos mudamos daquela ponta da cidade para outra, por novamente não pagarmos o aluguel, eu acordei cedo e fiquei na esquina por um bom tempo. Eu olhava para a rua coberta pela serração. Na medida em que o branco se desfazia eu percebi, sem susto, que a casa da Dona Bruxa havia sumido.

Décadas depois, eu compreendo porque ela não queria pisar nesse mundo, mas gostaria de poder convidá-la para mais um café.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s