Minerar Romantismo

Os conteúdos a seguir apresentam as etapas de um processo criativo simples, desagradável e gratificante. A proposta de criação coletiva que recebi era bem direta: você deverá compor um texto livre, que será enviado para alguém desconhecido; essa pessoa fará um trabalho poético em outra mídia, baseado no seu texto; simultaneamente, você receberá um texto sem autoria, produzirá algo a partir dele e, ao final, fará uma crítica desse processo.

Meses depois, o grupo de trinta e poucos participantes se reuniu, debateu a experiência e, enfim, soube o nome do autor do texto que gerou um longo GIF animado e a crítica do processo. Deixo esses três pontos, aqui, em ordem.

(esta postagem é o quarto ponto e, talvez, haja um quinto, caso transformemos isso num episódio no Não Pod Tocar)

Veganismo em um jogo virtual

Marcus Vinícius de Souza Costa

Um dia estava eu em um jogo virtual que costumo jogar e resolvi me fazer um desafio para tornar a experiência de jogo mais difícil e mais interessante. Tratava-se do famoso jogo Minecraft que se baseia em sobrevivência em um mundo aberto e infinito e simula biomas e ambientes com mistura de elementos de fantasia. Como o jogo é baseado principalmente na sobrevivência, e a fome é um elemento crucial, me propus a não me alimentar de animais, o que era tentador, já que no começo do jogo e com poucos recursos materiais, um campo repleto de vacas, porcos, galinhas e ovelhas era um meio fácil de adquirir alimento e fartura. Decidi então expandir o desafio não só a alimentação, mas também limitar o uso de itens em que se utilizasse em qualquer parte de sua produção, materiais adquiridos de origem animal. Adotei então uma posição de “veganismo integral” no jogo.

Apesar das dificuldades que o cultivo de plantas trazia, consegui me sair bem me alimentando apenas de pão do trigo que eu mesmo plantava ao lado de casa. O desafio surgiu mesmo quando monstros começaram a aparecer e me atacar durante as noites. Em sua essência, não são animais, mas são personagens que se caracterizam como seres vivos e que sentem dor ao serem atacados de volta. Porém sua própria existência trazia risco para a minha, já que eles são programados para atacar o jogador assim que são vistos. Em alguns momentos era possível fugir, mas em outros a única saída era matar. Ao contrário da vida real, quando algum ser vivo morria no jogo, eu não tinha a opção de deixar sua carcaça ali. Os itens derivados de seu corpo, vinham automaticamente para o meu inventário. Alguns itens particularmente bem úteis, como ossos que poderiam virar uma espécie de adubo para acelerar o crescimento do trigo que era minha principalmente fonte de alimentação. Aí começava meu primeiro conflito moral: se eu matei um ser, exclusivamente para minha defesa, e isso me gerou bens materiais que podem ser utilizados para poder sobreviver sem que fosse necessário matar mais seres, seria errado utilizá-los? Não seria mais errado desperdiçar tais materiais fazendo com que sua morte fosse em vão?

Depois de algumas pesquisas na internet e muitas mensagens trocadas com uma amiga sobre quais os principais objetivos do veganismo e como alcançá-los, descobri que o veganismo se tratava principalmente de não explorar a vida animal em prol da vida humana, logo, como aqueles polígonos virtuais não eram animais, nem meu corpo virtual era humano, decidi matar cada ser que se movia, ao meu alcance, e fazer um enorme banquete.

Obs.: nenhum animal foi ferido durante a produção deste texto.

 

 

“Minerar Romantismo”, GIF animado, 2018.

 

Desdobramento (de novo e mais uma vez)

Depois de alguns anos numa órbita elíptica em torno da designação “artista”, me vejo num desconforto consciente ao me auto induzir um processo poético. Essa frase besta e pedante resume o que vou escrever nas próximas frases e isso já é uma indicação de como entendo e pratico o trabalho com arte.

Assinalar artista como atividade formal foi, em vários momentos, a parte em que tive mais incerteza na apresentação de trabalhos. Eu penso no que realmente fiz para realizar aquilo que foi assinalado como arte. As funções sempre foram tão variadas e jamais realizei um trabalho sozinho. Outras pessoas e outras funções, as quais não domino nem de perto, sempre fizeram parte do caminho.

Outra incerteza é a suposta ideia de original. Nos anos de graduação, esse era um debate presente. Os discursos que afirmavam a impossibilidade de ser original se batiam com aqueles que defendiam certo ineditismo e autoria. Hoje, os dois lados me parecem bem infantis.

Aos poucos, percebi que qualquer ideia surgiria em diálogo com outra. Sem diálogo, não haveria movimento de ideias, menos ainda desenvolvimento de qualquer proposta, fosse poética ou não. Nenhuma ideia surgia completa e era necessário que outras cabeças encachassem peças, como num jogo de dominó com objetivo de jamais acabar com as pedras.

Em algum momento, essas ideias construídas em diálogos exigiam conhecimento técnico para poderem vir à tona e serem observadas. Então, personagens até então desconsiderados no diálogo poderiam aparecer para materializar ideias impronunciáveis. Dá pra notar, logo, que ao ganhar corpo, a ideia já havia mudado.

No meio disso, nunca senti que atingira propriamente o papel de artista, mas que, por vezes, minha órbita passava raspando e outras vezes se distanciava até quase perder contato. A imagem é mesmo essa: o artista como o black hole no centro de um sistema de agentes que se movimentam sem jamais querer estar totalmente no centro. Ser sugado pela identidade de artista significaria ser morto por esse sistema.

Hoje, ao receber um texto sobre veganismo e minecraft, provavelmente minha reação seria a de editor. Eu poderia revisar o texto, acrescentar uma frase esclarecedora, cortar alguns períodos repetitivos e tentar deixar a mostra o que me parecesse mais atraente da história.

Digo da história, pois essa foi a primeira característica que me absorveu. Já no primeiro parágrafo, me vi como um leitor de ficção que acompanha uma aventura e aguarda a surpresa. Não pude deixar de tratar aquele texto como um conto divertido e instigante.

Esse último adjetivo merece destaque, pois é o responsável pelo que vem depois, pelo movimento, pela vontade que move meu processo. Eu gostaria de responder com correções e com o incentivo para que aquele conto seguisse sua estrada de ficção. Nesse momento, me encontro com a diferença.

Eu não deveria aceitar o papel de editor, ou melhor, orbitar o papel de editor. A exigência para a leitura do texto era de que eu pensasse e produzisse um trabalho de arte a partir dele. Eu deveria me auto induzir a participar de um processo que já havia iniciado. Esse foi o desconforto, pois foi preciso abandonar uma órbita e migrar para outra. Felizmente, como foi dito acima, já havia um método a seguir.

Através do que entendo por desdobramento (e não vou aporrinhar esta leitura com mergulhos teóricos sobre isso), pude me deixar atirar para conteúdos que não estão indicados no texto. Quando digo “me deixar atirar”, considero que não há espaço para muita insegurança. O que esse texto me fez pensar? Quais memórias ele ativou? Que imagens ele trouxe a minha mente? Quais sons? Qual ímpeto de movimento? Quais livros? Quais outros trabalhos de arte? Quais momentos históricos? Quais fatos? Quais pessoas?

Para “me deixar atirar” é importante conter o desejo de procurar as partes ou frases do texto as que mais gostei, que mais me impactaram. Nada disso interessa. O que me impactou no texto, seja lá em quais pontos estiver, me trouxe algo, me fez pensar e sentir. O que eu pensei? O que eu senti?

Meu primeiro sentimento foi de diversão. Mas, não qualquer diversão. Eu senti vontade acompanhar aquela aventura? A aventura de uma personagem sem rosto, que descobre e tenta construir as regras de um mundo selvagem, artificial e meio cômico.

O sentimento seguinte foi de identificação com a dúvida. Quais os limites do controle sobre as regras do jogo? Quando é que as regras estabelecidas para romper com as regras do jogo se tornam impraticáveis ou até mesmo mais controladoras? Quem é esse sujeito que se aventura pelo artificial, com uma profunda vontade de controlar o mundo que lhe é dado e, simultaneamente, recusa esse controle numa guerra contra a artificialidade e a violência da dominação do ser humano sobre o restante da natureza? (que inferno de pergunta longa!).

Esse sujeito romântico parece nunca ter desaparecido de nós. Esse desejo de controle e independência, seguido de dúvidas insolúveis e vontade de desistir para não aceitar o contraditório como fim, parece tão atual! A personagem diante da natureza assustadora, o humano e o pós-humano, diante do mundo construído, destruído, artificial para quem o viu nascer, natural para quem veio depois… qual é a anti-regra, quando nada parece natural?

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Um pensamento sobre “Minerar Romantismo

  1. Pingback: NPT S01E05 – romantismo, veganismo e minecraft – NOTA manuscrita

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