[texto de processo] Mais para o fim da fila

Texto de Rodrigo Hipólito

 

Quando eu era criança e estudava na Escola Municipal Capitão Nestor Vieira de Gouveia, as crianças eram dispostas em fila para cantar o hino nacional brasileiro. Isso acontecia todos os dias. As filas eram organizadas por série e por classe econômica. As turmas de crianças mais ricas ficavam no centro, em destaque, e as turmas de crianças mais pobres ficavam nas laterais. Cada fila também possuía sua organização interna. As meninas mais bonitas (brancas), com roupas novas e limpas, dentes brancos, cabelos penteados e mochilas coloridas, ficavam na frente.

Se eu já notava essa diferenciação naquela época? Sim. E eu não era o único. Quando fui matriculado no pré-escolar, minha irmã mais velha interviu para que eu ficasse na sala das crianças mais ricas. Ela trabalhara como empregada doméstica na casa da diretora da escola e esta havia sido sua professora antes disso. No ano seguinte eu preferi ir para a sala das crianças pobres, que era um caos mais seguro.

Voltemos à fila de crianças e ao hino nacional. O hino nacional brasileiro é longo e meio difícil de decorar, apesar do ritmo contagiante. Havia certa competição entre as crianças para saber toda a letra e não errar as mudanças de trechos. Todos ficavam em posição militar com um braço de diferença entre os corpos. As meninas da frente pareciam saber toda a letra e suas vozes eram reconhecíveis na cantoria. Da metade da fila para trás, as bocas balbuciavam, balbuciavam até ficarem fechadas.

Após o hino nacional, as orações do Pai Nosso e da Ave Maria eram recitadas e nós seguíamos em fila para as salas. Aos poucos, essa segunda parte foi abolida, pois as crianças de família evangélica já não realizavam a reza. A divisão por castas permaneceu e, anos depois, quando voltei àquela cidade do interior para cursar o 2º grau, ainda funcionava do mesmo modo.

Em algum momento entre as copas do mundo de futebol masculino de 1994 e 1998, eu discuti com meus colegas e fui repreendido algumas vezes por professoras. Eu não via motivo para cantar o hino nacional e muito menos torcer para a seleção brasileira de futebol masculino, afinal, eu nem mesmo me interessava por futebol. Na minha mente infantil, eu já havia respondido à pergunta que lançava para colegas e professoras: por que eu sou obrigado a gostar de um lugar só porque nasci ali?

Se eu era uma criança precoce? Não. Eu apenas era mais uma criança pobre. A maioria das crianças pobres não possui o mesmo sentimento nacionalista que reside naquelas crianças que crescem com roupas limpas, presentes, brinquedos, cama, três refeições diárias, doces, videogame, bicicleta, mesada, mochila colorida e tênis. Certamente há algum sentimento nacionalista nas classes pobres. No entanto, esse sentimento está, muitas vezes, ligado apenas aos sonhos e sutis identificações criadas por símbolos propagandeados, como a ilusão de que todo o menino pode se tornar um jogador de futebol rico e famoso.

O sentimento nacionalista é algo variado, certamente, e foi inventado de modo distinto em cada contexto. Comunidades Imaginadas, livro de Benedict Anderson que já se tornou, há tempos, um clássico da Geografia, da História Comparada e outras áreas das Ciências Sociais, apresenta uma tese de como o nacionalismo haveria surgido nos países europeus, asiáticos e nos EUA. Há referências aos países latino americanos, mas de modo mais vago.

O ponto central é que os nacionalismos são imaginados. As ligações entre os milhões de indivíduos que compõem a população de um país não são tão fortes como o cobertor narrativo estendido sobre essa população. O capitalismo tipográfico, isto é, o sistema de valores estabelecido com o registro e disseminação de conhecimento publicado em um idioma oficial talvez seja o elemento mais poderoso da criação da ideia de nação.

Se reconhecer como parte de uma nação não é algo natural e muito menos automático. No caso dos países colonizados, esse processo de reconhecimento é ainda mais complexo. O nosso idioma oficial não é nosso, mas sim o do colonizador. Falar português não seria o suficiente para se dizer brasileiro. Como os negros escravizados e os indígenas roubados e assassinados construiriam identificação com uma nação criada sobre os corpos e o sangue dos seus parentes?

Passadas gerações, o Estado brasileiro continua a não apresentar uma aparência tão refletida de nação. É mais provável encontrarmos o orgulho e a defesa de um povo na identificação regional e na identificação étnica do que no patriotismo artificial daqueles que ainda querem exterminar os povos originários dessa terra. É mais provável encontrar o choro honesto e o grito palpável nas torcidas dos times locais do que na derrota e na vitória da seleção.

O sentimento nacionalista dos trópicos é dúbio e talvez jamais tenha suas disputas apaziguadas, como se finge ter acontecido nos EUA. A polarização de cenário político, alardeada, nos últimos anos, como se fosse uma surpresa, sempre esteve aí. No mínimo, nós formamos nações distintas. Uma nação roubada, explorada, assassinada e jamais liberta. Uma nação de herdeiros dos ladrões, exploradores, assassinos e ainda colonizadores.

Impedir a consciência dessa primeira nação é parte da tarefa executada pelas mãos da segunda nação. Sem consciência daquilo que as une, as pessoas da primeira nação estão sempre carentes de identificação e suscetíveis a abraçar bandeiras entorpecedoras, como ter um filho jogador de futebol ou ganhar um carro de Jesus Cristo.

Outra espécie de ilusão é mais cruel. Quando parte dos explorados está prestes a abandonar sua condição histórica, ela será convidada a ingressar na nação dos exploradores. Sem consciência de sua condição, esse convite parecerá uma vitória. No entanto, esse é um convite parcial, pois exige que essa parte renegue sua antiga condição de explorada, trabalhe contra seu povo e a favor daqueles que sempre se colocarão como superiores.

Essa polarização sempre esteve aí.

Eu odiei aquelas crianças brancas de roupas limpas durante toda a infância e adolescência. Talvez eu ainda as odeie, mas, hoje, há diferenças. Hoje, eu sei que não odiava especificamente aquelas crianças brancas, mas sim a obrigação de cantar o hino da nação delas, a obrigação de desejar a camisa da seleção delas, de torcer para o sucesso do país delas.

Em certa medida foi libertador, na medida em que cresci, compreender que o sentimento nacional não é natural. Anos depois, é aterrador perceber que as dúvidas que minha mente infantil cultivava se relacionam tão diretamente com o cenário que sou obrigado a encarar como adulto.

Hoje, outras dúvidas crescem aqui dentro, mas algumas certezas já foram colhidas.

O português é o meu idioma, mas não minha língua materna.

Minha nação originária foi destruída antes que eu existisse.

Minha nova nação está perdida em sofrimento e necessita de vozes que a faça ser consciente de sua condição.

Minha bandeira sempre será vermelha, banhada pelo sangue dos meus antepassados.

Referências

ANDERSON, Benedict R. Comunidades Imaginadas. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

HIPÓLITO, Rodrigo; OLIVEIRA, Alana. Identidade e Alteridade: atravessamentos históricos e estéticos. Não Pod Tocar S02E08, 21 Jul. 2019. 56:28 min.

PAIXÃO, Vivian; MACHADO, Liliane; SOARES, Marília Facó; AGOSTINHO; Mendison C.; ANASTÁCIO, Tiago B.; CARVALHO NETO, Damião; GASPAR, João C.; SALVADOR; Nailson P.; SERRA, Bernabé B.; SILVA, Lourdes A. Pesquisa em línguas indígenas: Tikuna. Língua Livre Podcast #06, 09Jul2019. 145 min.

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