[resenha] As pessoas e as Coisas, de Roberto Esposito

Yves Marchand e Romain Meffre. Série As ruínas de Detroit: Room 1605, Lee Plaza Hotel, 2008.

Texto de Fabiana Pedroni

Referência completa do texto resenhado: ESPOSITO, Roberto. As pessoas e as coisas. Tradução de Andrea Santurbano e Patricia Peterle. -São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2016.

 

Somente os objetos abandonados ou largados pelos armários – um par de sapatos, um boné de caça, saias desbotadas e casacos – conservavam a forma humana e deixavam entrever no vazio como outrora mãos ocuparam-se de colchetes e botões; como outrora o espelho refletira um rosto; refletira um mundo agora esvaziado no qual uma imagem se voltava, uma mão perpassava, a porta se abria, crianças entravam correndo aos trambolhões e saíam novamente. Agora, dia após dia, a luz voltava sua nítida imagem – como uma flor refletida na água – para a parede em frente. Apenas as sombras das árvores, florescendo ao vento, prestavam-lhe homenagem na parede, e por um momento escureciam o lago, onde a luz se refletia; ou os pássaros, voando, faziam uma leve mancha esvoaçar vagarosamente através do chão do quarto. WOOLF, Virginia. Rumo ao farol. Trad. Luiza Lobo. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, p. 139.

***

Era o primeiro dia após a morte de meu pai. O casaco que ele deixara sobre a cadeira aguardava seu retorno. Estirado para respirar, os braços caídos como que sem vida, o casaco esperava, melancólico, um retorno impossível. O valor da coisa não era mais o de uso, nem o de troca, não importava quanto e o que tivesse custado.

A coisa adquiriu nome próprio assim que encontrou um lar. O casaco readquiriu sua potência simbólica perdida quando era parte do amontoado de tecidos sem existência, entre outras peças sem nome e estocadas. Em multidão,[1] o casaco não era o casaco de meu pai, era apenas uma forma ordenada de tecido costurado. A cobrir o corpo, o casaco ganhou vida e moldou meu pai. O mundo passou a ser visto através dessa relação entre coisa e pessoa, entre a pessoa que possui a coisa e a torna viva quando esta não se resume a uma simples posse objetual.

Hoje, entendemos que não há uma simples posse. Qualquer posse diz respeito a um ato de dominação. Guardemos este ponto para adiante. Por ora, vale dizer que é na coisa que nascem nossas percepções mediadas através do corpo. O casaco, mesmo sem o corpo de meu pai, continua a significar, pois que meu corpo passa a provê-lo de capacidade simbólica. Meu corpo percebe o casaco, sua forma e utilidade, mas, antes de tudo, o percebe como a presença de meu pai. A coisa sobrevive à transitoriedade humana, como os objetos no quarto descrito por Woolf. A existência da coisa a mostra como objeto de técnica e elemento simbólico de relação com o sujeito que a apreende. O casaco ainda é um casaco, mas, o casaco de meu pai é um casaco melancólico.

Roberto Esposito, no livro As pessoas e as coisas (2016, p.107), nos fala dessa relação: “As coisas incidem sobre nós, pelo menos tanto quanto nós incidimos sobre elas. Do mesmo modo que as coisas não podem viver sem nós, nós não podemos viver sem elas”. Afinal, coisa e pessoa são definidas por seu negativo “coisa é a não-pessoa e pessoa é a não-coisa” (2016, p.16). A experiência dos “povos sem história” falava de uma recusa entre a dicotomia binária entre pessoa e coisa, assumida tão fortemente pela modernidade. Ao invés de se separarem com uma gigantesca lacuna, pessoas e coisas se misturavam.

[…] ‘as coisas possuem virtudes especiais e fazem parte dos seres humanos’ [Marcel Mauss][2] Elas entram em uma relação ao mesmo tempo protetora e arriscada com os homens que as trocam, chegando a marcar seu destino. Nas culturas bramânicas, a coisa até fala em primeira pessoa — doa-me, pede ao doador, receba-me, intima ao donatário, e depois devolva-me, se ainda quiseres viver. O lugar onde se exerce o poder da coisa e, ainda antes, sua metamorfose em pessoa, é o corpo dos indivíduos e das comunidades, das quais ela se torna uma componente interna (ESPOSITO, 2016, p. 110).

Mas, a modernidade, herdeira do direito romano e da filosofia grega, fortaleceram os entendimentos de coisa e de pessoa em uma dicotomia que permite a reificação da pessoa e a desmaterialização da coisa. No primeiro capítulo do livro, Esposito mostra como o direito romano define o estatuto da pessoa como aquela que possui a coisa, as quais as servem. Essa submissão da coisa se amplia para a relação entre uma pessoa que domina outra. Aquela que é dominada se aproxima ao estatuto da coisa (ESPOSITO, 2016, p. 23). O que articula esta relação entre pessoa e coisa é o corpo. O corpo que veste o casaco o personaliza, mas o corpo que “veste” uma pessoa, a reifica. Após a modernidade, sobretudo, o dinheiro se tornou a coisa de maior valor a ser possuída. O dinheiro, tornado capital, personifica as coisas e coisifica as pessoas.

Tendo em mente o direito romano como base de origem da separação binária, Esposito (2016, p. 27) diz que “Pessoa não se é, mas se tem, como uma faculdade que, justamente por isso, pode até se perder. Eis porque, diferentemente do que se supõe em geral, o paradigma de pessoa não produz uma união, mas sim uma separação.” Este paradigma separa as pessoas umas das outras, por seus diferentes papeis sociais, mas também, a separa de “sua própria entidade biológica”. Essa separação pode ser tão drástica ao ponto de implicar a perda total da identidade pessoal. Juridicamente, Esposito (2016, p. 27) mostra que o ius romano opera uma “separação funcional do sujeito de sua própria dimensão corporal”, separação esta que herdamos e prevaleceu fortemente até o século XX.

O direito romano e sua herança tentaram cancelar o corpo, pois, no plano normativo,

o corpo vivo não gozava de nenhum estatuto jurídico próprio, sendo assimilado a rigor à pessoa que o encarnava. Ele não podia ser objeto de negócio ou exploração, nem sequer por parte da pessoa que o habitava, levando em consideração que, segundo Ulpiano (9, 2, 13), ‘dominus membrorum suorum nemo videtur’, ninguém é dono de seus membros. Na realidade, em contraste com essa condição juridicamente protegida, o corpo tem um papel de primeiro plano na definição das relações sociais romanas. É máquina de trabalho, instrumento de gozo, objeto de domínio. Mede o poder exercido por uns sobre os outros (ESPOSITO, 2016, p.25-26)

Mas o corpo, por si, não possuía direitos, quem possuía era a pessoa. Já a filosofia, como mostra Esposito no capítulo 2, tendeu a anular a coisa subordinada à abstração. Seja voltada ao entendimento como nada (O nada da coisa) no plano essencialista, seja tornada abstração na linguística (As palavras e as coisas), a coisa “sempre permanece sujeita ao domínio da pessoa” (ESPOSITO, 2016, p.55).

Do universo jurídico fundado em Roma e difundido por todo o Ocidente, implica-se que um mesmo dispositivo jurídico que determina uma reificação das pessoas produz uma desmaterialização das coisas. “Assim como as pessoas se encontram divididas em seu interior pela linha que as opõe às coisas, estas tendem a perder sua consistência, colocando-se em uma dimensão formalizada que as priva de substância” (ESPOSITO, 2016, p.57).

A nossa sensibilidade nos faz recusar a possibilidade de que o corpo possa ser reduzido a coisa, mas logicamente compreendemos também que o corpo não pode sempre equivaler à pessoa. Partes dos corpos são doados, sangue é colocado em transfusão e até mesmo comercializado, pernas, braços, dentes tornam-se relíquia e coisa religiosa.

No terceiro capítulo, Esposito coloca o corpo em questão. “Desde quando, e até quando, ele pode ser considerado uma pessoa, ao invés de uma coisa?” (2016, p. 86). A relação com a consciência, clamada pela filosofia no capítulo 02, colocaria os bebês, os severamente senis e os deficientes mentais como não-pessoas, como exposto no capítulo 01? (p.46) Os embriões e o corpo morto, o que são? “A subtração de cadáver ou de embriões deve ser considerada da mesma maneira que um sequestro, como se se tratasse de uma pessoa, ou de um roubo, como se fosse uma coisa?” (ESPOSITO, 2016, p. 86). O corpo morto de meu pai o que seria em meio à essa dicotomia? Agora, o casaco era mais persona de meu pai que o seu próprio corpo?

A irresolvibilidade do problema mostra que o corpo pede a reformulação das categorias pessoa e coisa, já inadequadas conceitualmente. O corpo, não sendo nem pessoa nem coisa, é, para Esposito, o ângulo de visão possível para compreendermos a sociedade contemporânea. O corpo, por ser comum, quer dizer, não apenas porque todos possuem um corpo, mas porque é, em conjunto, patrimônio da humanidade, o torna não pertencente nem ao Estado, nem à Igreja, nem mesmo à pessoa que o habita. Extrapolamos o pensamento moderno de dualidade entre pessoa e coisa e da possibilidade do corpo como objeto, visto a partir de sua exterioridade, para entendê-lo como corpo político que exige a renovação dos léxicos (ESPOSITO, 2016, p.87).

“Somente o corpo é capaz de preencher o hiato que dois milênios de direito, teologia e filosofia cavaram entre coisas e pessoas, colocando umas na disponibilidade das outras”. (ESPOSITO, 2016, p.103) É o corpo vivo que escapa de qualquer categoria interpretativa atual.

Se, no começo deste texto, falei sobre um entendimento da coisa como encarnação simbólica, termino como Esposito, a apontar para o corpo como uma possibilidade de entendimento da realidade atual em seu sentido também político, principalmente, dos rumos da democracia. A experiência com o mundo não é rígida, não é cristalizada no tempo. Cada tempo histórico sinaliza suas preocupações e prioridades. Hoje, o corpo é o viés de entendimento do ser social, das relações conflitivas entre a cabeça soberana e a parte de baixo, nomeada como povo, que já não se sente representada.

O casaco de meu pai é o resquício de sua existência anterior, mas é também a aflição daquele que não tem com o que se cobrir. Ele deixa a melancolia de lado, perde sua significação simbólica para amontoar-se novamente em uma pilha de tecidos. Só então, em um novo corpo, em uma nova experiência, ele se torna o casaco que molda a experiência de outro alguém no mundo.

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Capa do livro de Roberto Esposito de título “As pessoas e as coisas”.

Qualquer que seja a forma de democracia que nos espera, é muito difícil que ela possa estar toda contida nos atuais canais de representatividade. Algo do corpo político resta fora de suas fronteiras. Quando ingentes massas se aglomeram nas praças de meio mundo, como está acontecendo hoje [2014], vem à tona algo que precede também suas reivindicações. Antes mesmo de serem pronunciadas, suas palavras se incarnam em corpos que se mexem ao mesmo tempo, com o mesmo ritmo, em uma única onda emocional. Conquanto possa funcionar como lugar de mobilização, sem corpos vivos soldados pela mesma energia, nem a rede pode ser o novo sujeito da política por vir. […] Ainda desprovidos de formas organizativas adequadas, corpos de mulheres e homens pressionam nas margens dos nossos sistemas políticos, pedindo para que eles sejam transformados em uma forma irredutível às dicotomias que, por muito tempo, tem produzido a ordem política moderna. O êxito dessas dinâmicas é algo que ainda permanece incerto. Contudo, o que chama a atenção é a novidade radical que, em todo o caso, elas introduzem na nossa história. Externo à semântica da pessoa tanto quanto à da coisa, o corpo vivo de multidões sempre maiores pede para a política, o direito e a filosofia uma renovação radical de seus léxicos. Se eles saberão atender a tal pedido ou se se fecharão para defender a si mesmos, antes de implodirem definitivamente, é o que veremos ao longo dos próximos anos. (ESPOSITO, 2016, p.123-124)

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[1] “As coisas são anuladas por sua própria proliferação” (ESPOSITO, 2016, p. 79). Ocorre, segundo Esposito, uma dessimbolização das coisas na medida em que elas se multiplicam de forma serial. “O que resta, na alucinante coincidência de significante e significado, é uma realidade muda, subtraída à comunicação, cerrada em suas fronteiras.” (idem).

[2] MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: ___. Sociologia e antropologia, trad. Paulo Neves, São Paulo, Cosac Naify, 2003, p. 280.

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