
André Arçari. Série Ausência / Presença (Conjunto Vermelho). Impessão fotográfica sobre papel Fuji Crystal Archive, 53x69cm (cada), ed. 1/3. 2011-2013.
Texto crítico publicado no Jornal A Gazeta referente à mostra Ausência/Presença”, do artista André Arçari (Galeria Homero Massena, Vitória, ES, 2013). Referência completa: HIPÓLITO, Rodrigo. O Perfil do Espelho II. A Gazeta, Caderno Pensar, Vitória, ES, p. 4 – 4, 06 jul. 2013. Mais do artista aqui
Vejo um artista imerso em aparelhos, raptado por narrativas fragmentadas, sentado diante de um televisor com uma câmera pronta para recortar. André Arçari me fala das escolhas de imagens para sua mostra por cores: o vermelho fica à esquerda, diante do rosa, ao lado dos azuis amplos. Desse modo, conversamos sobre pintura, pois a cor é matéria, mesmo na fotografia e no cinema. Fotografar filmes exibidos por televisor, assim tem início a trajetória das imagens que compõe a primeira individual desse artista. Algumas impressões com moldura escura, em pequenos e médios tamanhos, outras maiores, mais coladas à parede e ao fundo uma projeção de vídeo. Em “Ausência/Presença” os três domínios (pintura, fotografia, cinema) misturam-se pelo processo de aparecimento dos conteúdos.
Com uma câmera portátil Arçari investiga olhares sobre um mundo construído por aparelhos, no qual nós habitamos. Ao escolher títulos de importância para o Cinema o artista vai além da condição de cinéfilo, pois possui a premissa da produção. A imagem filmada é para Arçari como pedra e tinta, matéria prima.
A câmera que segura surge como um primeiro limite autoimposto, um modo através do qual pode trabalhar, a margem para uma trajetória da imagem, mas não seu fim. A imagem será processada continuamente e a cada aparecimento (da tela do computador à impressão emoldurada) abrirá possibilidades de linguagem. O sentido de “pós-produção” de Nicolas Bourriaud,[1] sempre lembrado por Arçari, pode ser posto no esqueleto de seus trabalhos. A teoria participa da vivência com Arte, nosso artista teoriza com imagens. Não é de interesse aqui (assim espero) a entrega de uma “obra acabada”, pronta para a contemplação, mas sim a abertura de uma situação em que toda a produção apareça também como matéria prima. O que ocorre com a projeção de vídeo nesse caso é exemplar. Durante o período em que a mostra ocupar a Galeria Homero Massena o vídeo continuará em edição e talvez assim permaneça, permanentemente em construção.
Rosalind Krauss nos lembra de que a fotografia erige-se sobre uma “ausência”, que seu poder de representação está na demonstração do deslocamento do referente (real).[2] Não obstante, a troca do real pelo simulacro permite o surgimento de sentidos através da ficção (e esta jamais se encerra). É certo que sem o referente não existiria a fotografia, a captação. No processo apresentado por “Ausência/Presença” o mundo-objeto passa por um giro no momento em que o referente é re-captado.
Na galeria encontramos polípticos, conjuntos, extratos de séries, unidades. Tais separações representam um sofrimento: recortar frames de um contínuo mergulho que recusa a determinação de obra. Esse sofrer é uma fratura exposta quando atentamos para a possível trilha sonora do material de vídeo. Em meio a um número absurdo de confluências entre som e imagem inacabada, fica para o espectador a escolha momentânea na coleção de “climas” musicais do artista. Deliberar é o fundamental e sempre o mais difícil nessa teorização audiovisual. Aquilo que na arte contemporânea é entendido por “pesquisa”, talvez seja, para os artistas da última década, pouco. Não há, por vezes, uma hipótese a ser comprovada-negada, ou um posicionamento a ser defendido. Ainda assim há experiência crítica, sem filiação e sem correntes, mas baseada numa inquietação, num desejo de vincular-se a algum cenário e permitir que outros possam lhe fazer companhia. No caso de Arçari, há um desejo de cinema. Não tratamos aqui com um cineasta, tampouco com um pintor. Ele usa sintagmas do cinema, mas seu modo de fazer está mais próximo do pincel e da tela. Diante das fricções processuais (a uma distância supostamente segura) delineia-se uma estratégia irônica para a construção de subjetividade, na qual tudo é tomado para novas ficções, inclusive as utopias. Ainda, a ironia da apropriação convive aqui com uma espécie estranha de romantismo, uma solidão às vezes silenciosa de um instrumento musical sobre a mesa, às vezes explosiva no corpo-a-corpo da dança. Aqui lembro as palavras de Bachelard: “Quem se banha não se reflete. É preciso, pois, que a imaginação supra a realidade. Ela realiza então um desejo.”[3]
Ao evidenciar possíveis repetições e re-conhecimentos de estilos, planos, “paletas” de cores, montagens e objetos do cinema, torna-se justa a pergunta pelo papel do “recorte” fotográfico na experiência direta com o mundo.
Essa é a figura do artista atual. Um sujeito, atravessado por conjuntos de teoria e prática que se chocam, geram estilhaços e refletem uma dúvida angustiante entre a simulação de um real e o espelho de si mesmo.
[1] BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[2] KRAUSS, R. “Nota sobre a fotografia e o simulacro”. In: O fotográfico. Trad. Anne Marie Davée. 1ª ed. 2ª imp. Barcelona: Editora Gustavo Gili, 2002, p. 168.
[3] BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos : ensaio sobre a imaginação da matéria. tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 36

Vistas da instalação | Fotos: Ignez Capovilla | Exposição Individual Ausência | Presença, 2013 Galeria Homero Massena – Vitória ES. Fonte: site do artista
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