[transcrição] Como não se render à sociedade do cansaço

Sueño 15, Sem Título, Grete Stern, 1949

Grete Stern, Sueño 15, Sem título, 1949

Este texto é a transcrição do podcast Não Pod Chorar 11

Texto de  Fabiana Pedroni

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“Talento é dom, é graça. E sucesso nada tem a ver com sorte, mas com determinação e trabalho”. Augusto Branco

“Imagine uma nova história para sua vida e acredite nela”. Paulo Coelho

Lute por aquilo que você acredite, não espere! A única pessoa que pode fazer a vida valer a pena é você mesma! Aprenda a se desafiar… “. Bellah Menina

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Tô cansada! Má gente, como tô cansada! Você também está?

E tudo começou quando eu li uma reportagem no nexojornal. Tanta coisa engasgada das últimas semanas, com as absurdidades do poder massacrante do governo atual, dos ataques ao ensino, à pesquisa, aos povos originários, às minorias, essa lista bizarra que não para de crescer, acompanhada dos choques de esperança pelo pedido de interdição mental do presidente… todo esse misto de pânico e frustração ganhou outro sentido por causa dessa reportagem chamada “Por que vivemos na sociedade do cansaço, por este filósofo”, no caso, o sul coreano Byung-Chul Han. 

Cansada, sim, estamos, com toda certeza! Mas, por que esse cansaço não some mesmo depois de uma noite bem dormida, mesmo depois de uma semana de férias, mesmo com tanto empenho? Você coloca no seu aplicativo de controle de sono a expectativa de horas dormidas, às vezes nem precisa de um vinho para conseguir alcançar a meta de 7 horas. Nas férias, você tem várias atividades planejadas, quer aproveitar cada minuto para fazer tudo aquilo que não consegue fazer nos dias de trabalho, vai dar tenção a projetos pessoais, vai ao cinema, vai escrever algo, vai participar de eventos culturais… mas, quando volta ao trabalho, continua cansada. E se as férias forem só de dormir? Comer e dormir? Continuará cansada, porque a agonia do tédio te levará ou a fazer alguma tarefa desesperadamente ou permanecerá em agonia e a pensar nas metas que não cumpriu no dia. Ficamos presos no labirinto do desempenho. 

É o que o Byung-Chul Han chama de “sociedade do desempenho”, quando a produtividade se torna um norte, o objetivo central do indivíduo, não temos outra coisa a não ser sermos produtivos. Para Han, a sociedade do desempenho seria um contraponto à sociedade disciplinar, aquela postulada por Foucault no século XX, e que na verdade começava uns dois séculos antes. 

Han vai dizer assim: “A sociedade do século 21 não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos da obediência’. São empresários de si mesmos. (…) No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”. 

Ao invés do enunciado disciplinar coercitivo “você deve”, imposto pelo outro, de fora, temos um novo enunciado “nós podemos”, que remete a uma falsa liberdade ao impor aos indivíduos o imperativo da realização, da mobilidade, da velocidade e da superação constante.

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“Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu”. Sarah Westphal

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Para Han, a “positividade do poder é mais eficiente que a negatividade do dever”. Assim, esse sujeito do desempenho que é mais rápido e eficiente, substitui o sujeito da obediência, apesar de o sujeito do desempenho ainda sentir a noção de um dever, um dever ser produtivo. Nesse novo contexto, frases como “yes, we can” (quer dizer, Sim, nós podemos), como já dizia Barack Obama no seu discurso de campanha presidencial em 2008, ou o slogan da Nike “just do it” (simplesmente faça) se tornam lemas de vida. Se você quiser, você consegue, basta querer. Trace metas, cumpra-as e alcance seus objetivos. Nada é impossível, na nossa sociedade da produtividade e do desempenho.

Mas.. o que acontece quando nada é impossível, quando tudo pode ser alcançável? Você se enche de positividade, começa projetos, traça pequenas metas no dia a dia, e tem orgasmos cósmicos cada vez que faz um check list. Ah, vai, você reconhece esse prazer de que estou falando. Porém, contudo, no entanto… cada dia fica um check pra trás, um item da lista não cumprido, porque você não deu conta, ou porque estipulou mais do que era capaz, ou porque houve um impedimento. Mas, espera, se tudo é possível, essa incapacidade de executar a tarefa é, seguindo essa lógica, porque você não se esforçou o tanto que deveria. A culpa é sua. 

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“O único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”. Autor Desconhecido

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Então, você se esforça mais, e mais, e mais, porque você consegue! We can Do it! Nossa.. quanta energia! Mas, ainda assim, no final do mês, você não alcançou nada, se perdeu nas metas, você é um fracasso, e a culpa é sua, porque era possível, você que não se esforçou como deveria. Aceite suas frustrações e aprenda a tirar força delas. Não! Para mano! Que isso! Tem coisas que não são alcançáveis e pronto, e tem coisas que você nem deveria querer alcançar. Pra que querer ser multitarefa e executar várias metas? O que há de glorioso nisso tudo? Nas últimas décadas a palavra autorrealização foi tão usada, não só nos discursos empresariais e pela indústria cultural, mas também na promoção da saúde e bem-estar. Essa autorrealização nos conduz, segundo o sul coreano Han, à uma autodestruição. Somos autoexploradores, ou seja, autoinvestimos em nossa capacidade positiva e exploramos a nós mesmos até o esgotamento. Olha aí a síndrome de burnout, uma das muitas “violências neuronais” que sofremos atualmente. 

 A “Sociedade do desempenho” tem a produtividade como guia. Mas o que diabos isso quer dizer? O que é um dia produtivo pra você? E o que acontece quando você não consegue ser produtivo? Fracasso. Fracassar não é só não ter sucesso em algo, é acreditar que existe sucesso.  

“Considero que trabalho é só uma necessidade e viver para trabalhar é um problema. No entanto, será que me sinto mesmo assim? Sinto uma profunda culpa por quaisquer minutos de ócio. O que é necessário para que sejamos bem-sucedidos? Concluir os estudos, que nunca se concluem? Ter trabalho, que não é o objetivo e sim o meio? Comer o que você gosta e ser convencido de que tudo faz mal, de que ser gordo é doença e ser vegano é loucura? Fazer exercícios e estar com o corpo “em forma” para ser taxado de superficial?” […] Tenha você percebido ou não qual o rumo inevitável de tentar conquistar todos esses objetivos, sua posição já estava prevista na “Academia do Fracasso”, uma proposta artística de Marta Minujin lá em 1975. – Texto As bolhas do refrigerante

Se existe algo que se caracteriza como sucesso, como realização, como possibilidade, é seu dever realiza-lo. Olha aí novamente um misto de dever e poder. Voltemos a reportagem do Nexo. Eles ainda citam o livro “Dinheiro e vida”, escrito por Vicki Robin e Joe Dominguez. O livro argumenta que nunca se trabalhou tanto na história humana, e que a vida profissional se tornou uma nova espécie de religião. “Nossos empregos agora exercem a função que tradicionalmente pertencia à religião”, escrevem os autores. “Eles são o lugar onde buscamos respostas para questões fundamentais como ‘quem sou eu?’, ‘por que estou aqui?’ e ‘qual o sentido disso tudo?’. Os empregos também exercem a função de família, respondendo questões como ‘quem são os meus?’ e ‘onde eu me encaixo?’”. A nossa existência começou a se reduzir de tal modo à nossa função trabalhista, que não seria de se estranhar que as relações sociais e com si mesmo se alterariam. E na medida em que nos informamos, mais assustados ficamos com o caminho trilhado até aqui e as consequências do excesso de trabalho. Uma pesquisa de professores da Universidade de Angers, na França, publicada em junho de 2019, apontou que trabalhar mais de 10 horas diárias, por pelo menos 50 dias ao ano, é um fator de risco para a ocorrência de Acidente Vascular Cerebral nos trabalhadores. Vamos fazer as contas: qualquer sujeito da vida acadêmica, essa que começa a desmoronar nesta bosta de novo governo, sabe que trabalha muito mais que 10h diárias por muito mais que 50 dias. E por que fazemos isso? São obviamente muitos motivos, muitos deles estruturais da própria academia, mas, ao mesmo tempo, um dos motivos se aproxima ao de todo trabalhador (sim, pesquisa é trabalho), que é ter que ser produtivo na sociedade do desempenho. Acreditamos realmente que tudo é possível, basta querer, então, corremos loucamente para esta chegada possível e, quanto mais nos frustramos por não alcançá-la, mais trabalhamos, mais nos esforçamos. 

É o excesso de positividade que nos guia para uma autodestruição. É a toxicidade do Coaching que vem te dizer que 

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“As pessoas costumam dizer que a motivação não dura sempre. Bem, nem o efeito do banho, por isso recomenda-se diariamente” – Zig Ziglar.

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Somos diariamente atacados pelo excesso de positividade. E não é coincidência este programa ser lançado no Setembro Amarelo, mês de campanha de prevenção ao suicídio. Essa campanha brasileira começou em 2015, como uma iniciativa do Centro de Valorização da Vida junto do Conselho Federal de Medicina e da Associação Brasileira de Psiquiatria. É nesse mês que se intensificam os eventos dedicados a discutir sobre o suicídio. Porque falar sobre algo faz esse tema sair de uma abstração distante e ser percebido como algo que nos deparamos no dia a dia. Não, não é um incentivo. Temos que parar de associar “conversar sobre” com “incentivar algo”. Conversar é conscientizar, é pensar, é estar atento, é compreender. Desde 2009, os profissionais de imprensa contam com uma cartilha feita pela Associação Brasileira de Psiquiatria, com orientações voltadas justamente para a imprensa, chamada “Comportamento Suicida: Conhecer para prevenir” (pdf), um esforço para desmistificar o tema suicídio para a população. Mas, infelizmente, o que ainda é reforçado, muitas vezes, são falas cruéis e informações inadequadas que aumentam o estigma relacionado aos transtornos mentais. 

Na sociedade do cansaço, o suicídio anda de mãos dadas com o fracasso e a depressão. Han usa o trabalho do sociólogo francês Alain Ehrenberg para determinar como surge a depressão no contexto da sociedade do desempenho. No livro “O cansaço de ser você mesmo: depressão e sociedade”, Ehrenberg argumenta que a depressão surge do cansaço proveniente do esforço do indivíduo de ter de ser ele mesmo. O cansaço de ser si mesmo, para Ehrenberg, surge da pressão por sempre ser autêntico e produtivo, bem como da ideia difundida nos mais diversos ambientes de que nada é impossível e tudo só depende da força de vontade individual. Para Han, o cansaço de si mesmo de Ehrenberg culmina numa autoexploração do indivíduo, que se entrega ao excesso de trabalho munido de um sentimento de liberdade.

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“Acredite, como tudo na vida acontece por uma questão de hábito, com a tristeza não é diferente, se insistires em cultuá-la, estarás escancarando as portas para ela.” Ivan Teorilang

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“Pedras no caminho? Eu guardo todas. Um dia vou construir um castelo”. Nemo Nox

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“Só existe um êxito: a capacidade de levar a vida que se quer”. Cristopher Morley

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Todas essas frases motivacionais são costumeiramente repetidas e mesmo quando rimos delas, ainda assim, elas têm um sentido muito forte de dominação do modo como lidamos com nossa própria existência atualmente. Acreditar que tudo é possível e que somos capazes de tudo sobrecarrega nosso corpo e nossa mente.  O quanto nos autoexigimos? Onde foi parar o ócio criativo? Mesmo quando pensamos como Han que o ócio criativo é fundamental para nossa existência, para alguns, principalmente para aqueles que trabalham na área cultural, esse ócio, tornou-se também trabalho. E assim nos afundamos em obrigações, deveres fantasiados de liberdade positiva em Tudo posso, tudo consigo. 

E é quando nos deparamos com uma realidade factual bolsominia que o choque do “tudo é possível” se torna mais complexo. Direitos básicos são retirados e sua cabeça buga, porque, se “yes, we can” torna-se um “não, você não pode”, e retiram-lhe a positividade e a produtividade que guia a vida atual, o que resta? Não se é de espantar, portanto, que em vários momentos desde o início de 2019, nós tenhamos tido cada vez mais vontade de dormir. De passar dias improdutivos nos remoendo com a ideia de que não, nós não conseguimos. A sensação de fracasso tomou conta de todas as esferas da vida, porque todas elas se reduziam ao trabalho e às autorrealizações. Nossa história conjugou uma sociedade do desempenho exaurida em uma sociedade do cansaço e agora massacrada por uma nova realidade de poder. 

Perceber estas conjugações é extremamente necessário para entender porque você tem a sensação de que não fez o bastante. A autocobrança que se torna autodestrutiva é uma chave-mestra para aqueles que dominam política e socialmente a nossa realidade, uma realidade do dinheiro e do trabalho. Quanto mais você se cobra por um sucesso não alcançado preso ao “Tudo é possível”, mais você não consegue se mover de modo saudável. Uma mente e um corpo cansados são campos fáceis de dominação. Ou seja, não existe sucesso, não existe fracasso, não existe meta, não existe projeto, não existe nada dessas coisas absurdas que nos sujeitamos metodicamente nos últimos anos que não passe por um crivo de dominação e cansaço. Paremos de nos exaurir, de competir, de achar que precisamos mesmo ser produtivos para sermos felizes. Essa falsa liberdade dada pelo excesso de positividade nada mais fez que nos deixar cansados. E tomar ciência disso certamente é o primeiro passo para entender o porquê que depois de escrever este texto a única coisa que quero é passar o dia vendo netflix ou jogando, porque eu ainda não sei o que fazer quando não tenho nada pra fazer. Preciso pensar mais sobre isso. Mas hoje, não. 

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