[texto de processo] O poder de uma boa introdução

gato no telhado 2

Gatos sobem, mas não descem do telhado, fotografia, Fabiana Pedroni, 2019.

 

Texto de Fabiana Pedroni

 

— Senhora, seu gato morreu.

— Não, ele não morreu. – Retruca a senhorinha de cabelos brancos, irritada com a informação. — Meu gato subiu no telhado logo cedo, para ver o nascer do sol. As telhas estavam ainda úmidas pelo orvalho e ele escorregou. Meu pobre gato caiu sobre as margaridas que abriram gentilmente suas flores para acomodar seu corpo morto.

***

Negação é uma das fases do luto,[1] mas, não é sobre esse o ponto que se desenvolve a história do gato que sobe no telhado: trata-se do poder de uma boa introdução. Capaz de suavizar tragédias, intensificar descobertas e cativar preguiçosos. Uma introdução bem construída torna céticos em otimistas.

Não sou nem a primeira nem a última que folheará um livro para contar quantas páginas faltam para o fim. A sensação de se ter um livro de 646 páginas para ler pode compor um conflito de empolgação e tristeza. Como encarar o medo da leitura? A resposta pode estar nas primeiras páginas.

A introdução é aquela vovó que traz biscoitos amanteigados com chá, puxa uma cadeira e diz “Vem cá, minha filha, sente-se que vou te contar uma história”. Ela encadeia fatos, pinta cenário, acalma o coração ansioso e cria expectativas pelo o que há por vir. Se você tem noção mínima de para onde irá, terá a possibilidade de puxar, do seu arcabouço de conhecimentos, as ferramentas necessárias para amenizar o sofrimento da alta informatividade.

Na construção de um texto, existem, segundo Beaugrande e Dressler (1981),[2] sete critérios de textualidade que são responsáveis pela caracterização do texto como tal: (1) Coesão, (2) coerência, (3) informatividade, (4) situacionalidade, (5) intertextualidade, (6) aceitabilidade e (7) intencionalidade, numerados aqui sem ordem específica.

A informatividade é um critério diretamente relacionado com nosso grau de surpresa com determinada informação. Quando dizemos que um texto tem baixa informatividade, isso significa que ele traz uma informação mais previsível. Já um texto com alta informatividade é muito mais do que imprevisível, é algo fora do conjunto. Isso não significa que quanto maior a informatividade melhor o texto. Isso não significa que trazer informações que o leitor não saiba é algo sempre melhor.

Pensemos nas placas de trânsito. Elas possuem um baixo grau de informatividade, porque elas precisam ter seu conteúdo reconhecido e obedecido como normativa. Se Fosse de alto grau de informatividade, você veria uma placa e não teria ideia do que ela informa — caos!

Textos jornalísticos são de média informatividade. Eles trazem notícias, são menos previsíveis, mas, ainda assim, trazem informações dentro de um conjunto possível e esperado. As notícias são balanceadas para se adequarem com o grau de informatividade. O grau médio é o padrão usual de informatividade. Já textos científicos, de artigos acadêmicos, que se comunicam com seus pares cientistas, são de alto grau de informatividade. Essas gradações pensam no público-alvo que lerá o texto. Diferentes públicos possuem conhecimento de mundo diverso e podem julgar um dado texto mais ou menos informativo.

Ao inserirmos a escrita dentro de uma relação complexa entre autor, leitor e contexto sociolinguístico, descobrimos que é impossível existir um manual que indique o passo a passo para se construir uma boa introdução. Como quase tudo na vida, existem indicações, partilhas e experiências, mas não uma normativa severa do correto. A escrita, como a fala, é um ato individual e uma resposta social. Não se constrói uma escrita fora de si, de suas inferências e de seu contexto. Se eu digo: escreva A, pode ser que A não lhe sirva, porque seu pensamento e formas de expressão ocorrem em C.

Autoconhecimento não é um jargão, mas uma necessidade. Apesar dessa particularidade, há, sim, pontos da própria formação gramatical que nos auxiliam a pensar por estruturas. A partir dessas estruturas se torna mais evidente que escritor é você e qual tipo de introdução você quer construir.

Uma introdução, como o próprio nome diz, introduz determinado tema a um leitor (entendam leitor em sentido amplo, pois no diálogo do início, a leitora era a interlocutora). Observem que uma introdução não é um resumo, mas uma apresentação, um “oi”, com informações que situem o leitor, que criem um caminho confortável o suficiente para que o leitor não fuja do texto. A introdução deve, também ser instigante, para que o leitor permaneça por uma curiosidade criativa.

O leitor não é um receptáculo inerte, é preciso uma abertura para que ele entre no processo de construção do texto, afinal, escrevemos para que alguém leia. Assim, uma introdução prazerosa — porque nos movemos por pulsão — precisa ter unidade e fluidez entre a ideia central que se quer apresentar e as ideias secundárias. Essa estrutura de divisão e diálogo é também pensada para a construção de parágrafos. Uma ideia principal e suas companheiras secundárias devem ser coerentes, estar em relação e evidenciar o que é central. As escolhas de palavras e de caminhos do discurso precisam ser nítidas, para que o leitor compreenda para onde está sendo levado, mesmo que esse “onde” seja um mistério. Um leitor curioso por uma incógnita consciente não é um leitor perdido.

Em uma introdução, como no texto em geral, ao mudar de parágrafo, não se muda de assunto, mas de ideia. O tema central continua a ser discorrido, de diferentes formas, com diversos argumentos que o aproximem do leitor. Você poderia dizer, para uma pessoa criada e vivida na cidade: fulano pulou uma pinguela. Mas, isso faria sentido se a pessoa não não puder imaginar uma pinguela como uma tábua de madeira sobre um pequeno fluxo de água ? Um texto acessível é aquele que se mostra minimamente ciente de seus leitores.

Muitos terão medo ao ouvir as palavras coesão e coerência, o uso de conectivos. Imagina se eu disser anáfora e catáfora? Pronto, acabo de assassinar alguns leitores ansiosos! Os conceitos básicos de linguística podem tanto nos auxiliar quanto nos apavorar. O hábito da leitura, depois de construído, pode brincar com o hábito de escrita sem levar ninguém à loucura.

Uma boa introdução é construída com calma e consciência de onde se parte, que caminho toma e aonde quer chegar. Delimita-se um tema, um público leitor e uma forma de escrita, para então traçar diálogos.

A introdução construída para a morte do gato pode até ter sido eficiente em amenizar o impacto da notícia, mas, o quão mais interessante seria se soubéssemos quem era a senhora de cabelos brancos e como era o gato que caiu do telhado? Interessa-nos saber? Depende de para onde a informação nos levaria.

Vocês já devem ter ouvido falar algo como “deixa a escrita da introdução para o final”. Essa instrução não é sem fundamento, por mais que não deva ser encarada como uma regra. Ela exprime a necessidade de se conhecer os caminhos e finalidades do texto, antes de começar um diálogo com o leitor. Para guardar coerência, quer dizer, para se ter uma produção responsável de sentidos que garantam a não contradição, é preciso compreender quais são suas intenções de escritor e quais são os argumentos que dão base à estrutura do texto. Para aqueles que escrevem um texto do início ao fim, a introdução será o final após o final. Ela será retomada e readaptada às novas descobertas feitas pelo caminho. A escrita é um longo processo, que exige idas e vindas a todo momento. Quando ela termina, significa que se tornou boa o suficiente ao escritor para que um leitor a possa ler. Isso não significa um fim de terminação, mas de alcançar determinada finalidade.

A finalidade deste texto era mostrar o quão importante é a abertura de um texto. A intenção é mostrar como que a introdução, por ser a primeira parte a entrar em contato com o leitor, é aquela que determina a sua permanência ou a sua fuga.

Podemos, muitas vezes, encontrar em uma introdução: contextualização do tema, justificativa da importância de terminado tema em um contexto, objetivos geral e específicos para o texto, uma metodologia e uma estruturação de capítulos (estes últimos dois itens, mais especificamente, quando falamos de uma introdução de trabalho científico, como uma tese). Interessa, à introdução, atrair a atenção do leitor, trazer questionamentos ao que será investigado, determinar uma cena que facilite o entendimento.

Por fim, alcançamos uma finalidade mínima para este texto, e ainda terminamos com um questionamento: por que, da primeira vez em que eu li aquele livro de 646 páginas, eu pulei a introdução? Por que me neguei a apreciar o chá com biscoitos amanteigados? Foi essa a origem do meu medo para a releitura, o temor, que hoje se desfez, da leitura de uma boa introdução.[3]

Notas

[1] O luto pode ser pensado dentro de 5 fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes; 1985.

[2] BEAUGRANDE, R.; DRESSLER, W. V. Introduction to text linguistic. London: Longman,1981

[3] Que livro é este que cito aqui e no começo deste texto? Terá de aguardar para a próxima publicação, afinal, quero você aqui ainda como a boa companhia que é.

.

.

.

..

 

 

.

.

.

.

.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s