[crônica] Fantasmas acompanham minha leitura

Arte como experiência. Um sublinhado, um ponto, uma presença. Fotografia das páginas 50 e 51 do livro “Arte como Experiência”, de John Dewey.

Texto de Fabiana Pedroni

Sempre ouvi dizer que leitores poderiam ser separados em dois grupos: aqueles que cuidam do livro e aqueles que riscam o livro. Amante que sou, anos dedicados à leitura, ao consumo, à pesquisa sobre livros, eu estou no primeiro grupo. Resposta assertiva.

Sempre ouvi dizer que teoria se separa da prática. Dualidade forçada ao extremo para reconciliação em diversas áreas! Essa é uma luta incessante na Educação e nas Artes, campos aos quais me dedico. Uma longa tradição racionalista que separa razão de emoção, objetividade e subjetividade, continua a ser questionada criticamente a partir da ideia de experiência.

Sempre ouvi dizer que a experiência com um texto literário é diferente daquela com um texto teórico-científico. Essa diferença se baseia em uma suposta dualidade que existe dentro da própria experiência do leitor. No texto literário, o eleitor trabalha junto com o escritor para a construção do cenário. O leitor aproveita cada brecha, cada detalhe em aberto, para fazer suas inferências e tornar a leitura uma vivência do texto. Não é possível interpretar sem se colocar dentro, sem trazer seu arcabouço de mundo para os sentidos das palavras.

A dualidade entre subjetivo e objetivo torna-se uma piada de mau gosto diante da experiência ativa do leitor, a experiência que joga na nossa cara que a nossa presença nunca será imparcial. Quando se escreve um texto literário, cativa-se o leitor por aquilo que se indicia sem se mostrar por completo. Textos fechados são entediantes e raramente lidos por inteiro. O leitor precisa de um lar, um lar que ele possa habitar e descobrir mais sobre sua curiosidade criativa.

Já no texto científico, onde está o leitor? Solitário a absorver informações como uma máquina pacífica? O leitor de um texto científico o interpreta, de modo imparcial, sem sua presença ativa? Claro que não. O recurso de citações, tão usado em textos científicos, é uma mostra evidente de que o escritor conversa com o leitor através da presença de conhecimentos anteriores. “Vou usar aqui a fala desse autor X que todos da área conhecem, para compreenderem qual a linha de raciocínio que estou seguindo e aonde quero chegar com meus argumentos” — Esse é um dos motivos para as citações: encontrar caminhos em comum entre escritor e leitor. Quem escreve, escreve alguma coisa para alguém. A experiência derruba a dualidade entre teoria e prática, porque a teoria é também uma experiência prática.

Assim, a experiência derruba também a dualidade entre pessoas que riscam e pessoas que não riscam livros.

— Hoje eu risquei um livro para a pesquisa do doutorado, o “Arte como experiência”, do Dewey. Partiu-me o coração no primeiro risco. Foi discreto, mas ele aconteceu. As marcações continuaram a vir, clarinhas, como que resistentes, mas se estenderam para as próximas 50 páginas. 

— Senti dor aqui. Meu único ponto contra riscar livro é se o livro for passar para a leitura de outra pessoa… mas isso é pessoal, não gosto de pegar livros riscados porque direciona demais a minha leitura… isso mais pra livro de teoria.

— E tem diferença?

— No caso de literatura, sempre achei o contrário. Sempre gostei de pegar livros de ficção e encontrar anotações, marcações e por aí vai. Isso parece que dava mais vida e deixava tudo mais palpável.

— Como se encontrássemos outros sujeitos e com eles partilhássemos a experiência da leitura. Compreendo, mas, por que, no livro de teoria, isso seria diferente? Há uns dias, essa barreira de divisão caiu. Voltei a um livro antigo e não encontrei minhas anotações. Elas, feitas em post-its, foram coladas e esquecidas em um caderno. O que será que eu pensava quando li aquele texto teórico pela primeira vez? Foi o que comecei a me questionar, onde eu estava naquele texto. Queria conversar sobre o texto que eu lia, mas não tinha mais ninguém presente no livro além de mim. Nenhum risco anterior, nenhuma anotação, nada. 

— Bom, as coisas tem que ser colocadas na balança. Pegar um livro todo rabiscado pode ser incômodo por direcionar a leitura, mas, durante uma pesquisa, é necessário intimidade com o conteúdo e isso envolve o mergulho no livro do modo como for necessário pra quem pesquisa.

— Não quero riscos gigantes e neon, nem grandes narrativas que me atrapalhem, que entrem em competição com o texto impresso. Eu quero um pontinho discreto, que mostre que aquele trecho pode ser interessante. Mas, por que interessante? Isso me levaria a pensar, a trazer novas inferências, a me prender ainda mais à narrativa. Textos científicos e textos literários compartilham inegavelmente da mesma matéria. É um pouco assim como me sinto com pesquisa. Sinto falta de gente no texto.

— É uma boa premissa pra pensar isso também: gostar de fantasmas pra lerem o texto com você.

— Exato, quero companhia fantasmática.

 

Dewey

Os fantasmas que me acompanham. Fotografia da página 31 do livro “Arte como Experiência”, de John Dewey.

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