[transcrição] Como não se afogar no mar da estupidez

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Foto. Máscara de gás usada no desastre de Chernobyl

 

Este texto é a transcrição do podcast Não Pod Chorar 08

Texto de Rodrigo Hipólito

 

Recentemente nós assistimos ao seriado Chernobyl. Tem feito sucesso. Muita gente tem falado sobre e realmente é uma produção muito boa, importante de ser vista, impactante e com certo compromisso documental. Como o nome indica, a minissérie de cinco episódio conta uma parte da história do desastre socioambiental ocorrido com a explosão de um dos reatores nucleares da usina de Chernobyl, em 1986, na Ucrânia. Na época, a Ucrânia era parte da União Soviética, que já começava a dar sinais de sua desagregação. Isso, por si só, já atiça a curiosidade de espectadores que, ainda nos dias de hoje, pouco ou nenhum acesso tiveram a imagens e conteúdos produzidos, como se dizia, além da “cortina de ferro”. Um dos muitos méritos da minissérie é dar bastante espaço para o modo como esse desastre atingiu trabalhadores e trabalhadoras comuns, moradores da cidade de Pripyat, construída nas proximidades da usina de Chernobyl, em parte, para servir de moradia para os trabalhadores que a levantaram e a mantinham. Essas pessoas comuns não pareciam ter qualquer ideia do risco que corriam no momento da explosão do reator nuclear. A usina já estava em atividade fazia anos e tudo parecia tão limpo, tão calmo. 

Quando os bombeiros são chamados para a contenção do que seria apenas um incêndio, eles também não parecem ter qualquer informação sobre os riscos de tomarem nas mãos os resíduos de grafite lançados com a explosão do reator. A maioria das pessoas que passam pela tela nos primeiros minutos do primeiro episódio vão morrer de maneira horrível. Como espectador, você sabe disso e não pode evitar a aflição. Você acompanha aquelas pessoas seguindo ordens e só consegue exclamar “que merda!”. Aos poucos, você é apresentado às pessoas que tomam decisões e num primeiro momento você pode só imaginar que são monstros. Como poderiam fazer o que fizeram com aqueles trabalhadores e trabalhadoras que não faziam ideia do inferno no qual entravam? 

Nós tendemos, muitas vezes, a crer que as pessoas têm situação de poder tem total consciência de seus atos. Bom, elas têm consciência, até o limite de seu conhecimentos. Algumas vezes, elas não passam longe de perceber que seus conhecimentos são muito, muito rasos. Ao contrário disso, com pouco conhecimento e o poder de tomar decisões e influenciar outras pessoas, esses sujeitos tornam-se incapazes de perceber sua própria burrice. 

Isso pode soar apenas como uma ofensa. Mas, lembrem-se de que nós somos guiados, em grande medida, por nossas emoções e necessidades. As pressões de uma sociedade competitiva podem gerar desejos de reconhecimento, que podem se transformar em orgulho e em autoengano. 

O sujeito elevado a uma posição de poder, quando permanece sob a pressão competitiva de jamais errar, pode ser levado a encobrir os próprios erros e, não demora muito, a negar e deixar de reconhecer os próprios erros. A partir desse ponto, pouco interessa o que aconteça, pouco importam os argumentos, pouco importam as provas, pouco importa a realidade factual. Um sujeito tomado por convicções pode ser imune ao diálogo. Admitir que está errado pode ser algo impossível para alguns, principalmente aqueles que alimentam os erros com a negação da realidade por anos a fio. Nesses casos, aceitar que se tomou o caminho errado significaria colocar por terra suas concepções de mundo, suas crenças, seu poder de palavra, sua condição social, ser avaliado publicamente perder autoridade, ser tratado como uma criança que, inocente, falou besteira e deve se arrepender, pois terá tempo para entender melhor o mundo. Quando essa pessoa chega a certa idade, ela pode não estar disposta a aceitar sua infantilidade e gastar os próximos vinte anos tentando apreender tudo o que deixou passar enquanto se esforçava para se auto enganar. 

Nós poderíamos sintetizar esse processo quando dizemos burrice e estupidez. Mas, às vezes, soa apenas como uma ofensa. A escalada da estupidez baseada no autoengano, na negação da realidade, pode tomar proporções desastrosas. Infelizmente, nunca se tratou apenas da União Soviética em fins de carreira. As consequências da estupidez aliada ao poder podem ser percebidas num longo atravessamento da História, por milhares e anos e em incontáveis contextos, não apenas naqueles 70 anos soviéticos. 

Para os domínios da estupidez, tudo aquilo que não pode ser solucionado de modo simples e sem esforço, é uma mentira. Dito de outro modo, para o estúpido, as únicas soluções possíveis são aquelas que ele consegue conceber e, todas as outras possibilidades lhe soam ofensivas. Quando ele se encontra diante de uma contradição, a resposta não pode estar nas palavras de nenhuma pessoa que discorde de suas premissas, logo, deve estar acima dos seres humanos, deve fazer parte dos mistérios de Deus. 

Como a realidade não obedece aos princípios limitados desses sujeitos, eles se esforçam para moldá-la e destruir tudo aquilo que retiraria sua autoridade. Isso se relaciona diretamente com a radicalização do machismo nos movimentos de extrema direita atuais e aquilo que Rosana Pinheiro-Machado chama de “crise do macho”. Quando se percebem num processo de destituição do seu poder econômico, do poder doméstico, da autoridade socialmente construída, esses homens culpam os feminismos, por exigirem igualdade, culpam gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, a cultura queer, por exigirem o direito de existir em paz, culpam indígenas, negros e negras, por exigirem aquilo que lhes foi roubado, incluso seus antepassados, sua dignidade e seu direito de ter um futuro livre. Esses sujeitos em crise, frustrados e incapazes de aceitar que o fosso no qual jogaram todos nós é decorrente das convicções que insistem em manter através do séculos, esses sujeitos se refugiam na ideia absurda de retorno à uma época em que mulheres, negros e indígenas eram considerados categorias inferiores de ser humano. 

Esses sujeitos frustrados criam fantasias de um passado idílico, no qual são poderosos e incontestáveis donos da mundo, no qual a realidade obedece a suas ordens e ele poderá se divertir todos os dias, sem obrigações, sem ser contrariado, sem dar explicações quando fizer merda. Esses sujeitos em crise querem viver eternamente a infância de uma criança mimada. 

Infelizmente, para a maior parte da população, a chegada de homens mimados e burros ao poder, significa o caminho para o sofrimento, a injustiça legalizada, a morte e o silêncio. Se, quando você escuta uma mensagem como essa, você ainda tem a impressão de que isso é puro alarmismo. Sinto lhe dizer, você está se auto enganando. 

Genocídios acontecem pelo mundo nesse momento; doenças que poderiam estar controladas com vacinação geram epidemias; países criminalizam práticas sexuais entre pessoas que, supostamente, seria livres; o trabalho escravo volta a ser considerado algo normal, através do nome técnico de flexibilização; cresce o controle e a concepção de leis baseadas em uma moral religiosa; vítimas são desacreditadas e não tem para quem recorrer; milhões de pessoas foram enganadas para elegerem seus próprios carrascos. 

Isso me lembra a ação performática e intervenção urbana feita por Maria Angélica Pedroni, em 2017. Naquele trabalho, chamado “Meu Problema”, Angélica recobriu as placas de vidro dos pontos de ônibus da cidade de Vitória com jornais guardados daqueles últimos meses. A ação nos falava sobre nos aceitarmos como testemunhas do nosso tempo, mas também agentes que não podem ignorar as contradições da realidade simplesmente por serem difíceis de compreender. Sobre aquele trabalho, eu escrevi o seguinte texto:

Eu não vi, eu não estava lá

25 de dezembro de 2017.

Em algum ponto da história, coisas ruins começaram a acontecer. Coisas ruins começaram a acontecer com quase todas as pessoas a minha volta. Gostaria de saber como o mundo chegou a esse ponto, mas me perco nas memórias.

Hoje, parece normal que tenham fechado todas as universidades, mas eu me lembrei que estudei em uma delas. Parece normal que nós negros não possamos sair de “nossos” bairros, mas eu me lembro de discutir com um amigo que não gostava de encontrar jovens “desse tipo” dentro do shopping. Hoje, parece muito razoável a pilha de corpos daqueles que pulam o muro no desespero por comida, mas eu me lembro de quando diziam, nos vídeos, que só não trabalhava quem era vagabundo. Parece inquestionável, agora, que seja certo amputar a língua das mulheres e vendê-las para os que podem pagar, para serem engravidadas pelos que comprovam terem os melhores genes ($).

Eu me lembro, vagamente, que nós usávamos a internet para alguma coisa além de ouvir sermões. Eu me lembro de ligar a tela do celular e ver alguma coisa além das mensagens piscantes de “bom dia”. Eu me lembro muito vagamente. Eu estou quase certo de que havia alguns supermercados que não se chamavam WallMart. E eu praticamente não tenho dúvidas de que um dia eu tomei cerveja, por mais que o Mestre já tenha explicado que isso era só uma fantasia antiga.

Quando eu forço a cabeça, tenho quase certeza de que um dia eu não fui escravo, de que o Dono era obrigado, por alguma razão, a me repassar dinheiro. Mas, tenho receio de que esteja meio louco. Não há qualquer sinal disso tudo por aí.

Em alguns momentos arriscados, pouco antes de dormir, eu deixo a mente seguir essas fantasias, por mais absurdas que pareçam. Ontem mesmo, pensei nos dias em que ouvi a palavra proibida. Fiquei com medo de pensar, mas já havia pensado.

Fiquei com medo. Que ninguém me ouvisse no caso de falar durante o sono! Eu pensei também em cenas vagas, em assistir televisão, no dia em que entrei no banco e me disseram que era impossível que eu tivesse uma conta, no dia em queimaram uma avenida inteira de pessoas para que não se espalhasse “a doença”, no dia em que as viagens de avião passaram a serem feitas por convite, no dia em que me retiraram de minha casa e me transferiram aqui pro dormitório 104E, pensei no dia em que meus sobrinhos voltaram para casa com o Manual Escolar, pensei no dia em que apanhei dos vigilantes por dizer que “democracia” e “política” não eram ficção, no dia em que fui ao cinema e haviam cancelado a sessão sem explicar porque, no dia em que ouvi uma música de uma moça que dançava feliz, antes do som parar de repente, pensei no dia em que eu terminei de ler o último livro e no dia em que abracei Chewie, meu cachorro, pela última vez.

Bom, se essas coisas realmente aconteceram, eu não tenho como saber. Se essas coisas realmente aconteceram, eu não poderia ter feito nada. Eu não vi, eu não estava lá.

***

[Para acessar as imagens do trabalho “Meu Problema”, clique aqui]

Reler esse texto agora, depois de assistir Chernobyl e sem esquecer dos crimes da Vale em Mariana e Brumadinho, que são desastres sim, comparáveis, me faz pensar na importância de não nos esquecermos do nosso papel de testemunhas do nosso tempo. Junto aos argumentos e aos documentos, é necessário que nós testemunhemos a verdade. Se mesmo com todas as provas, estudos e documentações, sujeitos medíocres e frustrados tentam negar o horror do holocausto, o horror da escravidão nas Américas, o horror das ditaduras militares, o horror da fome e da miséria, criadas pelo liberalismo econômico, o horror da violência de gênero, o horror do genocídio da população negra e indígena, o horror da devastação ambiental, se não testemunharmos, logo, quererão negar a construção em andamento do Estado brasileiro teocrático, cruel e maligno, quando ele se autodestruir. 

É estranho. Parece que faz tanto tempo. Tudo escalou tão rápido. Me pareceu importante volta a esse texto, agora, por conta da sensação que eu tenho experimentado nas últimas semanas. É uma sensação de normalidade, aliada a revolta e aos absurdos assistidos todos os dias. Sim, são sentimentos contraditórios. E talvez eu não tenha me expressado bem. Quando digo de absurdos assistidos todos os dias, eu não me refiro à televisão, ao feed do Twitter e, que as deusas me protejam de voltar lá, do Facebook; ou aos links e imagens no WhatsApp, nem mesmo às desgraceiras generalizadas discutidas em podcasts compromissados em impedir que isso se torne normal. Eu me refiro às situações mais próximas. Chegar no trabalho e encontrar um professor, que se diz de esquerda, desacreditando uma mulher vítima de violência e reclamando do atendimento do “militantezinho” do Museu que não o tratou do modo como ele acredita que deve ser tratado quando fala besteira; ouvir outro colega dizer que nós deveríamos punir quem se deixa corromper e não é corrompe o outro, como se isso fizesse sentido; ver um ex-professor, que nunca foi capaz de realizar a leitura de autores básicos, que construiu seu currículo nas costas de seus orientandos e com auto publicação de seus artigos, ver esse sujeito se vangloriar do poder que adquiriu com a subida da extrema direita e ofender os verdadeiros pesquisadores e pesquisadoras da área, que sempre lhe negaram o papel de autoridade; presenciar um pastor de terminal de ônibus louvar ao seu Deus, no final da noite, começar uma defesa alegre de que os tempos estão mudando com um presidente cristão de verdade, mas gaguejando com risadas ao constatar “ele começou errando bastante, mas vai melhorar”; 

Essas pequenas situações têm me atingido e causado emoções difíceis de digerir. Há sim, um grande cansaço no momento de tentar conversar, mas há também uma irritação e o receio de perder o controle, de entrar em desespero por passar muito tempo em meio a conversas sem pé nem cabeça. Felizmente, eu estou em uma posição em que posso conversar com pessoas razoáveis e evitar me afogar enquanto balanço os braços para tentar organizar diálogos sem nexo com pessoas submersas na negação da realidade. E isso é necessário. É necessário ouvir pessoas razoáveis e ser ouvido também. Às vezes, uma só semana sem um diálogo coerente e saudável, pode te sufocar. 

Esses momentos de coerência, que são como um carinho, como um abraço, fazem mais do que injetar energia e impedir sufocamentos. Quando você pode, por um instante, parar de bater os braços em defesa, você tem a chance de perceber para qual lado se mover. Alguns sujeitos estão tão mergulhados em suas convicções, já se aprofundaram tanto em sua frustração e criaram tantas camadas de artifícios para negarem que estão errados que, se você inventar de tentar trazê-los de volta para a superfície, você pode não ter ar suficiente pra nadar de volta. Com equipamentos especiais de mergulho e uma equipe bem preparada, às vezes é possível resgatar alguém de uma fossa marítima. Não tente fazer isso sem ajuda. Se você estiver afundamento, não é a melhor hora para tentar resgatar ninguém, pois corre o risco de se afogarem os dois. Se você conseguiu voltar à superfície e já pode respirar bem, tente puxar de volta quem está mais próximo. Se ocupe de se preservar, de evitar que te peguem pelos pés e te puxem par a ilusão de um futuro que obedece a normas de um passado baseado nas fantasias de um menino branco mimado, nade com os seus, na direção dos seus e ajude aqueles que estiverem ao seu alcance. Lembre-se de que aquelas pessoas que sorriem no fundo desse mar de merda, que comemoram seu próprio afogamento com o desejo de que o planeta inteiro se afogue, chegaram lá com o peso do próprio ego.

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