[resenha] Faísca, temporada 2, parte 2

Imagem de capa; Sonja Vordermaier, “Floresta de postes de luz”. Instalação. 2010.

Um dos melhores projetos voltados para novas narrativas da ficção especulativa que encontrei nos últimos anos é a Faísca. Esse projeto me encontrou num momento em que o tempo para a leitura de ficção havia quase sido excluído de minha rotina. O resultado desse encontro é que consegui retomar as leituras de ficção e também a escrita.

Não é possível compreender a própria escrita sem exercitar a leitura. Mas, o tempo para a leitura de ficção pode ser muito escasso, tanto para escritores quanto para não escritores.

A Faísca é uma newsletter que te envia, semanalmente, duas narrativas relâmpago de duas autorias diferentes. Narrativas relâmpago são rápidas e intensas. Isso me permitiu ter um momento para a leitura prazerosa, sem cobranças, quando eu estava soterrado de livros de teoria e correções de trabalhos de alunos.

Quando consegui me livrar desse peso, a rotina de escrita de ficção trouxe a vontade de responder às pessoas que me proporcionaram as narrativas relâmpago toda a semana. Para cada episódio da segunda temporada da Faísca, eu fiz um pequeno fio de comentários no Twitter.

A segunda parte desses fios está reunida a seguir. A primeira, você pode acessar aqui. Notem que esses comentários contêm os perfis das autorias. Se você não assina a Faísca, pode assiná-la, gratuitamente, aqui. Ela é um projeto que chocou do ninho da revista Mafagafo.

Caso queira acessar os textos da segunda temporada, eles estão disponíveis aqui.

***

Episódio 14

E vamos para os comentários sobre o episódio 14 da segunda temporada da @faiscamafagafo e, pra essas narrativas, vale o lembrete de que a gente sempre consegue rir de desespero.

“O conserto do sol”, de @escrevejonas, super combina com o momento em que a gente já apelidou o presidente de #RainhaLouca. Chega a ser uma coincidência meio assustadora!.. e também divertida. O tom da narrativa de @escrevejonas é honestamente cômico e isso ajuda a encarar, com um pouco mais de leveza, o cenário da história, que parodia nossa realidade. Todos os povos fazem chacota, mas a chacota brasileira é especial. Essa faísca tem muito disso.

A mistura de elementos me fez pensar em “A Roupa do Rei” com um pouco de “Auto da Compadecida” e alguns bons momentos de Chico Anysio. Foi divertido, porém revoltante, já que a cloroquina é a peneira do momento.

Já “A data”, de @amand_alvarenga, me pegou por memória. Também cresci numa cidade do interior de Minas com a política acirrada nas eleições municipais. No caso da minha cidade, a disputa era entre Sapos e Jacarés.

A quantidade de histórias absurdas, porém reais, que fazem as crônicas da politicagem interiorana, ocupariam páginas demais para serem lidas. Sintetizar o clima desse absurdo em uma faísca faz a leitura do texto de @amand_alvarenga ser acompanhada de pausas para dizer “é assim mesmo!”

Acredito que outras pessoas, em outras cidades do interior, também serão capazes de apontar para aqueles fantasmas e dizer qual é o respectivo ente vivo (ou não) em sua memória. Aliás, talvez as eleições municipais estejam próximas, pra alegria dos cemitérios.

Episódio 15

E vamos aos comentários sobre o episódio 15 da segunda temporada da @faiscamafagafo. Por enquanto tô conseguindo manter comentários de quase todos os episódios dessa temporada (pois modo quarentena).

“Terrível vilã leva desespero à comunidade de Porto Sagrado”, de @kalidelossantos é um verdadeiro brinco! Gosto muito da inserção de texto em estilo jornalístico dentro de narrativas de ficção.  São uma ótima alternativa para fugir do informativo sem contexto e dão para o leitor, numa tacada só, a informação e a impressão daquele mundo. Nós vivemos num mundo em que a informação circula de modos variados. Quando construímos realidades ficcionais, é de se esperar que os meios de comunicação nessas realidades também sejam pensados por quem escreve.

A história de @kalidelossantos me deixou irritado, pois muito do que está ali contido, nós podemos perceber em diferentes escalas e profundidades a nossa volta. O negacionismo, aliado com a exploração da fé, sempre foi presente, mas nem sempre dominante.

Algo que fica por detrás da narrativa, e que é inevitável pensar, é o controle que esse extremismo tem sobre a imprensa. O texto emula muito bem o tipo de falso jornalismo feito, incentivado e custeado pelo poder ultraconservador. Isso revolta.

Enquanto lia e me irritava, uma parte de mim comparava a manipulação da fé para a aceitação do sofrimento e da injustiça como condenação divina com o uso de “soma”, em Admirável Mundo Novo, e de gin, em 1984. Há muito o que desdobrar desse texto.

Já em “O garoto-robô”, de J. G. Richard, a leveza da maior parte da narrativa promove um pequeno choque ao final da história. Parte dessa leveza e certo encantamento talvez se deem por conta do rimado que fica evidente após o segundo parágrafo.

Isso foi uma das coisas que me fez encarar a narrativa como uma história infantil, deixar de pensá-la assim e voltar a pensá-la desse modo. O título é simples, o personagem é uma criança, o vocabulário é inocente e tudo levava a crer que o final também seria simples.

Os dilemas do protagonista, que parecem bem conhecidos durante quase todo o texto, poderiam nos encaminhar para um final feliz, um momento de descoberta da criança ou a abertura para uma história maior. Mas o autor escolhe o caminho do estranho.

Quem lê termina sem muitas respostas. Isso é aflitivo e é pesado. Isso foi o que me fez pensar a história como não-infantil. Mas, ao começar os comentários, percebi que até mesmo o final denso consegue ser apresentado sem quebrar a cadência do restante da narrativa.

Eu gosto de histórias nesses moldes e contadas com esse ritmo, com essa temática e apresentadas como literatura infantil. Um texto que trata de um tema complexo e pesado, apresentado com leveza e sem subestimar o leitor, é um abraço literário.

Episódio 16

Comentários rápidos (pois dia corrido, mesmo com o isolamento social) sobre o décimo sexto episódio da segunda temporada da @faiscamafagafo.

“Eva”, de Ravenna Veiga, é um fluxo daqueles que te arrasta junto da personagem. Digo isso, mas, no caso dessa narrativa, é uma afirmação meio complicada de se fazer. A escolha da autora por quem narra realiza um interessante nó mental. Não se trata apenas de uma narradora onisciente ou de narrar na terceira pessoa. Ravenna Veiga dá voz a um construto histórico-social. É como se uma das pulsões que movem a personagem que age na narrativa fosse um ser com o qual ela divide a vida. Nesse sentido, se trata sim de uma narrativa fantástica. Noutro sentido, é uma história realista e crua. O cenário é quotidiano, os anseios e incômodos também. Uma história contada desse modo é difícil de ser finalizada e é bom que o encerramento da narrativa não seja mesmo um fechamento.

Já “A Dama no Bosque”, de @Inutil_Idade, talvez siga formalmente pela via contrária. Duas personagens, dois cenários. Cada personagem em um momento diferente da vida. Se o narrador se intrometesse e qualificasse as personagens, seria um erro. Felizmente, isso não acontece. @Inutil_Idade assume um narrador respeitoso, que nos permite observar um encontro de dois momentos de vida. Acompanhamos uma descoberta, mas não se trata apenas de acontecer algo novo na vida das personagens.

O encontro das personagens apresenta uma descoberta que não apenas representa a liberdade de uma delas, mas como a descoberta da liberdade é uma necessidade pra se estar viva. Mais duas narrativas ótimas e mais uma semana de leitor satisfeito.

Episódio 16+1

Comentários sobre o episódio 16+1 da @faiscamafagafo e, como em quase todas as semanas, parece que as faíscas foram pensadas pra se encaixar perfeitamente na realidade do momento.

“Recursos (des)humanos”, de @oailtonborges, me irritou praticamente a partir do primeiro parágrafo. Nesse caso, isso é um elogio. O texto tem diversas coisas detestáveis e elas estão ali de propósito. Se alguém ler essa faísca e só achar divertida, essa pessoa tá com problemas.

Pontos mais pessoais: não tenho paciência para ler entrevistas, detesto papo de empreendedorismo, não suporto essa cultura de treinamento e superação, mais ainda quando ela está cheia de anglicismos desnecessários. A faísca de @oailtonborges tem tudo isso e mais um pouco.

Inserir tanta coisa insuportável numa narrativa tão curta e ainda fazer com que quem lê queira chegar até o final é um sinal de baita qualidade! Uma das coisas que contrabalanceiam a irritação são as indicações a respeito do fantástico no universo da história.

A condição do fantástico não é explicada. Além de deixar tudo mais orgânico, a ausência de explicações é respeitosa com quem lê, brinca com nossas referências e nos permite imaginar. Isso me fez simpatizar com quem escreve, ao mesmo tempo em que antipatizava com o personagem.

Além disso, o tema explicita de um modo sarcástico como o desenvolvimentismo e o produtivismo auto justificados são aliados íntimos da necropolítica e isso dá ainda mais relevância para o texto. Não existe dignidade quando tudo e todos são transformados em produtos.

Já em “Paulinho da Moeda”, de @thiagoloriggio, encontrei uma história que poderia ser apenas uma piada de bar, caso me fosse contada uns seis ou sete anos atrás. Nossa confiança nas bases da realidade foram atacadas de modo tão radical que a piada se tornou assustadora.

Essa faísca me lembrou uma fala, se não me engano, de Chris Carter, quando da volta de Arquivos X. Ele comentou que seria muito difícil criar o mesmo efeito das temporadas da década de 1990, porque algumas das conspirações absurdas que apareciam na série, se mostraram reais.

Não faço ideia do título, mas me lembro de um filme (também década de 1990) em que o personagem passa para uma realidade paralela, simplesmente ao caminhar por trechos da cidade em que não andava antes. Na história, há pontos que sempre são portais e só precisam ser decorados.

Como não me lembro do nome do filme, ele pode até fazer parte de uma realidade que não existe mais. Estar em dúvida sobre o real é algo um tanto enervante e talvez a gente sinta algo similar a isso nos últimos tempos.

A vontade de “voltar ao normal” é um sinal disso. Isso é ainda pior, pois diferente da ficção, a gente não volta pra “realidade”. Precisamos simplesmente lidar com as mudanças, por mais absurdas que pareçam.

Foi ótimo chegar ao final da narrativa de @thiagoloriggio e descobrir que ele não se rendeu ao retorno para a realidade antiga. É triste para o protagonista? Sim. Mas isso deixou a história bem mais impactante!

Episódio 18

Comentários sobre o episódio 18 da @faiscamafagafo. Sem esquecer de que dá pra fazer submissões de ficções relâmpago no site da @mafagaforevista até dia 15 de maio!

“Da ceifa e da seiva”, do @auryo_j é uma daquelas narrativas sinestésicas que incomodam como todo o bom horror. Mas, não adianta pensar nas referências já batidas da literatura de terror/horror estrangeiras. Ainda que essas referências possam ser encontradas na narrativa, o que mais chama a atenção é a miscelânea de elementos sensoriais trabalhados com a forma do texto. Sem medo de desafiar quem lê, o @auryo_j quebra as palavras e a própria narrativa para nos aproximar da desorientação do personagem-narrador.

Esse é um texto de corpo que habita o real. “Da ceifa e da seiva” nos lembra que nós (ainda) estamos nesse planetinha, vivendo dessa terra, e que sentimos e morremos junto com o planeta e o resto da vida que há nele. Parabéns ao @auryo_j por conseguir fazer quem lê passar pelas mesmas dúvidas, incompreensões e medos do personagem que é obrigado a encarar os novos deuses que guiam nossas vidas e mortes, queiramos ou não.

A leitura de terror segue com “Ecos”, de @lu_coruja. Nessa faísca, foi como ler um daqueles ótimos e clássicos weird tales. Só que, com algumas diferenças. Quando criança, apesar de adorar aquelas coletâneas, eu me incomodava demais com a demora em construir a impressão.

“Ecos” é uma faísca, então, isso não acontece. Isso significa que gostei muito mais dessa história do que daqueles clássicos. É muito difícil passar essa impressão de estranheza em poucas linhas e sem usar de neologismos ou palavras de exagero expressivo.

Nisso reside a parte mais gostosa dessa leitura. Essa é uma faísca que funciona quase como um estampido. Com o uso adequado de clichês (o que é bem difícil) e informações suficientes para ambientar quem lê, @lu_coruja nos entrega o que é prometido nos dois primeiros parágrafos do texto: uma situação estranha que não podemos compreender ou resolver. Obrigado pela faísca-estampido e por trazer lembranças de histórias estranhas!

Episódio 19

Comentários sobre o episódio 19 da @faiscamafagafo. Já fica o lembrete de que o prazo para submissão de faíscas no site da @mafagaforevista termina dia 15!!!

“Método convencional para plantio de Ipomoeya bitchimmadonna para extração da Cura Hétero”, de @AngelaZatta, me lembrou dos textos do Luis Fernando Veríssimo. Faz tempo que não leio esse tipo de texto. Acho que em comentários sobre outras faíscas eu já disse que tenho dificuldades com textos de comédia. Quase sempre abandono textos de comédia quando são mais longos. Ao ler a faísca da @AngelaZatta, percebi que isso tem menos relação com a extensão do texto e mais com o formato escolhido para a narrativa.

Por isso, essa faísca funcionou pra mim. Se fosse uma narrativa tradicional, com personagens em situações, um início, um meio e um fim, o texto não me ganharia. A experiência de leitura foi como se alguém fizesse um comentário sarcástico e me deixasse continuar a brincadeira.

Mas, isso só funciona porque existe um tema denso e que extrapola em muito o simples comentário sarcástico. Diferente da diversidade, a heteronormatividade é sim um problema. Nós sofremos com essa norma e precisamos encontrar modos de ultrapassá-la. Quando penso nisso, essa faísca deixa de ser apenas um texto de comédia e toma ares de sonho. A faísca de @AngelaZatta habita um mundo de desejos utópicos que precisamos construir.

Já “20 pras 5”, de @iuriau me deu nos nervos, no bom sentido. Em alguns empregos pelos quais passei, o maior desafio era aguentar até o final do expediente. Em outros desses empregos, pouco havia para ser feito além de “existir como empregado” e esperar que a chefia precisasse de alguma coisa.

Mesmo quando estava em empregos gratificantes, há dias em que a gente só quer que acabe logo. Esse é um sentimento estranho de rememorar nesse momento. Por isso, fico feliz que o @iuriau não tenha dado exatamente um final para a faísca.

Eu continuei a imaginar a personagem após o final do texto. Será que ela faz pequenas magias em outras situações e ambientes não-mágicos? Ela se envolve em pequenas encrencas por conta de contravenções quotidianas? Ela já é mais próxima dos humanos que de bruxas?

As possibilidades que a história abriu em minha imaginação se relacionam muito com a escolha de @iuriau por uma personagem que não é A escolhida ou a grande heroína de uma narrativa épica. Ela também não parece ser a mártir soterrada por enormes conflitos.

É bom ouvir a voz de uma personagem que está ali, apenas vivendo naquele mundo fantástico e que, ainda assim, se dispõe a conversar com quem lê. Foram vinte minutos de fim de expediente muito bem gastos!

Episódio 20

Comentários sobre o episódio 20 da segunda temporada da @faiscamafagafo. Já recomendo o último episódio do @curtaficcao, com @janapbianchi @fernandaversa e @thiagoeulee sobre os materiais recebidos pela chamada da @mafagaforevista.

Em “A mulher que podia congelar o Tempo”, de @valmirjr, senti um incômodo irmanado ao que tenho sentido por conta do isolamento social, nos últimos meses. Acredito que eu desistiria muito antes do que a personagem da faísca hahaha.

Quando penso nessa história como uma metáfora, não posso me esquecer do lembrete de que “quem muito se ausenta pode precisar de ajuda”. Nesse sentido, essa faísca toca em vários pontos que são ainda mais necessários de serem pensados hoje.

Primeiro, aquela velha sensação de só precisar de mais um tempinho. Só que, esse tempinho nunca é suficiente. Não há tempo suficiente para que as coisas da nossa vida se tornem mais simples. Isso vale em escala íntima. Mas, em escala social, é diferente. Esse desejo de que seja possível ajeitar o mundo sozinho, a ideia de que sabemos como colocar a realidade em ordem e apenas não o fazemos por não possuirmos poderes pra isso, é uma ilusão. Não é possível arrumar o mundo sozinho. O tempo vai passar e você corre o risco de desistir. Melhor aproveitar o tempo junto.

Por coincidência, assisti, recentemente, ao terceiro episódio do seriado Tales from de Loop (na Amazon Prime), que imagino que @valmirjr vá gostar. ^.^

Já “Um de nós”, de @paulino_simone, me levou para memórias de infância. Vou considerar como mais uma referência perdida, pois não me lembro com exatidão em qual livro foi. Deve ter sido lá pela segunda série. A professora contou a história de um bebê que havia sido encontrado na mata por outros animais. Eles nunca haviam visto um humano e o acharam tão frágil ao ponto de sentirem pena. Aquela história não foi muito longe, embora tenha deixado uma impressão que essa faísca resgatou.

Talvez seja pessimismo ou ecofascismo imaginar a humanidade como um mal. Afinal, parece que apenas uma parcela da humanidade se dedica a destruir a realidade. Ainda assim, há pontos que sempre merecem ser pensados e eles estão ali: o medo do Outro, a repulsa pelo diferente, o desejo de se sentir igual, a vergonha de estar do lado derrotado, ainda que seja o lado certo, a crueldade do homem adulto em sua recusa de abandonar a infância e por aí vai.

Não sei se @paulino_simone pensou nessas coisas enquanto escrevia essa faísca, mas, de algum modo, elas apareceram pra mim. Gosto de textos que fazem isso e temo pelo quanto eles podem ser realistas.

Episódio 21

Mais uma semana e mais duas ótimas faíscas. Seguem os comentários com minhas impressões sobre o episódio 21 da 2ª temporada da @faiscamafagafo, com textos de Mirlie Kondevat (@rodrigovk) e @erikacomsono. +

“Como saber se seu filho está metido com Boitatá”, de Mirlie Kondevat, faz uma das coisas que mais gosto em textos de ficção: entregar uma situação ficcional sem rodeios. Pra fazer isso, é necessário pensar na forma como contamos uma história.

Existem diversas maneiras de brincar com quem lê, de passar informações sem ser meramente informativo, de envolver a pessoa que lê nos detalhes do mundo ficcional sem passar um manual de regras. Fazer isso em poucas frases, certamente, não é uma coisa simples.

A escolha de Mirlie Kondevat é uma das minhas preferidas. Os motivos pelos quais personagens podem ter a necessidade de passar informações para outros personagens também são variados. Construir um personagem que existe no mundo ficcional como comunicador é uma daquelas saídas que dão conforto para quem lê sem deixar de compor o texto por camadas de realidade. No caso de Mirlie Kondevat, isso fica ainda mais divertido, pois ela é a personagem comunicadora/autora que existe apenas como personagem comunicadora/autora.

“Raízes”, de @erikacomsono, puxou vários fios que continuam emaranhados na minha cabeça. A ideia de não ter raízes, de ter abandonado suas raízes ou de conseguir, quando necessário, se desligar do passado, é algo em que tenho pensado bastante.

Isso significa que eu quis perceber várias interpretações nessa faísca hahahaha Lembrei-me de que abandonei a cidade do interior, onde nasci (e espero nunca precisar voltar), de que encontrei ambientes muito mais meus em outro estado e outra cidade, e de que a possibilidade de ter de abandonar esse já não tão novo lar, é um tanto atormentadora. Pensei, também, na quase impossibilidade de encontrar minhas raízes indígenas e negras e no quão pouco me identifico com a realidade branca e cristã, na qual fui criado. Pensei, também, na personagem do livro que estou lendo (La Cicatriz, de China Mièville), que vive o dilema de ter fugido de sua cidade por ser perseguida pelo estado e pela milícia, mas passa a querer voltar quando fica presa em outra cidade, ainda que esse novo lar a trate muito melhor do que o antigo. “Raízes” traz um amontado de desejos, memórias e ideias conflitantes num curto fluxo de pensamento e foi tão bom de ler, que me ajudou a compreender outras leituras. ^.^

Episódio 22

Hoje de manhã li o episódio 22 da @faiscamafagafo com os textos de @thiagoeulee e @PortelaRoger. Quase me esqueço de comentar aqui, pois fiz os comentários mentalmente e me confundi.

“Morte em Salvador”, de @thiagoeulee me trouxe mais pontos positivos do que consigo comentar. Não esperava menos! Brincar com notas de rodapé é uma das coisas que já ganha meu coração acadêmico de primeira! (leia essa último episódio pra se inspirar @Sunomoma)

Uma das coisas que @Sunomoma e eu fazemos na edição dos textos um do outro e complementar as histórias em notas de rodapé. A gente começou a fazer isso na iniciação científica, na graduação. Daí dá pra imaginar a identificação imediata que tive com “Morte em Salvador”!

Tem uma coisa de potência vibrante no nanoconto que é a frase inicial da Faísca. Ela já sobreviveria como um nanoconto muito bem, mas saber que há esse mergulho na história, através das notas de rodapé, faz com que aquela única frase vibre!

O fato de ser uma frase curta também ajuda em outro ponto da leitura. Se fosse um parágrafo ou mais, eu correria o risco de não seguir a ordem de leitura das notas. Tudo bem, ainda seria uma ótima faísca, mas chegar naquela última nota e dar a leitura como encerrada foi lindo!

Aliás, vazia tempo que não lia esse tipo de final, que faz a gente repassar tudo o que leu a partir de outro ponto de vista, com uma última informação muito direta. Não é uma explicação, mas apenas uma informação que permite que quem lê possa pensar no que leu.

Já em “Transtorno de mente alterada”, de @PortelaRoger, eu me senti em uma esquete de ação. Curioso que, pouco antes de ler essa faísca, eu pensava sobre a dificuldade de escrever boas cenas de ação. Não se trata de encadear vários acontecimentos numa velocidade videoclípitica. Uma boa cena de ação, na escrita, é um crescente em torno de uma ação pontual. É necessário gerar tensão e certa confusão mental para que haja a euforia e a expectativa. Tensão crescente e confusão mental são duas coisas que não faltam nessa faísca.

Confesso que fiquei confuso na última frase. Daí pensei “espera. eu tô realmente tentando entender a mente desse personagem? isso é bem perigoso. vou parar por aqui.” Mergulhar nesse universo criado pelo @PortelaRoger me parece ter esse tom de risco de não voltar.

Dá pra imaginar uma infinidade de pesadelos dentro desse universo. E talvez eu nem soubesse se estaria em um pesadelo ou não. É o tipo de dúvida corrosiva que faz com que a gente queira ler mais e correr mais risco. Mais uma ótima semana com ótimas faíscas!

Episódio 23

E vamos aos comentários sobre o episódio 23 da segunda temporada da @faiscamafagafo, com textos de @TheRandomOne e @n_ins. Esse episódio não me deixou esquecer de que, como professor em trabalho remoto, preciso fazer um pouco de magia.

“Teste de Teologia Aplicada Prático e Teórico – 6º semestre”, de @TheRandomOne, conseguiu me colocar no papel de estudante e de professor avaliador, simultaneamente. Eu fiquei muito tentado a comparar as questões que componho para turmas com as apresentadas na faísca hahaha.

Mas, também me senti pressionado a conseguir responder às perguntas corretamente. A pressão passou logo! Pois o os elementos do texto me fizeram perceber que eu mesmo poderia imaginar, com muita liberdade, quais seriam as respostas adequadas.

Esse foi um ótimo exercício criativo. Essa não é uma característica de textos literários tão comum quanto deveria ser: promover um exercício criativo para quem lê. Depois da segunda questão, já foi possível abandonar de vez a tensão e sorrir com o texto.

Isso até as duas últimas questões, que fazem com que o texto realize uma dobra sobre si mesmo e nos desafio para uma releitura. Fica o elogio especial aos epítetos, que conferem um tom sutil de humor ao mundo do qual essa faísca veio.

Já em “Úrsula”, de @n_ins, a experiência foi de outro tipo de identificação. Durante esse período de isolamento social (sim, a gente tem levado a sério aqui em casa), a minha rotina marcada tem sido tanto uma âncora quanto um lembrete constante e meio enervante.

Acordar todos os dias e tentar seguir uma lista de tarefas para evitar cair num limbo de incompreensão sobre a passagem do tempo é um resumo desses últimos meses. A personagem da faísca falou diretamente comigo, num convite para não me esquecer de que ainda há muita coisa que precisa sobreviver à rotina segura da lista de atividades. É curioso como tantos elementos hoje frequentes e discutidos, estão ali presentes. Entre a vídeo chamada apressada e a dúvida sobre até quando durará o combustível (alimento, dinheiro), a nossa capacidade de sentir e de se expressar pede para ser exercitada antes que seja necessário um grito. Terminei a leitura dessas faíscas como se observasse parte de um retrato estranho do qual faço parte. Acredito que isso seja bom.

Episódio 24

A vida corrida do final de semestre não me deixou comentar antes. Então, com algum atraso, vamos aos comentários sobre os três últimos episódios da segunda temporada da @faiscamafagafo e já na expectativa pela terceira!

“Contém glúten”, de @diegoguerra, é quase o posto narrativo do famoso conto do Terry Bisson, “Eles são feitos de carne”. No caso de Bisson, há apenas o diálogo e a conclusão enojada daqueles que observam os humanos, que dá título ao conto. No caso de @diegoguerra, não há diálogo, mas sim o mesmo tipo de informação fria com que nós lidamos com os seres vivos dos quais nos alimentamos. Isso me fez pensar em como nós criamos estruturas para nos afastar da compreensão de que nós somos mais uma espécie que habita esse planeta. Ao nos posicionarmos como algo muito distinto dos demais seres vivos com os quais dividimos a Terra, nos damos a liberdade de sempre imaginar esse mundo como algo que nos pertence. Pensar a nossa existência como algo que pertence a esse planeta seria uma atitude que resolveria boa parte dos nossos problemas.

“Samambaias artificiais”, de @spellofkindness me lembrou muito da sensação de ler a trilogia “Comando Sul”, do Jeff Vandermeer. Sempre tive dificuldade de me entrosar com prosas que possuem mais descrições psicológicas do que ações e acontecimentos. Essa é uma limitação que aceito e com a qual lido bem. O tipo de prosa descritiva que encontro em “Samambaias artificiais” me deu um refresco para essa limitação. A capacidade de um texto incutir estados psicológicos em descrições de imagens, ações e acontecimentos é algo que enriquece muito a imaginária de uma narrativa. Isso me lembra Bachelard e me faz pensar em possíveis relações entre sua escrita para as análises do imaginário e as narrativas new weird, que tanto têm me atraído nos últimos anos. Só por me dar vontade de escrever e pensar nessas relações, as faísca de @spellofkindness já foi um baita experiência!

Episódio 25

“Depoimento reduzido a termo da bruxa Lila sobre o desaparecimento das freiras de Quaraí”, de @mauriciopiccini, me pegou de péssimo humor. Isso pode ser algo bom, já que se trata de uma narrativa com boa dose de humor. Isso também poderia ser algo ruim, no caso dessa narrativa em específico, pois eu detesto as partes de depoimentos reduzidos a termo do Projeto Humanos.

Textos burocráticos e jurídicos, em geral, me fazem ler sem ler de verdade. Essa narrativa teria tudo para ser esquecível, não fosse por Dona Lila. Nem sei se ela gostaria de ser chamada de “Dona”, mas eu a imaginei como uma senhora. Eu estou pensando se ela gostaria ou não gostaria de ser chamada desse ou daquele modo! Taí uma demonstração de como essa personagens foi bem apresentada, mesmo num depoimento reduzido a termo.

“Sobre o tempo e além”, de @rc_olivares, assim como a faísca anterior, me pegou no meio da chateação. Tudo bem, eu já havia sido amaciado pelo depoimento de Dona Lila. Mas, ter de repassar “Mother!”, um filme que eu detesto, aí já seria demais! Novamente, eu teria tudo para me arrepender de ter lido essa faísca, assim como me arrependi de ir ao cinema assistir aquele filme. Assim seria, mas que puta final engraçado bicho! Esse é um exemplo de como que uma frase consegue revirar toda uma narrativa. Aquele final me fez rir em companhia do texto e melhorar muito o final do dia!

Episódio 26

“Puzzled (pedaços de você)”, de @CronicasTxt, me fez pensar em como é difícil lidar com lembranças negativas, principalmente de relacionamentos e ainda mais quando são coisas ínfimas. Apesar de lidar bem com minhas memórias de relacionamentos, a minha vênus em escorpião não esconde que jamais me esquecerei do calote que levei em uma antiga república ou do livro que nunca me foi devolvido por uma ex-colega de faculdade. Gosto de pensar na ideia de que deixamos peças nossas por aí e que agregamos outras peças que passam a ser indispensáveis para nós. Enquanto lia, pensava nas peças que compõem as personagens como coisas vivas, que poderiam desejar abandonar alguém ou mudar de pessoa. Isso significa que pirei muito na história? Sim, significa. Também achei essa faísca uma ótima inspiração para métodos de compor narrativas!

“O mago da palavra”, de @AlaorGuilherme, me causou identificação imediata, embora eu esteja muito distante da paciência do protagonista. Tenho muita dificuldade de lidar com a negação do diálogo. Quando alguém do meu convívio demonstra um incômodo, eu pergunto “o que foi?” e a pessoa responde “nada não”, já vem a vontade de bater a cabeça no concreto. Só que, diálogos saudáveis não podem ser forçados. Pra pessoas sem paciência, é necessário o exercício diário de respeito ao silêncio e à preguiça alheia. Por outro lado, também é necessário construir táticas carinhosas, pois, muitas vezes, o diálogo só conseguir surgir quando uma parte se esforça para que ele aconteça. Ah! Fiquei curioso para saber como seria a relação cotidiana entre o psicomago e o motivadorista. No mínimo, isso daria umas boas risadas!

Terminada mais essa temporada da @ faiscamafagafo, só posso dizer que estou na expectativa pela próxima! Essa foi uma das melhores iniciativas de incentivo à leitura e à produção de narrativas por novas cabeças que encontrei em muito tempo! ❤

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Um pensamento sobre “[resenha] Faísca, temporada 2, parte 2

  1. Pingback: NPC 20: Como alimentar artistas independentes – NOTA manuscrita

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