[texto de processo] Um risco prometido

Miririm

Imagem de capa. Risco no tempo do devir. Fabiana Pedroni. Intervenção digital sobre imagem microfilmada de fólio de manuscrita medieval, 2020.

Texto de Fabiana Pedroni

Como quem guarda xícaras para o natal, eu tinha uma imagem muito especial, guardada desde 2013. Talvez ela fosse um pouco mais antiga, ou menos antiga. De tão protegida, ela se perdeu. Outras imagens me inundaram, outras eu as comi. Enquanto o bombardeio de imagens continuava, essa imagem especial ficou guardada e meio esquecida.

Foi naquela manhã chuvosa, com todo o clichê que uma mudança importante exige, que eu a encontrei. Foi Dakí quem me contou das meias-memórias, na revista experimental em constante reformulação, a Miririm #01. O que havia em minha memória pela metade?

Abri a pasta “tempo do devir” e a encontrei entre outras páginas. Fólios de um manuscrito mutilado, posto sob fundo preto, a marcar a ausência daquilo que, um dia, esteve no mesmo corpo. Era essa a imagem que guardei, com afeto, para este dia.

Do latim devenire, o devir marca o chegar, o se tornar. Aquela meia-memória era uma promessa não cumprida, uma vontade que me perseguia. Naquele contato, houve um sentimento contraditório de felicidade por guardar e meio-esquecer, e tristeza por saber que, por conta desse péssimo hábito, não posso trazer outras meias-memórias, já completamente perdidas.

Não há o que fazer, além de continuar o processo de desdobrar, continuamente, a cada vontade. É um risco que se precisa correr: quando guardar, não se perder.

Miririm é incrível nesse sentido, ela guarda várias meias-memórias, do filme não visto, do traço no caderno, do encontro com pessoas insuportáveis, do dia a dia que você acha que se esqueceu, mas está ali registrado. Essas composições são uma junção complexa de tempos e formas que brincam com a nossa autoconsciência: não sou eu aquela ali? Esta cidade parece a minha! Também estou nesse jogo! A meia memória parece ganhar força quando nos projetamos na outra metade dessa memória: Miririm.

E continuamos a construir essas histórias cheias de tempos atravessados e costurados.

***

Texto presente dentro da imagem de capa:

Eu encontrei uma meia memória
Perdida entre papeis antigos
Eu a cacei por dias sem saber
Memória de pele
Memória de rasgo
Foi Miririm quem a trouxe na mochila do robô
Pele mutilada
Rasgada pelo tempo
Atravesso cada fresta e dilacero uma costura imaginária
Aqui Daqui
Só para brincar com as palavras
atravesso a margem [escrita atravessa a margem da imagem, entre as duas colunas originais de texto do manuscrito]
e saio da imagem par [a palavra para aqui, pois sai da imagem e entra na massa negra do fundo]
ser aquela que talvez exploda o robô

Manuscrito medieval, Beati in Apocalipsin libri duodecim, c.900-1000. Fólio 1r. 35 x 24 cm. Disponível online na BNE

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