[ensaio] Sobre pelúcias e rússias curatoriais, parte 1

Texto de Rodrigo Hipólito

Outro dia, numa reunião do Pindorama, comentávamos sobre como alguns textos se perdem na internet. Endereços abandonados, links quebrados, trabalhos perdidos.

Nesse 2020 catastrófico, tenho feito alguns mergulhos em textos que escrevi, publiquei ou não, entre final dos anos 1990 e o surgimento do Nota. Há surpresas desagradáveis e outras muito felizes. Os materiais mais antigos e jamais publicados, quase em todos os casos, necessitarão de um tratamento muito carinhoso para poderem vir a público. Outros textos fizeram partes de publicações e projetos que não existem mais. Decidi que muitos deles merecem sair do limbo existência/não-existência.

Esse é o caso de “Sobre pelúcias e rússias curatoriais.” Esse texto foi publicado num antigo blog, integrante do projeto Rede Cultura Jovem, da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo. Depois disso, republiquei o texto em um antigo blog pessoal.

Hoje, talvez eu apontasse para esse texto e dissesse que é o material de processo, um registro de pesquisas da graduação. Na época, eu o entendia como um curto ensaio e assim será mantido. Já não me lembrava de algumas das piadas e ironias aí presentes. Acredito que ainda seja divertido e, de alguma maneira, útil para quem começa a se interessar por arte contemporânea.

Você pode encontrar a segunda parte deste ensaio aqui. (a partir de 05/11/2020)

***

Parte 1

Imagem de capa. George Segal. Instalação.

Retrato de Sidney Janis com quadro de Mondrian. George Segal. Instalação,1967. Fonte: https://www.moma.org/

dezembro de 2010.

A produção atual de arte atingiu um ponto no seu processo de contínuo autoconhecimento e expansão das fronteiras do discernimento do que é ou não é cabível à arte, que tornou-se quase impossível, para artistas de nossa época, ignorarem os ícones da sua disciplina, ou, da história que lhes dá suporte para produzirem algo para além dessa história. Certamente, não se trata aqui da produção de artistas avessos à completa mudança de paradigma da arte, ocorrida no início dos anos 1960, nem tão pouco dos chamados “artistas populares”, os quais não possuem a obrigação de desenvolver problemáticas atuais. Esse aviso é importante, pois as duas espécies de artistas, citadas na sentença anterior, guiam suas produções sobre a rodovia da estética, o que significa que podem produzir objetos esteticamente belos, mas que não seriam, necessariamente, objetos de arte.

Um ótimo exemplo pra compreender essa distinção nos é dado por Arthur Danto, no já indispensável livro Após o Fim da Arte. Danto nos leva a imaginar como seria encarado um objeto próprio da nossa época que fosse, milagrosamente, transportado para a época do filósofo Emanuel Kant (fins do século XVIII). O objeto em questão é uma vela de ignição e, para um indivíduo contemporâneo a Kant, esse seria um objeto totalmente desprovido de sentido prático, ou seja, não seria possível encontrar qualquer utilidade para essa vela de ignição.

A vela de ignição, que bem poderia ter seu lugar na Wunderkammer de Frederico, o Grande, seria um objeto de contemplação rigorosamente desprovido de interesse, uma vez que ele só serviria mesmo para ser contemplado, ou então poderia ser usado como peso para papéis. Ela atenderia quase que exatamente à caracterização do belo em Kant como “finalidade sem fim específico”: talvez ela parecesse útil demais para ter alguma finalidade ornamental, mas ninguém poderia imaginar que finalidade seria essa. (DANTO, 2006, p. 92)

Na sequência dessa citação, o autor nos lembra que essa vela de ignição poderia – e esse “poderia” faz bastante diferença – hoje, ser considerada um objeto de arte, pois, após a demonstração feita por Marcel Duchamp e seus acompanhantes no início do século XX e a retomada dessa demonstração no início dos anos 1960, podemos reconhecer que as propriedades estéticas nada tem que ver com a possibilidade de um objeto ser ou não uma obra de arte. Compreenda-se, então, que os artistas que trabalham sob o firmamento da estética kantiana, utilizada por Greemberg na crítica formalista, não estão contemplados nas ideias abaixo. Ou seja, quando a palavra “arte” aparecer, nas próximas linhas, ela não indicará essa espécie de produção.

Voltemos, então, à utilização dos ícones da história da arte para a construção das obras da chamada arte contemporânea. É possível que tal utilização seja feita de diversas maneiras e, sejam elas quais forem, é preferível que engendrem discussões próprias da época em que a obra é produzida. Quando acontece o oposto, surge um objeto discrepante dentro de uma exposição de arte. Vejamos, primeiro, o que é preferível.

É possível encontrar obras de arte que utilizam-se das marcas – e mágoas – passadas para evidenciar as características do Sistema de Arte, como é o caso do Retrato de Sidney Janis com quadro de Mondrian, obra de George Segal (1967) e também de Picasso’s Meninas, de Richard Hamilton (1973) – no primeiro caso, é utilizado um quadro original de Mondrian, adquirido pelo marchand retratado na escultura, como exemplar de um tipo de arte que passou a ser visto à distância, a arte pura. Já no segundo caso, “insinua-se (…) a suspeita de que Hamilton lamenta não apenas a perda de Picasso, mas de uma tradição moribunda da história da arte que é praticada” (BELTING, p.178). Outro exemplo positivo é a produção de Rodrigo Braga, que lembra bastante as obras de art nonsense, porém, com uma proximidade caótica entre o conceitual e o perceptual possível apenas com os meios atuais. Isso permite ao autor atingir o público em cheio, sem ter que recorrer à memória comum ou a clichês aversivos – suas obras normalmente fogem da identificação imediata, tanto pelas ações incomuns nelas indicadas, quanto pela dúvida do público se é ou não uma imagem real – como é possível constatar na série Risco de desassossego (2010).

Imagem de capa. As Meninas. Picasso. Richard Hamilton.

Meninas de Picasso. Richard Hamilton. Pintura, 1973. Fonte: https://www.museodelprado.es/

Acrescente-se ainda, junto desses exemplos de obras que utilizam-se, positivamente, de ícones (tanto imagens, quanto ideias e processos) próprios da história da arte mais recente, o reconhecimento de parte da produção de Alex Vieira. A parte seria aquela em que encontramos, inicialmente, a colagem, não a colagem material, mas de ideias, empreendida pela cultura punk, a qual tem passado por contínuas transformações e agregado uma carga de ideais crítico-agressivos tão variada, nos últimos trinta e cinco anos, ao ponto de dificultar seu reconhecimento. Essa colagem de ideias da cultura punk é retomada por Alex Vieira com um olhar que mescla a marginal xerox art com a hipertextualidade atual – um pouco disso nos foi apresentado em Lote 64 (2010). O resultado disso é a utilização da estética como meio, algo bastante raro na produção de arte que cerca esse artista.

Essas são indicações proveitosas de obras que, inevitavelmente, referenciam o universo da arte. O oposto disso é, aqui, chamado de “pelúcia”. A pelúcia seria um objeto estético, belo ou não, que faz uso do vocabulário da história da arte, principalmente da história recente (isso se for possível considerar a arte após a década de 1960 como parte da história da arte, já que os dois autores citados aqui pensam que não), para construir-se e dar uma impressão de arte. Pelúcias costumam ser muito parecidas com arte e, exatamente por isso, causam um grande constrangimento quando postas no mesmo espaço que obras de arte. Isso porque, objetos dentro de galerias e museus de arte já são envoltos pela aura do espaço próprio para se encontrar arte. Quando encontramos uma pelúcia no mesmo patamar de uma obra de arte, chegamos a questionar o nosso entendimento sobre o assunto, por mais apurado que seja. Esse constrangimento não é causado pelo autor da pelúcia, mas pelo curador ou pelo produtor da exposição – no caso de tomar a atitude de inserir esse objeto na exposição com consciência das consequências.

Mas, essa atitude do curador ou do produtor, também não possui a capacidade de transferir a pelúcia para o campo da arte, mesmo que seja uma atitude, aparentemente, além da estética. Ao inserir uma pelúcia numa exposição de arte, o curador ou o produtor efetua uma ação a lá Duchamp. Seria, então – e lembrem-se de que é necessária a consciência de sua atitude por parte do curador ou do produtor– um readymade bastante bizarro. Um objeto estético é inserido numa exposição de arte, embora não seja arte, mas, através da fabulosa estratégia Duchamp de transfiguração de qualquer coisa em obra de arte pela designação, há a tentativa de transformá-lo em obra. Note que, nesse caso, o autor da obra de arte não seria o autor do objeto, mas o autor da atitude.

Essa tentativa, no entanto, fracassa, pois o readymade também é um ícone da história da arte. Evidenciar que qualquer coisa tem a possibilidade de tornar-se arte, ou de ser utilizada por ela, pode ser uma discussão não apenas válida, como necessária, dentro de uma sala de aula. Já em uma exposição dita contemporânea, não ocorre o mesmo. Nesse caso, é melhor dizer: se for para brincar de readymade eternamente, voltemos a esculpir em mármore.

Melhor não entrarmos da infrutífera luta por levar a arte para um público médio, pois, aparentemente, o resultado disso é uma assustadora epidemia de Alzheimer que nos leva a esquecer do que tratávamos a pouco nesse campo. E imaginem o quão horrível seria deixarmos de nos aprofundar nas ideias mais complexas depois de tanto tempo de caminhada, simplesmente por esquecimento.

Em suma: a pelúcia pode apenas demonstrar a sua inutilidade, ou tentar incitar uma discussão sobre a estranheza do uso de seus materiais, o que também não abandona a estética. Isso choca tanto o público médio, acostumado a procurar o agradável, e irrita as obras que colocam-se “para além da estética”. Ocorre que pelúcia é uma vela de ignição no século XVIII. Ainda mais, a pelúcia é uma vela de ignição que não pode ser vista nem mesmo como objeto belo, pois faz uso de ícones da história recente. Talvez não seja exatamente uma vela de ignição, mas uma pilha de coisas que um dia tiveram significados e que não mais os possuem, agrupadas apenas para serem algo esteticamente diverso do resto.

Exposições coletivas de jovens artistas comumente possuem pelúcias, pois é mais fácil para os curadores e produtores utilizarem-se dos equívocos de artistas sem grande experiência. Um dos motivos para curadores e produtores agirem dessa maneira é a crença de que causarão polêmica. Apesar de a polêmica não ser causada apenas por se exibir o absurdo. Quando se parte do equívoco, apenas a sorte pode lhe garantir o acerto.

Referências

BELTING, Hans. O Fim da História da Arte: uma revisão dez anos depois, São Paulo: Cosac Naify, 2006.

DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte: A arte contemporânea e os limites da história, São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

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