
Clarice Helmer. Sem título. Acrílica sobre papel. 2010. Obra exposta na mostra “Paisagens do corpo/Atemporais”, Galeria Homero Massena, Vitória – ES, 2010), 2010.
Texto de Rodrigo Hipólito
Eu continuo na experiência de reler coisas que escrevi mais de uma década atrás. Naquela época, por conta de pesquisa, eu vivia submerso em fenomenologia hermenêutica e nuns existencialismos que podiam cair para essencialismos rasos.
Não vou ser tão crítico com o eu do passado. Camilla Saloto, na sua coluna do Pataquadas 24, expôs muito bem alguns motivos pelos quais não devemos negar à juventude o seu direito de ser intensa. Se eu me irrito com meu estilo de escrita da época? Ah sim!
Talvez a gente sempre repita parte dos estilos que mais lemos em um momento. Isso nem sempre é ruim. O desejo de ser levado a sério não deve ser excluído dos nossos processos de criação.
Com o tempo, percebi que eu inventava mais complexidade do que as coisas das quais eu queria falar possuíam. Isso era uma tentativa honesta, ainda que egoísta, de deixar o mundo mais interessante. Com o tempo, eu percebi que o mundo é mais gostoso quando é mais simples de saborear.
Começou a chover. Chega dessa introdução. Eis um texto lá de 2010.
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Somos numa longa e forçada pausa para o descanso, sentados em um tamborete de três pernas, reclinados para o canto da sala, entediados com uns resquícios de nossa imaginação criadora. Assim somos. Acomodados nesse banquinho, nós descansamos as pernas e os braços, após completar o exercício da manhã: desenhar mil e uma vezes no quadro branco a mesma frase: “janelas para dentro e para fora, portas abertas não sustentam pinturas”. Estendido o castigo da repetição ao descanso, nós estamos lá, em lótus. Nós olhamos para um chiaroscuro desprezado, no canto esverdeado da sala, somos a sociedade da despotenciação do espírito.[1]
Após a iluminação a respeito da destituição de significado, promovida como um suicídio grupal, por culpa dos conteúdos imagéticos que produzimos, através do próprio fluxo de produção de imagens — talvez como uma resposta à necessidade de energia, de surgimento de vontade, que sustenta nossas relações-simulacro com o real — quando nos apercebemos disso, produzir um item estético ou um item que paute-se por essa espécie de relação, torna-se constrangedor. Ainda, quando esse constrangimento é exercitado no campo da Arte, ele é elevado ao ponto de impropriedade. Nosso olhar aceita o suplício, a corrosão arrítmica da imaginação criadora, por ordem de tensão desigual com a imaginação reprodutora.[2]
A imagem não é má, mas é uma arma. Essa coisa, a imagem, é utilizada como uma arma destituidora de significados. O que a imagem atinge pode extraviar-se, ser expulso do campo do real, a depender da intensidade do contato. A imagem é uma das artimanhas da despotenciação do espírito. Há uma frieza e uma crueldade na atitude de tornar-se material. Mesmo que queira desculpar-se por um afastamento da posição platônica, uma imaginação criadora acabará por tornar-se imaginação reprodutora. Isso acontecerá quando ela transpuser a fronteira entre ruído[3] — gerado pela fricção da vontade sádica com a resistência material — e a imagem comunicada (realização estética).
Apesar de as evidências brotarem, florescerem e frutificarem de todos os lados, como entes tão pouco carismáticos que nos trazem ânsia desanimada de fuga, ainda assim, é forçoso admitir a existência de saídas. Diante dos desenhos de Fagner Chaves (apresentados como “Paisagens do Corpo”) e das pinturas de Clarice Helmer (que compuseram a parede oposta aos desenhos, sob o título de “Atemporais), podemos experimentar um exemplo de como é possível, e ao mesmo tempo difícil, avançar sobre e para além da estética como modo de relação primordial na arte.
Após entrar na Galeria Homero Massena e acompanhar, pacientemente, cada item exposto, a dificuldade surgiu por qualidades inegáveis dos trabalhos. São qualidades de transmitir uma expressão através de uma construção imagética quase exclusiva do conteúdo dessa expressão.
Os desenhos de Chaves são de elogiável competência na apresentação de uma desfiguração do corpo erótico, como já aponta o texto curatorial.[4] É como se o artista construísse jogos com bonecos de massa sobre o papel e como se o sucesso de uma forma de contorcionismo enervante abandonasse tudo. Os bonecos dispensados insistem e guardam um desejo angustiante por movimento. Nada podem para o movimento, centímetro e meio, não. O movimento negado, mesmo em sua tortuosidade, mesmo quando corresponde à trava corporal, constrói com a forma um vazio perseguidor. Somos perseguidos pelo vazio e a solução, a esperança de encontrar a completude, parece estar no desenho seguinte. Corremos para ele e somos agarrados por uma incompletude sorrateira. Ela nos expulsa e nos guia pela parede tantas vezes quanto forem necessárias para estacionarmos e esboçarmos uma questão. Tateamos uma última vez para saber se a obra de arte que se diz existir ali é algo referente a um corpo estético — plano de imagem ou carne pesada — uma unidade, ou algo referente à busca através da incompletude da forma, a série. A unidade é um ator, a série é outro. Mesmo que ambos estejam com o mesmo texto, a atuação ditará o reconhecimento da coisa apresentada e modificará essa coisa.
Quando chegamos às pinturas de Clarice Helmer, habitamos uma dúvida ácida, uma necessidade de escolha entre a unidade (oneness) e a série. O conflito recrudesce pela violência da afirmação seriada. No entanto, esse conjunto de composições sintéticas, encarado na unidade, possui uma fuga mágica insuperável: a significação através da expressão. Nós nos comunicamos diretamente com uma linguagem construída na especificidade da transmissão de uma expressão, como um idioma sempre estrangeiro, numa inconstante tentativa de explicar-se e armado apenas com seus significados.
A dúvida entre a unidade e a série é um foco de uma insegurança maior, o descrédito nas possibilidades justas de produção de itens estéticos inseridos na consciência de uma sociedade da despotenciação do espírito — ou, no caso no sistema aqui utilizado, a possível impropriedade da estética como modo de relação primordial na arte.
[1] Ver Fernando Pessoa, “Indigência e Arte”, In: Arte em Tempo Indigente: Seminários Internacionais Museu Vele 2008 “…E para que poetas em tempo indigente”. Vila Velha, ES: Museu Vale, 2008; Gilvan Fogel, “A respeito da “despotenciação do espírito”, In: Revista Sofia, Revista do Departamento de Filosofia da UFES, vol IX, 2004; e originalmente em Martin Heidegger, “Introdução à Metafísica”.
[2] Bachelard trabalha as definições de “imaginação reprodutora” e “imaginação criadora” em diversos pontos de suas obras. Algumas destas questões podem ser encontradas em Gastón Bachelard, “A poética do espaço”. In: Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978; ___. Surracionalismo; O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1985.
[3] Ver Michael Foucault. “A Linguagem ao Infinito”, In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema, 2º Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
[4] Ricardo Maurício Gonzaga. “Traços do desejo: as paisagens gráficas do corpo” (texto curatorial apresentado no panfleto de divulgação da exposição “Paisagens do corpo/Atemporais”, Galeria Homero Massena, Vitória – ES, 2010), 2010.
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