[resenha] A cor que caiu do céu, de H. P. Lovecraft

Imagem de capa. Color out of space. Lovecraft. A cor que caiu do céu.

Imagem de capa. Captura de tela do filme Color out of space (direção Richard Stanley, 2019). Paisagem noturna com casa antiga de madeira, de dois andares, ao fundo e à direita. No primeiro plano, à esquerda, há um poço do qual sai uma forte luz multicolorida na direção do céu.

Lovecraft, H. P. A cor que caiu do céu (trad. George Gurja), 1966.

Texto de Rodrigo Hipólito

Um tempinho atrás (não mais do que quatro ou cinco anos), uma aluna me perguntou se eu conhecia Lovecraft. Ela começara a ler alguns dos seus contos e ficara encantada. Eu disse que conhecia, comentei qualquer coisa sobre como o seu jeito de escrever e apresentar o absurdo continuava a ser algo bem influente e que eu também gostava, embora já houvesse anos que não lia ou relia nada dele.

Nesse começo de ano eu reli A cor que caiu do céu e o motivo foi a adaptação para o cinema. Eu gostei do filme de Richard Stanley (2019), pois há, ali, muitos dos elementos que sempre me fizeram gostar do estranho: a ausência de explicações em meio a tentativas de explicação que falham ou ficam inacabadas; um elemento novo que desloca a percepção da realidade e muda os rumos do quotidiano; um apelo estético detalhista voltado para a ambientação e não para a informação; um ritmo narrativo bêbado, mas nem por isso lento; um final pouco relevante e até mesmo abrupto; e um retrogosto realista que aumenta a fome de ficção.

[alerta: o filme contém Nicolas Cage]

Eu me perguntei se esses mesmos elementos estavam presentes na narrativa original, da qual eu me lembrava mais por comentários do que pela minha leitura. Ainda valeria a pena como experiência de leitura? Hoje, com mais consciência de certa precariedade estilística do autor, eu ainda diria que gosto da sua escrita? Hoje, com o ranço decorrente da compreensão de que não há acusação de anacronismo que limpe a barra de racistas de qualquer época, eu poderia ter uma experiência saudável de leitura?

A resposta para essas três perguntas é a mesma: mais ou menos.

Muito do que torna as narrativas de Lovecraft interessantes é o que foi construído em volta. Eu digo isso não apenas com relação ao fato de que a organização desse “universo” Lovecraft não foi feito por ele e é dependente das amarrações puxadas por outros autores, após a sua morte. Quando nós passamos a gostar de produções que foram fortemente influenciadas por outras, nós agregamos as antecessoras ao nosso gosto.

Isso acontece mesmo quando você não entrou em contato direto com as produções que influenciaram aquilo que você gosta. Eu não sei se é possível ou desejável fugir desse processo. Em exemplos simples: você pode gostar de distopias e não ter nenhuma paciência para ler Zamiátin, gostar comédias românticas e nunca ter lido Jane Austen, ou gostar de cyberpunk e não conseguir passar um parágrafo de William Burroughs. Mas, aquelas referências estarão ligadas aquilo que você gosta e isso faz com que você tenham impressões positivas sobre elas.

Você não precisa ler as referências daquilo que você gosta e ainda menos gostar delas. É bom que você as conheça e é bom que você tente contato. Faça uma visita e se não gostar não volte.

Eu tenho um pequeno problema. Eu li Lovecracft enquanto eu desenvolvia meu gosto por weird fiction, new weird e qualquer ficção científica que misture elementos do horror e pitadas de fantasia. Há uma grande mistura de referências pessoais sem qualquer cronologia e, por isso, eu não consigo evitar comparativos descabidos. Não me parece razoável comparar a qualidade e o efeito da prosa dos precursores com a dos sucessores. Eu sei disso. Ainda assim, eu não consigo evitar.

Com consciência disso, a leitura de alguns contos de Lovecraft ainda pode valer a pena (não de todos). A Cor que caiu do céu continua a funcionar como relato eficiente. A monotonia do narrador, típica do autor, é condizente com o ambiente criado, as ações das personagens e a duração textual dos fatos narrados. Tudo é arrastado e isso faz sentido quando o ambiente e as personagens são arrastados pelo elemento estranho.

Apesar de muitas das análises e resenhas sobre essa história ressaltarem que a ameaça é algo abstrato (a cor), isso nunca me pareceu ser o caso. Ressaltar a cor tem menos relação com a ameaça que surge na história e mais com a percepção das personagens, que é onde reside o horror. Um elemento alienígena cai em uma região afastada e se espalha pela floresta, plantações, animais e ser humanos que moram no local. Poderia se tratar tanto de um elemento químico quanto de uma forma de vida que se alastra como uma praga e modifica outras formas de vida em sua tentativa de sobrevivência. A explicação é irrelevante.

As personagens não sabem do que se trata e você, ao ler, também não saberá. As personagens não possuem vocabulário adequado para descrever e compreender o que caiu do céu, então, você também não terá. As personagens têm a cor indescritível como principal característica das mudanças que ocorrem no ambiente, então, essa também será a sua referência.

Essa talvez seja a principal qualidade que posso ressaltar dessa história. Conseguir entregar para quem lê apenas aquilo que será possível entregar aos personagens que vivenciam a história é algo difícil de ser feito sem sacrificar o conforto de quem lê. Quando você faz isso, os acontecimentos narrados podem ficar sem explicação, personagens podem desaparecer da história sem qualquer desculpa e pode até não haver final. Quando você se baseia tanto na percepção das personagens, a história pode ficar estranha, pois a vida é assim.

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