[transcrição] Como não ter um passatempo

Imagem de capa. O Iluminado. Stanley Kubrick,

Imagem de capa. Captura de tela do filme “O Iluminado” (Stanley Kubrick, 1980). Cena da frase “All work and no play makes Jack a dull boy” sendo datilografada.

Este texto é a transcrição do podcast Não Pod Chorar 22

Texto de Rodrigo Hipólito

Ontem, durante a gravação de um programa, eu brinquei com a ideia de que uma das promessas do próximo prefeito de Vitória poderia ser a recriação do terminal Dom Bosco. Não foi uma piada para que as pessoas que gravavam o programa comigo entendessem. Quem está em Vitória a algum tempo e for no máximo uns poucos anos mais nova do que eu, sem dúvidas entende esse comentário. Não quero ser passadista e eu espero que um comentário como esse não transmita essa ideia. Eu tenho asco de passadismo!

Pra você que não é de Vitória ou não se lembra do terminal Dom Bosco, ele era um terminal de ônibus intermunicipal fincado no meio da capital. Aquele era o único terminal intermunicipal da capital na verdade. Todos os demais terminais ficavam nas outras cidades da região metropolitana. O terminal Dom Bosco foi desativado em 2009, se não me engano. Não vou parar pra procurar a data exata agora. Isso nem importa.

Na medida em que construíram outros terminais espalhados pela grande Vitória e os trabalhadores e trabalhadoras puderam ser afogados e desafogados no começo e no final do dia com mais eficiência, a cidade de Vitória não quis mais que existisse um terminal intermunicipal estragando sua paisagem.

Eu realmente acredito que a extinção do terminal Dom Bosco foi mais uma questão de estética do que de qualquer outra coisa. Ele funcionava bem e era o único que ficava aberto vinte e quatro horas. Até hoje, nenhum outro terminal fica aberto vinte e quatro horas.

Essa era uma das principais características que tornavam aquele lugar em um refúgio pra todo o tipo de gente perdida da cidade. Eu fui uma dessas pessoas durante um tempo… dessas pessoas que procuravam um lugar minimamente seguro para passar algumas horas antes de começar o turno de trabalho.

Não que aquele ligar fosse confortável. Definitivamente aquele lugar não era confortável. O terminal se resumia em duas ruas paralelas, que começavam na avenida Vitória e terminavam na avenida Beira-mar. Um das ruas era usada como garagem e a outra, que dava para o muro de uma faculdade, era onde nós pegávamos os ônibus. Não havia exatamente plataformas de embarque.

A rua era apertada e a calçada era ocupada por dezenas e barraquinhas improvidas, que há estavam ali há anos. A maioria das barracas mal fechada algumas horas durante o dia e a noite. No pequeno espaço entre as barracas e a rua, a gente fazia as filas de frente para as placas que marcavam o local de parada de cada ônibus.

Dali, daquela rua, saiam ônibus para todos os cantos da região metropolitana. Isso significa que pessoas de todas as regiões passavam por ali. Todos os ônibus saíam lotados em praticamente qualquer horário. Depois de algum tempo, as pessoas desconhecidas já se acostumavam com as presenças umas das outras e se sentiam mais seguras quando tinham que chegar ao terminal de madrugada ou no final da noite. Esses eram os principais horários em que eu frequentava aquele lugar.

Eu havia começado a dar aula na rede municipal de Cariacica havia pouco tempo e peguei todas as turmas que me ofereceram. Havia dias em que eu dava aulas nos três horários, manhã, tarde e noite. Eu chegava ao terminal lá pelas quatro e meia ou cinco horas da manhã e voltava pra ele depois das onze da noite. Era uma rotina bem cansativa.

Não havia tempo para ajeitar muito as coisas. Às vezes, eu tomava café, almoçava e jantava na escola. Outras vezes, eu comia no terminal. É que naquela rotina desgraçada de trabalho eu ainda conseguia achar espaço para certas coisas que tornam a vida interessante, ainda que meio patética ou dramática demais.

Eu ainda fazia graduação. Então, nos horários em que eu não dava aulas, eu pegava as disciplinas que estivessem disponíveis. Isso significa que, às vezes, eu precisava sair da UFES de noite, depois de ter dado aula em Cariacica, passado no terminal no meio do dia. Se eu fosse voltar pra casa, seria quase um bate volta. Não valeria a pena.

Se fosse hoje, eu não acredito que apenas diria não. Eu pediria para reduzir minhas horas de aula, faria menos disciplinas e tentaria separar um tempo pra comer e dormir com o mínimo de autorrespeito. Não que a idade torne as pessoas mais espertas. Mas, a juventude tem um tipo especial de burrice pra guiar suas decisões.

O que eu fazia era tomar banho em alguma república de conhecidos ou no centro de educação física, e não voltar para casa. Caso eu não encontrasse uma cama ou um sofá em alguma república, a escolha mais evidente era parar no Cochicho, um dos bares mais conhecidos daqui, e estudar até que desse o horário de ir para o terminal e começar mais uma jornada de trabalho.

Aquela era uma rotina de merda e a prova de que a idade não nos deixa mais espertos ou inteligentes, é que aquilo ainda me parece ter o seu charme. Foi um dos períodos em que eu mais estudei. Na época, eu diria que a insônia me ajudava a manter a concentração na leitura no meio do bar. Hoje, eu estaria desesperado para conseguir dormir em paz.

Eu ficava até o final da noite. Muitas vezes acontecia de a Dona Conceição dizer pra todo mundo que a cerveja havia acabado e fechar todas as contas. As pessoas iam embora e sentávamos somente nós três pra e uma última cerveja, ela, eu e o Luiz, o garçom.

O Luiz já até morreu. Depois disso eu comecei a frequentar menos o Cochicho, não por desgosto, mas porque a rotina mudou. Eu não consegui manter mais aquele ritmo de vida.

O terminal Dom Bosco havia sido fechado e as linhas de ônibus divididas entre outros dois terminais. O tempo que eu demorava para chegar no trabalho e do trabalho para a UFES e da UFES para o trabalho e do trabalho pra casa ou pra qualquer outro lugar havia dobrado ou triplicado. Eu não tinha mais como chegar no terminal às 3h da madrugada, como acontecia de vez em quando, me sentar em um dos bancos de concreto no canto de uma das barracas e dormir com tranquilidade no meio do amontoado de trabalhadores que tentava fazer a mesma coisa.

Muita gente passava as noites no Dom Bosco, bebendo nas barracas e para ela aquilo era uma diversão que entrava em conflito direto com o meu cansaço. Eu poderia muito bem ficar toda a noite sentado com duas ou três cervejas no Cochicho. Mas, no terminal Dom Bosco não. Quando eu pisava lá, ou eu queria me sentar e cochilar ou apenas tomar um café, comer um salgado e pegar logo meu ônibus.

Fecharam o terminal e, de alguma maneira, isso fez parte da minha decisão de parar de dar aulas e ir estagiar num Museu, no Centro de Vitória. A rotina não melhorou lá muita coisa. Eu pesava uns 54 quilos, quando eu deveria pesar pelo menos 70.

Acho que eu sempre odiei todos os trabalhos que eu tive. Acho que, no meio desses trabalhos, eu sempre tentei encontrar alguma coisa que tornasse a vida um pouquinho mais emocionante, algo que desse um verniz de legitimidade ao sofrimento. Hoje eu não tento fazer mais isso.

Outro dia, um colega de trabalho com o qual eu devo ter trocado duas dúzias de palavras, mas com o qual eu trabalho há cinco anos, veio me perguntar qual era o meu hobby. Eu disse que não tenho hobby. Ele ficou me olhando por alguns segundos e começou a falar sobre os hobbies dele.

Eu nunca tive hobby. Eu detesto a ideia de hobby, de passatempo. Chamar algo que eu faço por prazer de passatempo é quase como pedir pra eu desistir da vida.

Quando a pessoa me pergunta isso, é como se ela pressupusesse que o que nós devemos fazer da vida é trabalhar com o objetivo de ganhar dinheiro e cumprido esse objeto o resto é sobra, a nossa saúde mental, emocional e criativa tem que ser apertada no tempo que sobra. E essa saúde é pressuposta como algo tão inútil, que qualquer coisa que nós fizermos com relação a ela é apenas um passatempo, é apenas algo pra ocupar o tempo entre o início e o fim de mais uma jornada de trabalho.

Eu odeio a ideia de passatempo. A gente poderia colocar outras coisas no lugar da saúde mental também. Poderia ser o trabalho voluntário, poderia ser o ativismo político, poderia ser o engajamento em uma causa baseada em valores extensos como a preservação do planeta ou a equidade entre as espécies. Qualquer uma dessas e de tantas outras opções, é jogada no balaio do inútil quando não é feita com o objetivo de ganho financeiro.

A maioria das coisas que eu considero como as mais importantes para que a vida valha a pena, é aquilo que é entulhado na ideia de passatempo. Quando a pessoa me pergunta qual é o meu passatempo, é como se ela dissesse que viver é um passatempo e que o real objetivo de todos deve ser sofrer.

Essa é uma das muitas inversões malignas que esse sistema desgraçado esculpe na nossa cabeça. Acreditar, desde cedo, que sobreviver é a prioridade e que viver é algo secundário, é algo estúpido, triste e forte o suficiente para parecer que faz sentido.

Dizer que é necessário sobreviver para poder viver é quase invalidar a necessidade de viver. É essa a realidade a qual nós somos levados a sustentar desde cedo. Se sobreviver é a base e viver é secundário, então nós nunca poderíamos viver de verdade. Não dá pra viver parcialmente. Não dá para a vida ser um passatempo e a sobrevivência ser a base de existir.

Os momentos em que eu vivo não são um passatempo, são o que há de primordial. O tempo que eu gasto para sobreviver é um sofrimento que eu tento reduzir o máximo possível. Quanto menos energia, quanto menos ideias, quando menos tesão eu gastar pra manter uma realidade que quer me matar, melhor. Eu tenho tentado direcionar melhor o meu ódio e olha que não tem faltado ódio.

A cada vez que alguém me diz que “é isso mesmo, a gente tem que voltar ao trabalho, a vida continua, não dá pra parar de trabalhar, eu não aguento mais ficar sem trabalhar, a gente precisa encarar as coisas e seguir em frente” é como se eu levasse mais um chute no estômago no meio de um espancamento que parece que nunca vai acabar.

Existe uma bigorna com a palavra alienação que cai na cabeça de cada pessoa que diz me diz que “você tem que vestir a camisa da empresa, a sobrevivência da empresa é a sua sobrevivência, que vai pagar o seu salário se a empresa não crescer?”

Não tem diferença nenhum pra empresa entre um trabalhador demitido e um trabalhador morto. Se eu pegar uma maldita e doença contagiosa e morrer, a empresa vai só contratar outra pessoa.

As relações de trabalho, no Brasil, se construíram de uma maneira que o trabalhador é sempre um escravo para o patrão. Pode ser um escravo assalariado, mas ainda é um escravo. A capa de relações sociais agradáveis, de cafezinho e sorrisos em reuniões e corredores não resiste ao fato de que, pra empresa, a morte de um trabalhador é apenas a abertura de vaga para outro robô.

Novamente: pra empresa, não existe diferença entre trabalhador demitido e trabalhador morto. É por isso que eu não tenho um passatempo. Eu só tento gastar o mínimo de esforço possível no cultivo da lavoura do patrão. É muito provável que nem eu nem você presenciemos a queda desse sistema de merda? Sim.

No entanto, enquanto eu tiver consciência, eu prefiro não pesá-la com o incentivo à minha própria exploração e à exploração de todas as outras pessoas que não sentem prazer apenas em ganhar e acumular dinheiro. Eu prefiro não fingir que pode existir dignidade num mundo dividido entre amos e escravos. Talvez, da próxima vez em que me perguntarem se eu tenho eu passatempo, eu responda “passatempo não, mas eu tenho uma vida fora desse inferno”.

Tá, essa é uma frase muito pesada pra encerrar. Vou pensar em algo melhor. 

Isso aqui foi um pouco fluxo de consciência. Então, eu não sei exatamente a mensagem que eu gostaria de passar. Apenas, não morra por causo do seu trabalho. Aliás, se possível, não morra. E não tenha um passatempo, por favor, tenha mais tempo de vida.

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