
Imagem de capa. Captura de tela do filme Solaris, de Andrei Tarkovski. 1972. Natalya Bondarchuk, como a personagem Khari, olha para a própria imagem no espelho.
LEM, Stanislaw. Solaris. Trad. Eneida Favre. Editora Aleph, 2017.
Texto de Rodrigo Hipólito
“Sou responsável pelo meu inconsciente? Se não, que outro será?”
Reler Solaris depois de adulto foi estranho. O livro continua ótimo, é bom deixar isso explícito de imediato. Minhas expectativas e necessidades quando leio ficção científica é que mudaram bastante.
Solaris é um planeta quase totalmente coberto por um oceano vivo. Em mais de cem anos de solarística, cientistas e pensadores de diversas áreas pouco conseguiram compreender do comportamento daquele ser vivo. Até mesmo aceitar que o oceano era uma forma de vida foi algo demorado, por mais nítidas que fossem as evidências.
Essa ideia original continua a ser um dos pontos mais instigantes dessa história. Hoje, parece bem mais próximo o momento em que será confirmado o encontro com as primeiras formas de vida extraterrestres. Micróbios ou algo que, para a maioria, pode ser tão frustrante quanto. Mas, o que consideramos como forma de vida ainda é algo bastante limitado.
Se dermos alguns passos além, nesse raciocínio, o que consideramos como forma de vida inteligente é limitado o suficiente para sermos incapazes de reconhecer o direito de outros seres vivos em nosso próprio planeta. Dentro dessa limitação, encontram-se outras, ainda mais preocupantes.
Uma dessas barreiras é a concepção de que o avanço de uma sociedade deve ser medido de acordo com o seu nível tecnológico. A maneira como medimos esse avanço está submetida à capacidade de nossa tecnologia para explorar recursos energéticos, transformar a natureza, da qual fazemos parte, e produzir coisas que sirvam aos desejos humanos.
Qualquer tecnologia que não siga esse caminho é considerada primitiva, precária ou ineficiente. Esse é um dos nossos maiores erros históricos e ainda continua a contribuir para a destruição do planeta e as relações violentas entre culturas e povos.
As técnicas de cultivo dos povos originários não-europeus raramente são consideradas com o mesmo peso da agricultura do Velho Mundo. O que diferencia esses modos de cultivar comida é que a segunda é voltada para a exploração desenfreada da natureza. Isso faz com que a primeira seja considerada primitiva e a segunda evoluída.
Algo similar acontece com praticamente todas as outras formas de nos relacionarmos com os meios artificiais, através dos quais interferimos na natureza. Em grande medida, os sentidos de evolução, desenvolvimento e progresso foram construídos para ensinar que não haveria outro destino para humanidade que não fosse a destruição.
Em ampla escala, isso ainda é parte do que nos impede de discutirmos os direitos dos outros seres vivos que habitam esse planeta. A ideia de que a natureza está aí para servir ao ser humano não é apenas burra, é perigosa demais para continuar a determinar nossos modos de viver.
Essa é uma das discussões possíveis a partir de Solaris.
A trama do livro é simples e bem conhecida. Kris Kelvin chega ao planeta oceano e encontra a estação flutuante em caos. Seu ex-mentor e amigo cometeu suicídio, um dos pesquisadores parece ter enlouquecido e outro se trancou em seu cômodo e se recusa a sair. Quando Kris descobre o motivo dessa desordem, já é tarde demais para escapar.
Uma das grandes dúvidas dos solaristas é finalmente respondida. Solaris fez contato com os pesquisadores. A forma desse contato, no entanto, é difícil de compreender.
O oceano de Solaris possui diversas qualidades que fogem às regras da física, então conhecidas. Uma das suas capacidades é a de gerar formas orgânicas as mais variadas. Algumas se parecem com gigantescas cidades de formas abstratas e outras são tão delicadas como a mudança da densidade da espuma das ondas. Aquele ser vivo ainda é capaz de alterar a órbita do planeta, de modo que ela permaneça estável em torno das duas estrelas de seu sistema. Além disso, ele reage aos instrumentos e experiências propostas pelos pesquisadores. Nada disso, no entanto, havia sido considerado como contato efetivo.
A discussão mais frequente com relação ao livro é sobre as nossas relações com a morte. Solaris faz contato com os pesquisadores através de replicas de pessoas mortas, construídas com as memórias mais fortes dos homens que habitam a estação flutuante. Essas réplicas desenvolvem suas personalidades, comportamentos e memórias próprias na medida em que permanecem vivas. Sempre que se ferem, elas se regeneram. Sempre que são mortas, elas voltam e partem do zero.
Kris demora para compreender que o aparecimento de Rheya, sua falecida esposa, não é uma ilusão. Mas, a crise existencial na qual ele entra é pouco, se comparada com a da própria réplica, quando começa a perceber que não é Rheya, ao mesmo tempo em que é Rheya. Sem saber o que é e sem ter a liberdade de sair de perto de Kris, ela compreende que vive o semivida.
Apesar da narração em primeira pessoa, o que nos levaria a nos sentirmos na pele de Kris, o conflito de Rheya passou a me soar muito mais interessante. Ela compreende que é um ser vivo independente das memórias que a formaram, ao mesmo tempo em que é uma peça do que parece ser uma experiência levada a cabo por Solaris.
Rheya é uma Eva que ganha consciência. Submetida aos propósitos de dois criadores, Kris e Solaris, ela consegue encontrar brechas no sistema de criação que a limitou. Através dessas brechas, ela pode tomar a única decisão que lhe parece justa consigo mesma.
Se eu falo de Rheya, ao final deste texto, é tanto pelo fato de ter sido a personagem que mais me interessou, quanto pela maneira como o autor efetivamente trata as poucas personagens femininas presentes no romance. Sem voz e reduzidas à condição de ferramentas narrativas para a exibição das reflexões masculinas, elas se tornam a oportunidade perdida nessa obra que continua fundamental.
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Republicou isso em REBLOGADOR.
Encantada com essa resenha! Solaris já entrou para a minha lista de leitura! E olha que não sou muito afeita a ficção científica… Parabéns pelo ótimo texto!
Se a resenha deu vontade de ler, já ficamos muito felizes! ^.^ Na época em que o livro foi publicado pela primeira vez, a ficção científica era muito voltada para tecnologia. Mas, ele escapa muito da chamada “ficção científica dura” e isso é mais uma das características que fazem com que continue a ser uma leitura bem interessante! Muito obrigado pelo comentário, Liah!