Texto de Rodrigo Hipólito
A terceira temporada da Mafagafo Revista, uma das principais publicações para a recente ficção insólita[1] brasileira, apresentou doze noveletas. A cada mês do ano de 2020, uma noveleta foi lançada, com capa e edição próprias.
Esse cuidado com os textos publicados é algo marcante na curta trajetória da Mafagafo. Os dois primeiros anos da revista apresentaram narrativas seriadas. Isso significa que você precisava acompanhar o lançamento dos números sequenciais para ler a continuação das histórias. Essa foi uma experiência divertida, embora não muito prática.
Gosto do sistema de publicação adotado para a temporada de 2020. A publicação integral de narrativas no site da revista, antes de serem disponibilizadas em formato e-book, é uma tradição estrangeira, a qual já havia sido adotada pela Trasgo.
No caso da Mafagafo, há cuidados que merecem ser ressaltados.
Cada um dos trabalhos possui capa individual, pensada por ilustradores diversos. Isso confere identidade visual para as noveletas e permite que autores apresentem sua produção de modo mais direto. As sinopses também contribuem para isso. Como leitor, a experiência de encontrar uma capa e uma sinopse bem trabalhadas faz com que eu seja muito mais receptivo com o texto.
Os créditos detalhados de cada uma das publicações também ajudam muito no reconhecimento da qualidade do trabalho. Ao final da leitura, encontramos os nomes, biografias, fotografias e contatos não apenas de quem escreveu a história, mas de quem a editou, ilustrou e preparou o texto.
Comentar as doze noveletas em uma resenha tão curta quanto esta seria injusto. Além disso, há algumas que me marcaram mais. Em toda uma temporada de narrativas, isso é esperado. Ainda assim, mesmo as história que não elegi para comentar nos parágrafos seguintes, merecem elogios e, sem dúvida, o tempo de leitura.

Imagem de capa. Recorte da capa da noveleta Cabaré em chamas, de H. Pueyo. Ilustração de Dante Luiz. Um gato branco se enrosca nas pernas de alguém que veste calças marrons e segura um guarda-chuva azul. À direta dessas pernas, há as pernas de outra pessoa, de frente para a primeira. A segunda pessoa tem pernas roliças e uma delas é mecânica. Toda a ilustração é linear e colorida com tons próximos do marrom e do avermelhado, com exceção do gato, do guarda-chuva e de um pequeno tapete amarelado, o fundo e à esquerda.
Cabaré em chamas, de H. Pueyo
Essa foi a primeira noveleta do ano. Confesso que deixei essa leitura para trás e somente consegui finalizá-la depois de outras. Tenho muitas limitações para leitura de fantasia, ainda que a fantasia urbana me atraia. Quando leio o nome de alguma entidade folclórica estrangeira, costumo dar dois passos para trás. Esse é um preconceito simples e bobo, fruto de frustrações com péssimos textos de fantasia medievalizada ou inspirados em campanhas de RPG. Costumo abandonar essas leituras logo nas primeiras páginas.
Dei mole!
H. Pueye trabalha com gūls de um modo bem distante das narrativas viciadas para as quais apontei acima. A protagonista é uma médica humana que trata gūls, embora tenha motivos mais do que suficientes para não querer se aproximar deles.
Ariadne parece ter herdado o consultório de seu antigo tutor, que sumiu no mundo. Apesar da pouca probabilidade de alguém levar moqueca capixaba embalada para viagem, fiquei feliz com a escolha de Vitória para o começo da trama.
Ariadne está irritada com o sumiço de seu tutor, um imigrante soviético que lhe ensinou a profissão de médica de gūls, quando Quaint chega em seu consultório. Quaint é um antigo amigo do tutor de Ariadne e possui uma personalidade cativante o suficiente para desestabilizá-la.
Esse é um dos pontos mais fortes dessa noveleta: o modo como a autora apresenta a personalidade das personagens. Mesmo um aparecimento rápido, um diálogo com poucas linhas ou uma participação relâmpago já bastam para que nós possamos construir uma impressão sobre as personagens.
Além disso, o que parecia se anunciar como uma história lenta e centrada nos traumas da protagonista, logo se mostra um encadeamento de riscos e tensões digno de um roteiro de ação. Depois da primeira parte, a leitura seguiu com tal agilidade que não percebi a chegada do final.

Imagem de capa. Recorte da capa da noveleta Hei, Hou, Borunga Chegou!, de Santiago Santos. Ilustração de Mário Neves. Vários personagens com corpos diversos deslizam e correm da direta para esquerda, como se descessem uma ladeira. O primeiro se parece com um bebê gigante de olhos saltados, o segundo, ao fundo, é um homem de pedra, o terceiro, em primeiro plano, é um lobo, seguido de uma jovem humana de cabelos desgrenhados e o último é um ovo com braços e pernas. Toda a ilustração é em tons desbotados e aquarelados.
Hei, Hou, Borunga chegou, de Santiago Santos
Essa noveleta rendeu ótimas discussões no grupo do Serial Readers. O Ícaro de Brito, idealizador do grupo, sintetizou essas conversas no Rascunhos Abertos.
Acredito que essa é mesmo uma história para ser discutida, pois importa menos a sequência de fatos e mais a nossa reação, como leitores, às possibilidades abertas pela narrativa. Santiago Santos deixa, no título da noveleta, o centro nervoso das dúvidas que teremos junto das personagens.
Borunga é uma nave, ou melhor, um navio, que retira apenas um habitante da espécie mais inteligente de planetas em iminente colapso. Ribu é a humana em Borunga, o que significa que a Terra já era.
Tudo parece muito correto e as marujas do navio vivem com o entendimento de que salvam a vida da pessoa resgatada de cada fim de mundo. Os resgates passam a soar como capturas quando Kérrera, de uma espécie ovóide, é levada para o navio.
O modo como Santiago Santos inicia essa narrativa faz com que nos deixemos amaciar diante de um cenário lúdico e positivo. Somente quando estamos confortáveis e crentes de que se trata de uma história de aventura inocente, é que os problemas mais densos são colocados diante de nós.
Esses problemas se tornam a força motriz da narrativa, determinam os diálogos e as ações das personagens e faz com que nos perguntemos sobre as funções não-ditas das habitantes do navio. Em maior amplitude, podemos nos perguntar o que significa a existência de Borunga nessa ficção e a existência de tantos outros navios com essa mesma natureza, mas do lado de cá do espelho.

Imagem de capa. Recorte da capa da noveleta Suor e silício na terra da garoa, de Vanessa Guedes. Ilustração de Debbie Garcia. Jovem negra diante de várias telas de computador com imagens da cidade de São Paulo. Em duas das telas aparece o rosto de uma mulher que se maquia. Os monitores estão sobre uma bancada com objetos de escritório e teclado de computador. A jovem segura um estojo de maquiagem e veste um agasalho verde claro. A ilustração tem traços fortes e tons aquarelados.
Suor e silício na terra da garoa, de Vanessa Guedes
A noveleta de julho é um ciberpunk à brasileira, atualíssimo, ágil e desconfortável na medida certa. Qual é a medida certa de desconforto em uma ficção? É aquela que te permite encarar discussões necessárias para o mundo do qual fazemos parte, sem terminar o dia com vontade de rachar a cabeça no concreto da calçada.
Vanessa Guedes nos conta a história de Jéssyca, uma programadora comprometida com a tarefa de deixar os sistemas de controle do governo cada vez mais eficientes. Em uma São Paulo de 2070, todos os lugares, aparelhos e movimentos são vigiados e capitalizados. A capacidade de encontrar brechas na programação é o que dita as possibilidades de ações subversivas.
Nesse cenário, os vídeos com tutoriais de maquiagem para enganar o reconhecimento facial são uma arma manejada por Lyna. Esse tipo de instrução poderia tanto ser usada para aperfeiçoar os mecanismos de controle quanto para deixá-los mais falhos. Essa é uma das escolhas que Jéssyca precisa enfrentar.
A ética e o caráter da protagonista são testados em diversos momentos da história. Esses testes vão das suas expectativas como profissional à decisão de ignorar ou não a atuação militante de sua mãe, sem deixar de lado a influência que interesses amorosos têm sobre as escolhas de qualquer pessoa.
Do início ao fim da temporada, essa foi uma das noveletas que mais me prendeu. Vanessa Guedes consegue explicitar os conflitos da protagonista, que não são poucos, enquanto faz a história andar, sem deixá-la correr. Uma das artimanhas para manter o ritmo, presentes nessa narrativa, é das que mais me agrada: a montagem.
O texto intercala trechos de vídeos, cenários e eventos, de maneira a nos dar uma percepção ampla do mundo representado, sem a necessidade de uma cachoeira de informações. O texto brinca comigo e isso que faz uma história me dar prazer.

Imagem de capa. Recorte da ilustração de capa da noveleta Emitindo, de Benjamin Edgar Jacob. Ilustração de Mari Couto. Teclado de computador de mesa em tons de rosa claro, com monitor ao fundo, com letras verdes sobre fundo preto. À esquerda, presa entre o teclado e o suporte do monitor, fotografia de três pessoas, aparentemente mãe e um casal de filhos, pulando com praia ao fundo. A ilustração é toda linear, com exceção da imagem da fotografia.
Emitindo, de Benjamin Edgar Jacob
Dessa temporada, essa foi a noveleta que mais me surpreendeu. Se trata de uma história emotiva e eu tenho pouquíssima paciência para esse tipo de narrativa. Quando um personagem desenvolve uma reflexão que dura mais do que dez linhas, eu tendo a tratá-lo como trato bêbados chatos em mesas de bar: me levanto, pago a conta e vou para outro lugar.
Felizmente, Benamin Edgar Jacob consegue manter o teor emotivo das relações entre as personagens sem deixar que isso se sobreponha ao ritmo dos acontecimentos. Além disso, Emitindo apresenta uma série de discussões que ocupam o pódio dos meus interesses em ficção científica:
– relações entre formas de vida humanas e não-humanas;
– concepções de linguagem e inteligência e chutam a lógica iluminista para a lata do lixo;
– a queda das fronteiras metafísicas diante dos artifícios da virtualidade (e por aí vai!).
No meio de tantas possibilidades de discussão, abertas pela história, os tipos de relações estabelecidas entre os alienígenas e os humanos diz muito do jeitinho com o qual a ficção científica brasileira pode imaginar mundos fora das alternativas colonialistas, que são lugares-comuns da ficção científica anglófona.
Por fim, em Emitindo, existe uma discussão familiar, íntima e muito mais humana do que na maioria dos clássicos sobre sociedades multi espécie.
Comentados
– [blog] Rascunhos Abertos;
– [grupo de Telegram] Serial Readers;
– Cabaré em chamas, H. Pueyo. Ed. Flávia Lago. Ilust. Dante Luiz. Mafagafo Revista, Jan. 2020.
– Hei, Hou, Borunga chegou, Santiago Santos. Ed. Rodrigo Van Kampen. Ilust. Mário Neves. Mafagafo Revista, jun. 2020.
– Suor e silício na terra da garoa, Vanessa Guedes. Ed. Giovana Bomentre. Ilust. Debbie Garcia. Mafagafo Revista, Jul. 2020.
– Emitindo, Benamin Edgar Jacob. Ed. Bábara Moraes, Ilust. Mari Couto. Mafagafo Revista, ago. 2020.
[1] Especulativa, fantasista, fantástica… chame como quiser. Os debates em torno dos melhores termos para referenciar gêneros e subgêneros do terror, ficção científica, fantasia, realismo mágico, etc. são extensos e vão longe.
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