
Captura de tela do filme Ghost in the shell. 1995. Direção: Mamoru Oshii. Duas mãos com dezenas de dedos formados por finos filamentos digitam em alta velocidade em um teclado com teclas luminosas.
Este texto é a transcrição do podcast Não Pod Chorar 24
Texto de Rodrigo Hipólito
Quando eu era criança, lá naquela maldita cidade do interior tão desgraçadamente distante do que acontecia no restante do mundo, que é muito estranho pensar nisso em comparativo com a ansiedade e o estresse do caos informacional no qual me encontro hoje.
Frase longa.
Como quase sempre acontece com os episódios do Não Pod Chorar, o planejamento era para que eu falasse sobre outro assunto no episódio de hoje.
Eu pretendia falar sobre como aprender a receber um não. Como receber uma negativa e não ficar mal com isso.
Essa era uma pauta boa e ainda vai funcionar em outro momento.
Acontece que, na medida em que as últimas semanas passaram, uma série de eventos fez com que eu me sentisse irritado e frustrado com outras coisas.
Eu me irritei comigo mesmo quando eu percebi que eu estava decepcionado com uma pessoa que eu conhecia apenas pela internet e com a qual eu devo ter conversado um par de vezes.
Como eu poderia me decepcionar com a alguém que eu não conheço?
Essa é uma sensação estranha, mas não deveria ser.
Eu não deveria diferenciar a vida virtual da vida presencial.
Realizar essa diferença é algo bem perigoso.
Quando a gente imaginar que há uma diferença muito grande entre a vida virtual e a vida presencial, a gente pode começar a pensar que as regras no mundo virtual também são diferentes.
Esse é um dos caminhos para a radicalização. Acreditar que as regras da vida “de verdade” não valem na vida “de mentirinha” é viver no passado.
O que nós fazemos na vida virtual são coisas tão reais quanto aquilo que fazemos na vida presencial.
Eu sei que o contrário de virtual é atual, mas eu prefiro usar presencial pra marcar a diferença que nós fazemos em nossa mente.
O ponto é: o que nós fazemos na internet é real e ferra muito com o mundo!
Tudo bem… se você é uma pessoa que nasceu no mundo pós-internet e teve acesso a isso desde criança, talvez você não perceba que essa diferença existe pra muita gente.
É essa diferenciação, essa incompreensão sobre o mundo virtual que pode fazer, sei lá!, por exemplo, que alguém ofenda e deseja a morte de você e de tudo o que você representa no perfil dela ou em mensagens do whatsapp e ainda acredite que vocês podem continuar a conviver no trabalho de modo pacífico.
Outro exemplo: é essa diferenciação absurda que faz com que as pessoas realmente acreditem que não existe gente ocupada, mas apenas gente desinteressada. Se você nunca ouviu essa e outras frases de merda, desculpa por te trazer essa porcaria.
Eu estava pensando sobre essa diferenciação de sobre como eu não deveria começar a cair nela. É um risco.
Eu sei que eu estou sujeito a esse risco.
Eu faço parte do grupo de pessoas que não cresceu com acesso à internet, computador ou celular.
Como eu só pude encostar em um computador depois de ter ingressado na graduação, é quase instintivo pra mim pensar na vida virtual como algo que possa ser desligado ou que não tenha as mesmas consequências da vida presencial.
Mesmo que eu saiba que não é assim que funciona, essa sensação continua a rondar as minhas percepções da realidade.
Eu preciso me lembrar de que não é assim que funciona.
Quando eu finalmente pude ter acesso a um computador e à internet, isso foi algo estranho.
Durante o meu primeiro semestre de graduação eu costumava chegar bem cedo ao campus. Cedo o suficiente pra conseguir usar o laboratório de informática vazio antes das aulas começarem. Ceso o suficiente pra ser o primeiro a entrar.
Acontece que eu tinha vergonha por não saber nem ligar a porcaria da máquina.
Demorou alguns meses pra que eu pegasse o jeito e conseguisse juntar dinheiro pra comprar o primeiro computador de casa.
Anos depois, fui eu apresentar minha dissertação de mestrado sobre net.art.
A real é que eu sempre fui encantado com tecnologia.
E me lembro de devorar os clássicos da ficção científica da biblioteca da escola e do colégio, começar a escrever as minhas próprias histórias e construir sonhos tecnológicos que seriam demolidos logo logo.
Não demorou muito, depois que eu comecei a pesquisar tecnologias da comunicação, novas mídias, cibercultura, net.art, redes sociais, pós-internet e pós-humanismo, não demorou muito pra eu concluir como a nossa tecnologia é capenga.
Aqueles sonhos foram embora bem rápido.
Ou melhor, não foram embora, apenas se assumiram como ficção.
Hoje, para alguns colegas, pode parecer que eu sou avesso a tecnologia.
Não é o caso.
Eu só não posso me esquecer de que sempre há pessoas do outro lado da tela.
Eu não desconfio da tecnologia, porque ela não existe sem pessoas.
Eu desconfio das pessoas que escrevem e controlam a tecnologia.
Hoje, quando eu acompanho as discussões de Twitter sobre dar ou não dar engajamento para essa ou aquela pessoa, para essa ou aquela hashtag, pra essa ou aquela discussão, eu me lembro muito da sensação que me tomou em 2013 e 2014, bem quando eu terminava meu mestrado e estava submerso na pesquisa sobre arte e tecnologia.
Eu escrevi muita coisa naquela época, coisas que eu achava que ficariam obsoletas em dois tempos.
É meio triste que alguns daqueles textos pudessem ser escritos hoje, pois ainda fazem sentido e ainda me servem de alerta para não embarcar na ilusão de tecnologia desligada de pessoas.
Nos próximos anos a gente vai tomar um trabalho horrível pra tentar permitir que muitas pessoas saiam do mar da desinformação.
Um boa parcela de quem precisará fazer esse esforço ainda não não compreendeu muito bem o que isso quer dizer. Daí que há um trabalho prévio de tentar convencer as pessoas que estão do nosso lado sobre alguns problemas que não podem mais ser ignorados quando pensamos a realidade.
A desinformação é algo que está presente no nosso dia a dia. Desinformação é algo que faz a vida virtual girar. Como a vida virtual e a vida presencial são uma só, isso significa que a desinformação passou a ser o estado de normalidade.
Isso também significa que pessoas desinformadas serão consideradas tão aptas para decidirem o destino da sociedade quanto pessoas informadas.
Quem entendeu isso primeiro e começou a trabalhar muito nesse sentido, não fomos nós, os perfeitinhos progressistas. Nós perdemos esse bonde e vamos ter que correr muito atrás pra conseguir conversar com pessoas que podem nos empurrar para o que há de pior nesse mundo, enquanto acreditam que caminhos para um holograma de gatinhos de pixel brilhante lambendo a barba de um Jesus crossfiteiro que dança pisadinha sobre um tanque de guerra.
Essa era parte das sensações que eu tinha, lá em 2013 ou 2014.
Por isso, eu decidi trazer, para esse Não Pod Chorar, um texto daquele momento. É um texto chamado Cartografias Holográficas Sentimentais.
***
Cartografias holográficas sentimentais
Quantas razões para detestar a tecnologia! Principalmente a móvel, a touching, a 2.0!
É angustiante a distância física dos aparelhos.
Não encontrar o celular no bolso e não poder se lembrar onde ele pode estar, pois lá se encontrava toda a agenda: o antes e o depois.
Perder o iphone durante a viagem e descobrir que ele não possui um sistema de retorno automático (automatic return system- ARS).
Esquecer o modo como se segurava a caneta quando criança, embora seja certo que não era exatamente como os demais colegas de classe seguravam.
Tentar apontar um lápis e promover o encontro entre a falange do indicador e a lâmina do estilete.
Isso faz pouco sentido. Todas essas relações mecânicas não passam da camada menos útil da situação.
Esses incômodos são como o âncora do telejornal que sorri para previsão do tempo, depois da criança ter ficado dois anos acorrentada no quintal de estranhos.
Não faz sentido odiar o âncora, mas, é a primeira postura de um cidadão revoltado. A segunda é odiar a emissora de TV.
Dificilmente sua revolta atinge as raias da destruição. Quantos aparelhos de televisão são defenestrados diariamente? Poucos. Alguns, com certeza. Tem de haver alguns casos.
O celular pouco importa. Só que, encerrar a comunicação é desesperador.
Estar fora da Rede é correr riscos incalculáveis! Sem sinal, sem acesso, sem tráfego de dados, sem alguém em contato direto. Não interessa se você está em uma grande metrópole. Talvez fosse melhor estar perdido na floresta. Isso justificaria a queda da Rede.
No instante em que a conexão se encerra, pode começar a cogitar que o planeta está sob uma invasão alienígena. É uma possibilidade razoável quando se mede a extensão de nossa incapacidade de sobrepujar essa tecnologia capenga com a qual a gente tá sempre a se maravilhar.
A gente ainda não pode nem se comunicar telepaticamente!
Carregar um corpo estranho no bolso e erguê-lo com as mãos até a cabeça para que possa ouvir “a voz que vem de longe”. A voz soa distorcida.
Grandes volumes de metal cortam os céus enquanto consomem uma quantidade impensável de energia, energia essa que consome uma quantidade impensável de minerais.
Deslocamento espacial? Nem mesmo deslocar o corpo no tempo como um dado imaterial nos é possível.
Retire um parafuso do carro e todos morrem. Retire um fio do Macbook e todos morrem. Tecnologia capenga.
Resfriar o disco para que não haja pane. Esquentar o alimento para manter a flacidez. Como não se constipar assim?
Não é uma vida completa no mundo onde os dedos se movem, as costas doem e a garganta arranha. Mas é saudável ter vontades além da fome, do sexo, da sede, do abrigo. Quais seriam essas vontades? Fumar, beber, tomar sorvete de pistache, roer as unhas, comprar sapatos.
Não é uma vida completa no mundo onde as imagens saltam, giram, somem e reaparecem como mágica (como se não fossem necessárias pilhas de discos-rígidos girando ininterruptamente e sugando as turbinas de hidrelétricas, de termelétricas, de campos eólicos e dos mares contaminados de Fukushima, para que esse universo zerodimensional exista).
Mas é saudável ter intenções além de concordar, discordar, compartilhar, apagar, bloquear, convidar. Quais seriam essas intenções? Duvidar, ficar na preguiça, não saber, se perder, optar por nenhuma das alternativas anteriores.
O mundo real tornou-se o holograma dos gostos retirados da estante de discos. É o espelho de opiniões expressas em provas objetivas. Sair do ciberespaço? Para isso será necessário escolher sempre entre duas opções. E “você tem certeza que quer continuar? <sim> <não>”.
A visada crítica foi excluída da interface. Medir a realidade pela contagem entre os que endossam e os que divulgam, os que reprovam e os que apagam, os que ignoram e os que viralizam, é uma estatística tão razoável quanto perguntar sobre o significado de Java.
Tampouco é proveitoso observar as trocas de informações entre os “nós” (pessoas virtuais) que permutam dados copied-borned na Rede, pois suas ações já estão circunscritas nessa mesma interface obscura.
A teoria dos grafos aplicada a cibercultura não passa de uma engraçada playlist automática do Youtube. Não diz muito sobre o conjunto de qualquer coisa. É preciso mais.
Acontece que, o poder da divulgação de opiniões mata pessoas, ou melhor, a predefinição de opiniões nas interfaces do ciberespaço mata pessoas. Eu digo… realmente mata… mata pessoas de verdade.
É necessário falar de como o costume de escolhas “de provas objetivas” da comunidade virtual leva à opiniões extremistas? Quando não lhe é permitida a escolha por NDA, tudo que for escolhido consiste em prescrição da interface.
A Rede mudou o modo de ser no mundo. A Rede mudou a própria concepção de natureza, construída em laboratório ou não. Tratamos agora com um laboratório que cria contextos ideais simultaneamente para a ciência e para a política.
Morte da cultura? Morte de Deus? Morte do sorvete de pistache? Não, morte de pessoas.
Quantas cabeças cortadas e explosivos detonados vale um clique de aprovação na comunidade virtual? Cálculo complexo.
Diversas revoluções (micro e macro, armadas e floridas) explodem mundo afora. Tais revoluções são sujas, fedem, sangram. Em suma, não servem para a cibercultura, se forem tomadas como realmente são.
Para serem aproveitadas telematicamente, elas devem ser transformadas em manchetes (texto e imagem). A assepsia do ciberespaço nos dá a impressão de que elevar uma notícia ou uma opinião sem decompô-la e acrescentar-lhe conteúdo crítico em nada influencia nas gargantas cortadas de pessoas revoltadas e condenadas no Egito, na Arábia Saudita, no Chile, na Zona norte do rio.
Ledo engano! A simples divulgação, a simples retificação, a simples negação, são modos extremamente eficientes de peneirar conteúdos mais emaranhados que seus phones de ouvido e mais férteis que o húmus amazônico, até que reste apenas a pureza de um sim e de um não.
Tristemente, essas são as vias de fato, como já mostrava a dupla “Brócolis” (Leandro Vieira e Mariana Meloni) em seu trabalho chamado Hello, de 2003. Ao acessar o pequeno vídeo em looping o espectador se depara com a imagem de uma mulher apavorada diante de uma mão armada. A pessoa que segura a arma encontra-se fora do quadro do filme. A mensagem que completa o vídeo diz “Oi. Isso é um novo jogo especial. Esse jogo é minha primeira obra. Você é o primeiro jogador. Espero que você goste”.
A imagem se mexe pouco e, para os padrões de hoje, a aparência é muito precária.
O som desagradável de algo parecido com um choro ou uma risada ao contrário começa a soar nos seus ouvidos.
Quando você aceita o convite e tenta passar o cursor do mouse sobre a imagem ou clicar em algum ponto. Uma arma dispara e a cabeça da mulher explode.
Todas as vezes em que você passa o cursor sobre a imagem a cena se repete.
Arma disparada.
Cabeça explode.
Pessoa morre.
A consequência é inevitável. Jamais deixará de ser uma brincadeira. E como em toda a brincadeira, a perversidade deve estar nos ossos.
Em um mundo sem meio termo nem a opção de nenhuma das alternativas anteriores, as alternativas <sim> e <não> reduzem-se a uma só, a qual é bem pior que a pura violência: é a violência pura.
Conclusão, a comunidade virtual é o purgatório dos terroristas cenográficos exterminados pelo Rambo. Sem dor, sem sangue, sem cheiro e com um mix 90’s+hipster_tribal+2000’s+soft_indie rolando na aba ao lado. Inferno.
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