Texto de Fabiana Pedroni[1]
Com o tempo, escritores se acostumam com a serventia de cada pedacinho de seus textos. Introduções servem para dizer “Olá” para o leitor, acolhê-lo para que não fuja das próximas páginas. As conclusões seguem o clichê do cuidado carinhoso do “Não esquece o casaco!”. Elas lembram o leitor de todo o conhecimento aprendido na leitura (Não esquece!) e alertam que mesmo que faça sol, algo pode acontecer quando sair do texto. Os escritores aprendem a conhecer cada peça e fazer uso delas, às vezes, até mesmo, contra elas.
Alguns leitores são conquistados quando o escritor os alcança em suas relações afetivas com o texto. Eu, como leitora, amoleço meu coração com notas de rodapé. Injustiçadas, ignoradas e até banidas, podem ser odiadas, como um problema editorial ou discursivo. Quando se quer controlar a existência de algo, condena-o à regras e espera-se que ele deixe de existir pela falta de uso.
Dizem que notas de rodapé não devem competir com o texto central. As regras afirmam que elas devem conter explicação ou referência, informações complementares e não essenciais para a compreensão do texto central.
Claramente, as pessoas que escreveram essas regras nunca estudaram imagens medievais ou discursos marginais, para ser mais específica. Quando há uma divisão entre centro e margem, essa divisão implica uma subordinação. Mas, isso não é uma regra. Nem toda relação entre texto e imagem ou entre texto e nota de rodapé é de subordinação. Tem-se dois discursos que partilham a mesma página e essa relação será tão diversa quanto tudo o que envolve a existência dos dois elementos, seja conteúdo, forma, composição ou matéria.
Será que uma nota de rodapé que indica algo como “sobre este assunto, conferir o texto tal do autor tal” terá o mesmo funcionamento que uma pausa, dada pelo autor, para comentar sobre o contexto que o levou a falar determinada palavra? Ou, ainda, será que esses dois casos serão equivalentes à uma nota de rodapé que se dirige diretamente ao leitor, fazendo-lhe uma pergunta?
Compreender que uma nota de rodapé possa ser uma pausa, um silêncio ou um sorriso, muda completamente nossa relação com o texto “central” da página. O escritor chegou perto do muro, escalou e lá do auto te avistou, leitor. Daí ele se apoiou como gato no alto, e disse:
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Chega mais, preciso te contar um causo que não dava pra falar gritando do lado de lá do muro.
Isso é uma nota de de rodapé.
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Eu tenho uma nota de rodapé que amo. Hoje, ela já é cheia dos problemas. Explicarei, entre colchetes, como notas de rodapé dentro de nota de rodapé.
“Quando o trabalho de pesquisa é pensado como um work in progress, afetamos não apenas a extensão temporal do trabalho, que continua a acontecer enquanto produz “frutos”, mas também mostra que o trabalho não pode se enrijecer em um mundo que não se enrijece [Um texto continua a pedir mudanças. sei que não escreveria mais, hoje, uma expressão como esta em inglês, que só quer dizer um trabalho em processo, nada mais, sem muitas outras referências à artistas como Hélio Oiticica]. Nossas construções, por mais que se estendam para objetos produzidos no passado, elas partem do presente e contaminam o presente do pesquisador. A vivência está sujeita ao conhecimento, as aquisições voluntárias e involuntárias para se vivenciar o mundo, que pode até estar no presente, aquele da ação, mas não se localiza dentro de uma pequena realidade estanque. Por mais que nem sempre estejamos atentos ao modo como uma pesquisa atinge o pesquisador, não podemos ignorar a contaminação desses mundos. Nesse sentido, posso dizer que parte da pesquisa sobre a cor no Beatus de Facundus foi atingida pelas concepções de cor da minha avó. Observe que aqui utilizo o verbo na primeira pessoa do singular, porque é uma contribuição estritamente pessoal, porque aqui a minha avó, por mais que tenha contribuído, não raciocina comigo, não posso dizer “pensamos”. O uso do verbo na primeira pessoa do plural não é um “plural de modéstia”, mas um “plural justo”, em que reconhecemos a contribuição de todos para o trabalho, em que “todos” são aqueles que dialogaram sobre o trabalho e aqueles que desconhecem a contribuição, como minha avó [contraditório, minha avó é plural ou singular?]. Um evento em específico me ajudou a compreender que não podemos observar as cores segundo nossos juízos, ela precisa ser pensada como construção cultural. Em uma manhã, minha avó me perguntou por que eu estava de roupa preta. Abaixei os olhos e me observei. Respondi “Não sei, vó, só coloquei”. Ela não ficou satisfeita com a resposta e insistiu: “É para um enterro ou para ficar elegante?”. Eu sorri e achei melhor escolher a segunda opção. Minha avó apenas balançou a cabeça em confirmação e saiu do meu quarto. Achei que ela já havia se desligado do assunto, enquanto eu me prendi na observação da quantidade de blusas pretas e azuis que eu tenho em meu armário e que me levaram a uma escolha inadequada para um dia de verão. Pouco depois ela voltou com uma roupa retirada do varal e disse: “Toma, essa é mais alegre”. E foi assim que comecei a repensar minha estação do ano. Segundo minha avó, amarelo e temas ornamentais são mais alegres que uma cor preta, esta deve ser destinada ao luto e à elegância de vestuário. Fiquei com isso em mente, como pode uma pessoa que não reconhece mais a neta e a filha, por ter Alzheimer, que paquera meu avô sem saber que ele é seu marido, que perde aos poucos suas referências, ter de forma tão nítida essa memória involuntária de significados e sensações das cores? Esse evento, assim como muitos que acontecem nas vivências de outros pesquisadores, foi um importante reafirmador da cor como fenômeno social e cultural, como frisa Michel Pastoureau em seus esforços para trilhar uma história das cores, de sua construção social.” (PEDRONI, 2016, p. 107)
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[1] “Ué, não tem imagem neste post, que estranho”. Como assim, não tem imagem? Tem sim, no meio do texto. Você até pulou por cima dela!
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