
Imagem capa. Ilustração de John Harris para a primeira edição de Justiça Ancilar, lançada em 2013. Cena de uma batalha entre naves espaciais. Em primeiro plano, quatro naves vermelhas e brancas, parecidas com caças. Em segundo plano, parte de uma nave maior, acinzentada, com formas quadras, antenas e canhões, que atravessa a tela em uma diagonal do canto inferior esquerdo para o canto superior direito. Ao fundo, crateras na superfície de uma planeta ou lua, em cinza claro, branco e cinza escuro.
Leckie, Ann. Justiça Ancilar. Traduzido por Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2018.
Texto de Rodrigo Hipólito
Para quem costuma ler ficção cientifica, esse é um livro fácil de recomendar. Para quem apenas assistiu alguns filmes e séries com batalhas de navezinhas, personagens estereotipados e sábios monstrinhos verdes, a coisa fica um pouco mais complicada.
Justiça Ancilar é o primeiro romance de Ann Leckie e recebeu todas as maiores premiações da área. Isso costuma servir mais como propaganda do que como atestado de qualidade. Nesse caso, funciona das duas maneiras, embora haja aspectos do livro que possam ser criticados.
Não gosto quando os começos de histórias me arrastam por reflexões e lamentos de personagens pelas quais ainda não desenvolvi qualquer carinho. Tampouco me agrada o uso do flashback como ferramenta para estender e organizar uma história longa, quando poderiam ser duas histórias, em dois livros. Para a minha experiência de leitura, o resultado dessas duas características foi uma desconexão no começo e no fim da narrativa.
Na primeira parte, não me importava com as personagens que ainda não conhecia e só queria que elas resumissem a ladainha. Na última parte, o envolvimento, tão habilmente construído no restante do texto, foi quebrado pela aceleração. Era como se tivessem cortado o orçamento dos últimos capítulos e as personagens envolvidas quisessem abandonar o livro e ir fazer outra coisa.
Caso você não se importe com isso, pode jogar fora esses pontos, indicados como negativos, e depositar suas expectativas nessa leitura.
Um dos temas estruturantes de Justiça Ancilar é a crítica ao imperialismo. Toda a jornada de Breq, a protagonista, se dá frente ao Império Radch, do qual ela fazia parte. Esse império controla parte da galáxia, invade planetas, controla populações e estabelece colônias. As desculpas éticas e morais por trás desse colonialismo são as mesmas que conhecemos do lado de cá das páginas: levar a civilização e a paz.
As pessoas que fazem parte do Império são consideradas cidadãs radchaai. Mas, nem todas as pessoas possuem os mesmos direitos e reconhecimento social. O Império organiza-se por suas Casas familiares, detentoras da tradição e do poder político. Essas casas podem oferecer clientelismo entre si, como acordos comerciais e de serviços, o que representa situações de subordinação.
O que Ann Leckie faz é juntar o conhecido sistema oligárquico, vigente em nosso capitalismo até os dias de hoje, com a rígida etiqueta da hierarquia militar. O resultado, como nós podemos observar na realidade brasileira, é uma sociedade baseada na impressão enganosa de que respeitar tradições e confiar na responsabilidade de lideranças é o suficiente para fazer a vida se manter organizada.
O trocadilho mais evidente desse erro aparece já no título, que nomeia a protagonista. Esse sistema exclui e recusa-se a refletir sobre os problemas surgidos entre tradição, responsabilidade, autoridade e os fatos que envolvem pessoas reais. Dito de outro modo, esse sistema não permite que a Justiça seja qualquer coisa que não a manutenção do próprio sistema.
Justiça de Toren era uma nave radchaai de mais de 2000 anos. As naves do Império são todas nomeadas como Justiça, Espada ou Misericórdia. Para controlar o poder bélico e a extensão do Império, essas naves funcionam com inteligências artificiais espalhadas tanto pelo corpo da nave quanto por corpos reanimados de humanas mortas ou capturadas em batalha, chamados de Ancilares.
Essas inteligências artificiais não apenas pensam. Elas também sentem. Tal característica é fundamental para que possam tomar decisões diante de situações de conflito que fariam com que qualquer máquina de calcular entrasse em paradoxo.
Esse pequeno e funcional detalhe permite que haja o conflito da protagonista. Breq era Justiça de Toren. Diante de uma situação difícil de resolver, a nave desaparece e sobra apenas um corpo. Esse corpo é habitado pela consciência da nave, acostumada a ser uma existência de centenas de corpos.
Tal modo de pensar as inteligências artificiais é um dos pontos mais fortes do livro. Breq precisa lidar com essa súbita mudança no modo de perceber e lidar com o mundo, ao mesmo tempo em que segue sua jornada de vingança contra uma inimiga que pode ser impossível de ser vencida.
Nessa jornada, ela resgata Seivarden, uma oficial radchaai congelada mil anos antes. Breq conheceu essa oficial quando ainda era uma nave e não ia muito com a cara dela. Por alguma razão, ela não consegue abandonar Seivarden nem permitir que ela se mate.
A relação entre as duas é complexa, divertida e instigante. A construção dessa relação não apela para lugares-comuns ou estereótipos. Elas não se tornam exatamente amigas, tampouco se repudiam ao ponto de não conseguirem perceber a importância que passam a representar na vida uma da outra.
Outra característica que sempre deve ser ressaltada, é a neutralidade de gênero no idioma falado no Império Radch. Como não há diferenciação de gênero masculino e feminino, a autora escolheu identificar todas as personagens, quando pelo ponto de vista de Breq, no feminino. As exceções surgem quando a personagem precisa conversar com pessoas de fora do Império e que apenas falam outros idiomas.
Nesse momentos de diferenciação, fica explícito a dificuldade de Breq de distinguir os gêneros (palmas para a tradução de Fábio Fernandes!). Para a leitura, essas situações são um brinco, pois podemos notar como essa diferenciação, na maior parte do tempo, é irrelevante.
Essa irrelevância é uma das razões do acerto em inserir a discussão sobre gênero neutro nessa história. A narrativa continuaria a funcionar muito bem se fosse escrita de modo tradicional. Isso significa que as narrativas tradicionais também funcionariam muito bem se fossem escritas em gênero neutro. A única coisa que faz com que o uso do gênero neutro seja questionado é o respeito irresponsável à uma tradição que se recusa a aceitar a realidade.
Justiça Ancilar é o primeiro volume de uma trilogia. Para quem conseguiu encarar os desafios de leitura que esse primeiro romance coloca, é quase inevitável desejar a continuação.
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