DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998, cap. 1 e 2, p.29-48.
Texto de Fabiana Pedroni
Eu reli um texto que ainda não tinha saído de mim. Reli pelos movimentos da mão na argila, pelo calor da queima do barro no fogão a lenha. Fui para a roça com um texto na cabeça. Sem o escrever, repassei ponto a ponto as palavras antes pensadas. O texto voltava para mim, enquanto minha mãe trabalhava sobre a argila. A base construída, as laterais do jarro moldadas e o texto se modificava.
Uma dança de palavras arteiras. Elas não queriam mesmo ser escritas.
Eu queria falar da origem mítica da arte na história da filha do oleiro Butades, de Sicião, mas o estalo da lenha me fazia me perder na contação. A filha do oleiro sabia que sentiria saudades, quando seu amado partisse para longe. Sob a luz de velas, ela riscou o traço do amado na parede, construiu sua sombra em linhas. Seu pai aplicou argila sobre o desenho, deu-lhe volume, um corpo que foi endurecido com calor. Eles construíram um corpo pelo rastro da ausência.
Todo o texto, que seria sobre a construção da imagem, do valor do barro e do mito, tornou-se um questionamento: Como nós criamos silhuetas para mantermos perto quem se ausenta?
A silhueta de um humano indica que há ali algo do corpo, da matéria, porque mesmo a sombra é também matéria. Mas, há também um vazio, que nos impulsiona para o outro e para nosso próprio vazio. Somos nós também vazio que é silhueta, que será corpo de ausência, que será corpo de tumba.
As palavras de Didi-Huberman ainda me incomodavam.
No livro “O que vemos, o que nos olha”, nos dois primeiros capítulos, Didi-Huberman nos coloca num dilema de dois caminhos, a partir de uma cisão do ver: ao estar diante de uma imagem, podemos escolher nos aproximar por aquilo que vemos. Nesse sentido, seria um exercício tautológico, de afirmação rasa como “o sal é salgado”, o que é matéria é material, o que se vê é o que se vê, e pronto. Esse exercício atem-se ao volume visível e nega o vazio.
Por outro lado, poderíamos escolher por aquilo que nos olha, como um exercício da crença. Pauta-se por uma espécie de esvaziamento, por aquilo que me olha. No exemplo da tumba, o volume é apenas objeto, descontextualizado, sem relação com aquele que olha. O que se vê, pelo exercício da crença é o corpo semelhante, aquilo que me olha. Assim tem-se um “Nada ver, para crer em tudo” (p.42).
Se nos voltarmos para “Ulisses”, de Joyce, Didi-Huberman faz o alerta
“fechemos os olhos para ver”, mas, “Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos – ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. […] a modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí.” (p.34)
O que vemos é o traço de uma semelhança perdida. “diante da tumba, eu mesmo tombo”. Este corpo que pode fazer volume, mas que também se oferece ao vazio.
Somos silhueta do mundo:

Ana Mendieta, dois trabalhos da Série Silhueta (1973–1980). Fonte: Ana Mendieta: o corpo como obra, por Thai Coelho. Na fotografia da esquerda, a ausência do corpo da artista, antes deitada na areia, deixa sua silhueta funda no chão, como uma cova, de dentro da qual sai pigmento vermelho. A fotografia da direita mostra a artista deitada dentro de um buraco erodido no solo pedregoso, com as pernas e as mãos esticadas, como um cadáver, e coberta pro pequenas flores brancas.
Somos silhueta do que fomos e em nossa própria silhueta nos abrigamos.

Brigida Baltar, Abrigo, 1996. Três fotografias de uma série. Da esquerda para a direita, a artista, mulher branca de camiseta e calças pretas, quebra a parede com um martelo, formando uma silhueta com o tamanho do seu próprio corpo, aparece semi encaixada no buraco que ela mesma fez, e o buraco aparece vazio.
Cada traço é matéria e vazio ao mesmo tempo. O dilema é posto para nos fazer perceber a cisão entre o que se vê e o que se olha. Mas, continuamos como silhuetas de uma presença resistente e produtiva que caminha pelas lacunas, pelo movimento entre o saber e o não-saber.
O que fazer com o barro que nos restou? A resposta pode estar na minha própria silhueta que ainda não delineei, mas que você vê com clareza.

Lais Myrrha. Uma biblioteca para Dibutade. 26×35 2/5 em 66 × 90 cm. Fotografia das marcadas deixadas por estandes de livros retiradas de uma parede branca.
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