
Imagem de capa. Recorte da capa da Revista Escambanáutica, ano1, n. 1, com ilustração de Bruno Romão. Fundo azul esverdeado com marcas brancas, no qual tremula uma bandeira marrom escuro, com um tentáculo verde na parte de baixo, o qual se enrosca na letra C do título Escambanáutica, que é dividido ao meio pelo símbolo de um farol que joga faixas de luz para os dois lados, sobre as faixas de luz lê-se Escamba e abaixo delas lê-se náutica, em letras amarelas com contorno preto.
Texto de Rodrigo Hipólito
A Escambanáutica é uma revista de literatura de ficção fantástica decolonial. O que essa última parte da frase significa? Nada tão complicado quanto pode parecer, caso você jogue o termo no Google. Ser decolonial é estar mais interessado nos jeitos de pensar próprios dos povos que foram invadidos, explorados e silenciados por nações europeias.
Tudo bem! A coisa toda pode ser mais complexa do que isso. Mas, essa ainda é uma boa definição. Afinal, o que importa, nesse caso, é que a Escambanáutica está interessada em publicar histórias de ficção fantástica que apresentem expressões e pensamentos sem compromisso com os padrões europeus e estadunidenses.
Em março de 2021, foi lançada o primeiro número da revista, com edição e Moacir Fio e Wilson Júnior, contos de Ana Luiza Silva, R. R. Portela, GabiOZ e ilustração de Bruno Romão. O Coletivo Escambau, responsável pela publicação, remonta a grupos de leitura organizados em 2016, como comenta Moacir Fio, no editorial. Esse retorno das atividades do Escambau, em 2020, ocorre em um momento de efervescência das revistas literárias digitais, em especial, daquelas voltadas para a ficção especulativa.
O hiato anunciado pela Revista Trasgo, que é um marco para publicações brasileiras do gênero, alimenta saudades, mas não tristeza. A quantidade de revistas interessadas em publicar ficção científica, fantasia, terror, horror, herdeiros do realismo mágico, new weird e outros gêneros e subgêneros continua a crescer. A maioria dessas empreitadas permite o acesso gratuito das edições e assim devem permanecer.
Esse é um cenário empolgante e explica o interesse em lançarmos, também em 2020, o Pindorama, pela rede Leitor Cabuloso. O Pindorama é um podcast voltado para a análise de narrativas de ficção fantástica, principalmente ficção científica, publicadas em revistas brasileiras de acesso gratuito.
Lá no Pindorama, sempre comentamos que as nossas concepções de ficção científica se distanciam dos padrões hegemônicos. Esses padrões costumam relacionar a ficção científica apenas com as ciências duras e a com as tecnologias de exploração desenfreada da natureza.
Algo similar ocorre com os padrões hegemônicos da fantasia, do terror e demais gêneros. É típico que se relacione a literatura de fantasia com caricaturas da Europa medieval e de seus folclores. O terror tradicional tende a cair nas representações de monstros e medos próprios dos cristianismos estadunidense e europeu, ou na ilusão de que pessoas brancas e ricas estão sob constante ameaça de violência.
Você não vai encontrar isso nas páginas do primeiro número da Escambanáutica.

Recorte da capa da primeira edição da Escambanáutica, com ilustração de Bruno Romão. No primeiro plano, ilustração de uma mulher preta, com cabelos marrons, longos e ondulados ao vento. Ela se segura nas cordas de um navio e veste roupas de pirata. Ao fundo, do mar revolto, um longo tentáculo verde se enrola na ponta dianteira do navio.
A edição abre com “Monstros do mar têm mães”, de Ana Luiza Silva. Já nesse início, nós precisamos abandonar as típicas delimitações de gêneros. O conto traz aspectos de terror e fantasia sombria, mas o parafuso que a história trava poderia segurar dramas realísticos. Esse é um jeito de afirmar que essa narrativa agradaria mesmo quem diz não gostar de ficção fantástica.
A história centra-se nas aflições da protagonista, que não reconhece o próprio filho, quando ele volta do mar, após ter sido engolido por uma grande onda. A criança não é mais a mesma. No entanto, sempre houve estranheza naquelas relações entre mãe e filho. Já o pai, não nota os riscos da mudança brusca pela qual passa o filho e abraça a ilusão de que seus antigos problemas foram lavados pelo mar.
A prosa de Ana Luiza Silva consegue transmitir aquele tipo específico de frustração, que ocorre quando a vida nos prende a um lugar do qual gostaríamos de ter nos desgarrado quando jovens. A história se passa em uma ilha. Em extrapolação, essa ilha pode ser qualquer pequena cidade do interior ou bairro afastado e esquecido. Essa história pode estar bem ali, do outro lado da rua.
Já em “Três danças”, de R. R. Portela, encontramos sentidos novos para fantasia carnavalesca. Portela escolhe uma das manifestações de mascarados mais comuns do Rio de Janeiro para abrir um universo mágico, o Clóvis. Com outros nomes, esses mascarados continuam a aparecer em carnavais pelo país.
Acredito que seja de conhecimento geral que, fora do período do carnaval, não há permissão para que essas figuras estejam em nosso mundo. O barulho das bexigas de boi batidas no chão, o farfalhar das camadas de tecidos e as máscaras assustadoras perseguem foliões apenas naqueles dias de balbúrdia generalizada.
Como criaturas territorialistas e necessitadas de euforia, não deveria ser espantoso que eles possuíssem suas próprias disputas políticas. Portela recheia o seu conto de elementos do festejo e arrasta o cordão da narrativa em um ritmo marcado por tensão, perigo e desejo.
A edição se encerra com “Frutífero”, de GabiOZ. Essa é uma história que constrói sua própria simbologia, embora esteja voltada para significados que podemos acessar fora das páginas.
Um casal sai a procura d’A Clareira. O segredo para atingir esse local de revelação seria guardado pela Velha das Cobras. Quando conseguem encontram a casa dessa senhora, os dois já estão enraizados em uma situação da qual não conseguem sair. Entre as visitas recebidas pela Velha e a comunicação hermética entre os três, o tempo parece seguir um fluxo diferente daquele marcado pelo relógio.
Bruno e Vinícius têm personalidades muito distintas e isso faz com que a narrativa se torne mais palpável. Se os personagens não fossem bem construídos e imagináveis, as palavras poderiam se perder no abstrato. GabiOZ nos entregou duas personagens que podemos ter conhecido e as levou para uma aventura que, de vez em quando, a gente também deseja seguir.
Ao final da revista, há entrevistas com Ana Luiza Silva, R. R. Portela e GabiOZ. Essas conversas servem tanto para conhecermos um pouco sobre quem escreveu as histórias como sobre o processo de escrita e as possíveis portas para pensarmos as narrativas que acabamos de ler.
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