
Imagem de capa. Recorte da parte superior da capa da Escambanáutica número 2. Título da revista, que é dividido ao meio pelo símbolo de um farol, que joga faixa de luz para os dois lados, sobre as faixas lê-se escamba, sob as faixas lê-se náutica, em letras azul com contorno azul escuro. Na parte inferior esquerda, estão os nomes dos autores dos contos da edição, Noah Malta, Vanesa Passos e Rodrigo Hipólito, em letras alaranjadas com partes desgastadas. Ao lado inferior direito, ilustração de um bisão que cospe fogo na direção do logo da revista e tem uma chama menor na ponta do rabo. O bisão se ergue sobre as patas dianteiras, sobre a cúpula de vidro de um planetário. Ilustração de Felipe Helói.
Texto de Rodrigo Hipólito.
Assim como na estreia da revista, a Escambanáutica número 2 apresenta três contos de ficção especulativa. A edição, encabeçada por Moacir Fio e Wilson Júnior, tem capa de Felipe Helói, diagramação de Raoni Kachille, editoria de arte de Nathália Pimentel e contos de Noah Malta, Vanessa Passos, Rodrigo Hipólito (sim, eu!).
Não vou tentar fazer uma resenha fria. Não que eu costume fazer isso. Mas, quando se trata de uma publicação da qual participamos, pode ficar o receio de que os comentários soem apenas como divulgação. Esse é um receio meio besta. Afinal, além do óbvio interesse em espalhar algo que ajudamos a construir, se não fosse um bom trabalho, eu preferiria enterrar, não resenhar.
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A capa de Felipe Helói vale o destaque. A ilustração faz homenagem ao planetário Rubens de Azevedo, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, com sua cúpula espelhada de mais de 12 metros de diâmetro. O espaço, projetado pelos arquitetos Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo, já transmite ares fantásticos. Na ilustração de Helói, o conjunto arquitetônico ganha tons mágicos e solarpunk. Em futuras edições, pode ser interessante reservar um espaço para comentários de artistas de capa.
Passada a capa, não pule o editorial. Esse é um péssimo costume, mas não é difícil perdê-lo. Quem pula introduções, apresentações, editoriais e prefácios, talvez o faça por já ter se deparado com muitos textos institucionais, pretenciosos ou muito mais longos do que o conteúdo principal. Eu entendo essa frustração. Mas, esse não é o caso.
O texto de Moacir é sintético e prepara bem o paladar para o que você lerá na sequência. Ele comenta a técnica de reconstrução de cerâmicas chamada kintsugi. Essa técnica consiste em emendar as partes de uma peça de cerâmica quebrada, de modo que as linhas de emenda fiquem evidentes. Essa prática cultural está ligada ao conceito mais amplo de wabi-sabi. Foi uma feliz coincidência o encontro com essa referência, pois me lembrou de um texto crítico que publiquei faz alguns anos.
A concepção de mundo que permite a compreensão de wabi-sabi tem relação com as três histórias apresentadas nesse número da revista Escambanáutica. Mas, não de modo evidente. Para perceber essa relação, é necessário dar atenção para o que liga as personagens com os lugares por onde passam e onde vivem e para suas memórias quebradas. Todos temos memórias quebradas. Precisamos fazer um bom trabalho de kintsugi para evitar arranhões, mas sem tentar fingir que tudo continuará igual.

Recorte da capa da Escambanáutica número 2, com ilustração de Felipe Helói, que mostra uma passarela de acesso ao planetário do Centro Cultural Dragão do Mar. Ao lado esquerdo da passarela, árvores, em volta da base do planetário, sob a cúpula espelhada, há uma cobertura de plantas, em uma espécie de jardim suspenso. Sobre a passarela, voam grandes pássaros amarelos.
Em “Os anos sob a redoma”, Noah Malta nos pede para acompanharmos o retorno de Faiga para a vila onde cresceu. A personagem vive em constante medo e precisa enfrentar os nós apertados por um relacionamento abusivo, do qual ela conseguiu escapar. Não há como passar por esse tipo de experiência sem que fiquem algumas cicatrizes sensíveis ao toque. É difícil encará-las e elas não vão desaparecer nem por mágica.
O arco de Faiga envolve magia. Mas, não se trata do uso da magia para a solução simples de problemas. Como diz a Mirtes, tia da protagonista, “isso não é coisa que se explique muito”. Os elementos fantásticos estão ali, mas não são obrigados a aparecer de modo explícito, pois não ocupam o centro do palco. Ainda assim, você precisa percebê-los. O fluxo do texto te pede para fazer isso. Observe o cenário, os vultos, elementos difusos e coadjuvantes que compõem o mundo que Faiga começa a redescobrir. Depois que somos quebrados, a nossa reconstrução depende de percebermos bem a paisagem da qual podemos fazer parte.
Já em “O casarão da Água Verde”, de Vanessa Passos, as lentes da câmera de uma fotógrafa mediam essa difícil observação de um mundo que nos parece hostil. Esse conto curto é denso e tem o poder de te arrastar para o sombrio. O interesse em fotografar prédios abandonados leva a protagonista para uma viagem não planejada com um colega de faculdade que ela acabou de conhecer. No casarão do século XIX, ela enfrentará as consequências do seu ceticismo e da tentativa de recortar a história que não lhe pertence. As lentes da câmera, que lhe ajudaram a colar os cacos de uma realidade, podem fazer com que toque em outra.
O fato de o casarão de Água Verde existir de verdade só deixa essa narrativa mais instigante. Vanessa usa os elementos do terror com uma exatidão e uma transparência que deixam a experiência de leitura livre para acompanhar a narrativa com conforto. Isso faz diferença. Quando você se sente confortável demais, não percebe as sombras te envolverem.
O fechamento da edição ficou com “Segue o baile”, uma história de ficção científica passada em uma Vitória do futuro. A protagonista, Juçara, vive em uma comunidade autônoma, no maciço central da ilha. Nós a acompanhamos durante um momento de mudança e redescoberta. Ela passa pelo abandono, pelo desejo de conhecer o mundo fora dos muros de sua comunidade e pelo entendimento de quais são os laços que sustentam o seu lar, mesmo quando ele parece desabar.
Fique com a sinopse. Não vou resenhar meu próprio conto. Prefiro aproveitar para comentar sobre o processo de edição do texto. Moacir Fio foi atencioso e competente de tal maneira, que só posso desejar que qualquer pessoa que escreva ficção tenha a oportunidade de passar por um processo como esse. O trabalho envolveu marcações, comentários e sugestões de mudança no correr de todo o texto. Isso foi ótimo para que eu pudesse perceber não apenas as falhas da escrita e da estruturação da narrativa, mas os pontos fortes. Além de entender o que era necessário ser alterado, poder conhecer os elementos da minha escrita que funcionam trouxe mais consciência sobre o que eu posso explorar em futuras histórias.
Se você quiser nos ouvir conversando mais sobre essa edição da revista e sobre outros assuntos, assista a transmissão de lançamento, no canal do Coletivo Escambau. Além dos vídeos e de acompanhar os perfis do coletivo no Twitter e no Instagram, sugiro que assine a newsletter da PULPA, que te envia um microconto novo toda a semana.
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