
Imagem de capa. Mr. Louis Mendes. Fotografia de Yanqi Ding, 2015. Encostado em uma pilastra, ao lado da linha do metrô, homem negro de casado e chapéu pretos segura uma grande câmera, com uma grande lâmpada de flash.
Transcrição do podcast Não Pod Chorar 20: Como alimentar artistas independentes.
Texto de Fabiana Pedroni e Rodrigo Hipólito,
Fabiana
Domingo à noite, eu recebi 173 provas para corrigir pelo sistema online. Quinta-feira, recebi mais umas centenas e agora tenho 420 provas povoando meus pesadelos. Não é a primeira vez que sonho que saio de casa para algo banal, uma ida rápida ao supermercado, e me deparo com rostos sem máscara, pessoas rindo. Como é possível ver um sorriso debaixo de máscara? Me preparo para ajeitar a minha e acelerar o passo, mas, onde está a minha máscara? Eu a esqueci em casa. Bate o desespero, começo a correr e não consigo chegar em um lugar seguro. Às vezes o sonho se torna mais intenso, encontro corpos mortos pelo chão, às vezes ele vai pro fantástico e começo a correr do lado de animais gigantes, plantas que correm, monstros, seres alados com preguiça de voar, ou começa a sair cabelos verdes de minha cabeça. Mas, nesta noite, eu corria mais devagar, meu sonho estava mais pesado, porque eu estava com medo de voltar para casa. O que pode me dar mais medo que estar na rua sem máscara? O que pode tornar meu lar inseguro? Ter 420 provas para corrigir, ter uma demanda virtual a atender, ter de entrar no Instagram e fazer um post incrível de como meu trabalho de artista, escritora, educadora é surpreendentemente fantástico, mais que um pássaro-cão-vaca que tenta me lamber enquanto corro.
Sonhos viram um misto daquilo que se teme, com aquilo que se deseja, com aquilo que não percebemos no dia a dia. Sim, há algo do ínfimo e corriqueiro que nos habita e invade quando não estamos no domínio consciente. Quem nunca, depois de tanto jogar no celular, não viu várias bolinhas correndo num sonho e não entendeu nada. Só faltava as bolinhas gritarem Candyyyy. Há algo mais diluído de meu cotidiano que me invade quando durmo: lacunas, a distância enorme entre o que se compreende como arte e o que se pretende que se entenda dentro da área de arte educação. Esse medo da distância entre mundo da arte e mundo cotidiano vem de diferentes formas, muitas vezes no esforço que empreendemos numa rede social. Ter medo de voltar para casa porque preciso postar no Instagram é assumir que há algo de ineficiente e tormentoso no processo. Estaria mentindo se tudo o fosse, na maioria das vezes é um prazer, é um encontro, é estar perto de quem está longe, ainda mais agora em tempos pandêmicos. Mas, lá no fundo, lá no que toca o medo inconsciente dentro do cotidiano, está o medo de se perder na importância que se dá ao estar presente virtual.
Mas, o que isso tem a ver com o entendimento de arte em diferentes âmbitos? Tudo! Um produtor independente de conteúdo se dedica, em meio ao turbilhão cotidiano de afazeres, a criar uma fotografia, a criar um vídeo, um projeto de instalação, um processo, um podcast, um texto poético. Ele compartilha nas redes sociais enquanto está no banheiro – momento sagrado da pausa das obrigações sociais e trabalhistas. Espere o dia inteiro ansioso por uma curtida, por uma resposta, por um compartilhamento. O alcance é pequeno. Sua ansiedade aumenta. Ele vê o Instagram cheio dos alertas de “promover”. Ele acessa os gráficos no site de agendamentos de posts que ele, com muito custo paga um plano. Observa o comportamento do público. Então, naquele dia ruim, em que o trabalho de “insira aqui qualquer coisa que alguém faça para se sustentar e sustentar sua família, que ainda não seja artístico como se quer”, bom, esse trabalho deu ruim, então, ele decide fazer aquele post: faz um desenho realista como desdobramento do seu processo poético inicial. O alcance ainda é pequeno, mas fez seu gráfico ter uma curva. O engajamento ainda é fraco.
Esse artista independente acompanha vídeos, investe um bom tempo para aprender sobre marketing digital. A concorrência é grande. E entendo seu desânimo a cada dia, vide minha frustração ao dizer para colegas acadêmicos que sou podcaster no Não Pod Tocar e todo o esforço deles em trazer qualquer debate para “a Folha tem um podcast”. O mundo não é fácil, não mesmo.
As responsabilidades como artista, como público e como educadores só aumentam. E me fazem pensar, enquanto corro no meio desse sonho bizarro sem máscara, a correr do pássaro-cão-vaca, onde estão as Mafagafos das artes. Foi da Revista Mafagafo que veio a Faísca, uma newsletter que envia semanalmente, duas narrativas de duas autorias diferentes de literatura de ficção. Rodrigo, inclusive, lançou no site notamanuscrita uma série de resenhas da segunda temporada da Faísca, nesta terceira semana de julho. Uma iniciativa como a Faísca me faz pensar no que acontece dentro do mundo da produção artística, voltada para produções que a História da Arte se dedica, que as poucas iniciativas de divulgação de artistas independentes ou iniciantes morrem depois de poucos meses de vida. Seria o ego do artista, inflado desde o final do século XVIII pra não dizer antes, que entra em choque com outros egos e criam uma explosão que aniquila qualquer esforço de união? Ou ela morre ou ela se torna um ambiente tão competitivo e inflado de dinheiro que fica fora do alcance dos artistas independentes.
Aí você me dirá, ah, Fabiana, mas existe, essa revista, esse canal, esse site. Sim, mas, qual deles não estão mais atentos aos gráficos de reação do público que a quem é este artista, que posicionamentos ele tem, que ele diz, que mundo ele imagina e tenta construir para você estar junto na construção? Porque é isso que significa apoiar um artista independente, não é apenas sua sobrevivência financeira. Afinal, estamos falando de artista independente, iniciativas independentes. O que isso significa senão tentar, se rebater para continuar com a liberdade dentro de seu processo criativo?
Não vou me iludir e iludi-los a dizer que trago soluções. O Não Pod Chorar traz resmungos e tentativas de solução pelo levante de dúvidas, de incômodos. Reconhecer o problema é o primeiro ponto, e esse primeiro, pra mim, é compreender que a questão do artista independente e a sobrevivência no mercado é complexa, que envolve o cotidiano, os boletos, a distância entre produtor e consumidor e a falência educacional. As desigualdades que o sistema capitalista atual reforça contribuem para que o artista independente, o escritor independente, o educador esperançoso se sintam desmotivados quando olham as milhares de curtidas em um post de uma mulher objetificada ou as repercussões de um asno que pastoreia um rebanho cruel. Se sentir desmotivada significa se sentir sufocada e aos poucos ir diminuindo o passo, ir diminuindo a produção, com a ilusão tola de que sua produção não é importante, que uma, duas curtidas, realmente dizem algo sobre o tempo que você gasta a pensar e a trabalhar no mundo que quer construir. A meu ver, o problema não está na produção independente, mas na insistência do produtor independente em utilizar ferramentas que alimentam a dependência, o massacre, o apagamento. Por que utilizar uma plataforma que diminui intencionalmente seu alcance? Uma plataforma que tem medo de que o alcance do artista independente que se mantém dentro de seus ideais de visão de mundo, ganhe visibilidade e a exploda por dentro. Não digo que abandone as mídias sociais que temos no momento. Apenas digo para não olhar tantos os gráficos, porque muitas vezes eles impedem, intencionalmente, que percebamos as nossas próprias necessidades. Como educadora esperançosa, acredito que estamos em uma transição para novas alternativas, em que o ego inflado do artista romântico vá ficar no século XIX e que o bolso do artista empreendedor fique preso na dependência de um sistema já falido. Vai demorar? Vai. Mas, o que seria dos independentes se eles não se reconhecessem e não começassem uma conversa, um resmungo.
Rodrigo
Têm umas coincidências que são providenciais. Talvez não sejam coincidências. Quando a gente fala sobre processo de criação, as coisas tendem a se encaixar.
Nesse caso, o começo da fala do Maneco se encaixou com algo que eu escrevia no momento em que escutei o áudio.
O que eu escrevia era a introdução de um artigo sobre processo de criação e processo de pesquisa em arte. Eu falava sobre como existe uma condição aporística da relação entre processo de criação e quotidiano.
Na época da graduação, meu professor e orientador dizia que a dificuldade não estava em ser artista, mas em ser artista e seguir com todo o resto. Esse todo o resto é a própria vida, nossos afazeres, nossa vida amorosa, nossa família, finanças, saúde, alimentação, deslocamento, burocracia, projetos alheios e por aí vai. Em resumo, esse todo o resto é o nosso dia a dia, são as coisas que continuariam a necessitar de nossa atenção fôssemos nós artistas ou não.
O restante da vida não está interessada em saber se somos ou não artistas, se precisamos de tempo para desenvolver um encadeamento poético ou se precisamos nos desligar de partes do mundo para sentirmos de modo mais intenso um fenômeno, uma situação.
Não é apenas isso. Se fosse apenas isso, nós teríamos uma contradição simples e direta. Ocorre que o processo de criação está contido no quotidiano. Não é possível separá-lo das nossas condições de vida.
Processos de criação em arte exigem um movimento simultâneo de aproximação e de afastamento do quotidiano. Por mais estressante ou horrível que seja a realidade, se você estabelecer apenas o afastamento como condição para poder desenvolver o seu trabalho, você vai se frustrar.
No caso de você tentar o oposto, eu te adianto de que isso também não irá funcionar. Apenas se aproximar do quotidiano pode te impedir de reconhecer os limites e as relações estabelecidas pelo seu trabalho. Perceber esses limites é fundamental para artistas independentes. Como você poderia pensar a divulgação e as relações dos seus trabalhos com o público caso você não conseguisse desvinculá-los, virtualmente, da sua rotina?
Como você poderia perceber as transformações ocorridas nos seus processo de criação, caso você não fosse capaz de perceber como a recepção do público impacta na sua rotina? Se você não dá atenção para isso, você pode começar apenas a produzir aquilo que, aparentemente, tem mais sucesso na divulgação. Esse é um caminho para perder a liberdade.
Note que não basta, no momento de pensar a divulgação, a apresentação e a presentação de seus trabalhos, que você conclua que ele possui qualidade suficiente para ser levado a público.
Não se trata apenas disso.
Nós já passamos muito da época em que trabalhos de arte seriam valorizados pela sua capacidade de serem universais. Felizmente, nós escapamos dessa falácia.
Tudo bem, nem todo mundo escapou disso, vide nosso ex-secretário de cultura repetindo discurso contra arte degenerada e emulando elogio fetichista aos clássicos europeus pra assinar carteirinha de neonazista.
Se você não está nesse grupinho de gente ultrapassada, tacanha e maligna, é bom que você lembre-se de que: independentemente da aparência e do conteúdo do seu trabalho de arte, isso não é tudo o que determina a relação com o público. Recentemente, ocorreu uma campanha no Instagram e no Twitter, na qual produtores independente de diversas áreas apontaram que não custa nada divulgar e curtir trabalhos independentes.
Essa foi uma campanha interessante e os debates em torno dela, por mais uma coincidência, dialogam muito com a fala do Maneco sobre o engajamento na divulgação de trabalhos. Percebam que a fala do Maneco parte da responsabilidade de jornalistas e produtores de conteúdo com grande público frente às produções independentes.
Se você é uma figura cujas palavras possuem alcance muito extenso, a sua decisão entre divulgar produção independente ou hegemônica é algo que pode mudar a vida de outras pessoas. Dito isso, tenham cuidado para não apenas cobrar do público um engajamento baseado puramente na aparência, conteúdo e qualidade técnica do seu trabalho.
Eu vou dizer isso de modo bastante pessoal, pois entendo que não é obrigação do público assumir essa responsabilidade. Quando digo que vou falar de modo pessoal, isso significa que vou tentar, também, me entender como público.
No meu caso, a decisão de divulgar ou não um trabalho depende menos da qualidade estética e da qualidade conceitual da proposta e mais do que a existência daquela pessoa artista significa para a realidade que eu ajudo a construir.
Quando eu encontro perfis de artistas que não apenas não se posicionam com relação a temas que são do meu interesse, dentro e fora do sistema das artes, mas fazem questão de encobrir seus posicionamentos, eu tendo a ignorá-los.
O que eu disse no começo, sobre não ser possível afastar a arte do quotidiano, tem relação com não ser possível afastar a arte de quem a produz. Caso se trate de um artista, entre aspas, “reconhecido”, esse quem produz pode incluir diversos agentes do sistema das artes, como galerias, colecionadores, seguradoras, museus, críticos, curadores, transportadoras, técnicos de montagem, empresas de marketing, designers, educadores e muitos outros. Caso se trate de artista independente, esse quem produz pode dizer respeito apenas aquele indivíduo.
Em ambos os casos, a minha decisão de apoiar ou não apoiar, mesmo com a mais simples das ações, que é apertar um botão, passa pelo que essa pessoa representa para o mundo que eu quero construir. Não simplifiquemos o contato das pessoas com arte e a existência de artistas independentes no espetáculo tempestuoso que é a vida pós-internet.
Se você for artista independente, entenda que suas produções e seu processo de criação precisam atravessar o quotidiano, não apenas se afastar, nem apenas se aproximar. Não compreender isso é aceitar o risco de perder a sua liberdade. Se você estiver como público, tente ser responsável quando precisar apertar um botão, tente ser responsável quando precisar fazer qualquer escolha. No mundo pós-internet, compartilhar um nome pode fazer com que uma pessoa seja esquecida ou se torne presidente.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Republicou isso em REBLOGADOR.