
Imagem de capa. Vaquinha e cadeira. Fotografia de cadeira antiga e pintura parietal de Marcelino Pedroni. Fabiana Pedroni, 2020. Cadeira de madeira pintada de vermelho no centro da imagem, com silhueta de vaca estilizada pintada em branco sobre parede com reboco ao fundo.
Transcrição do podcast Não Pod Chorar 21: Como não se perder na chuva
Texto de Fabiana Pedroni.
Está fazendo muito sol lá fora. Não sei há quantos dias não olho para fora de casa de verdade. Às vezes olho, porque meu cachorro aponta algo e late. Mas, não sei quando foi a última vez que parei para ver o céu azul. Vitória é um lugar quente e úmido. Quando a umidade relativa do ar chega em 60%, os olhos ficam irritados, os lábios ressecam e qualquer esticada da pele, parece que vamos trincar como casca de amendoim. Agora a umidade está a 71%. Razoável. O vento está à 21km/h, diz na internet, apesar de parecer mais forte. As folhas das castanheiras estão balançando bastante, o asfalto se enchendo de pequenos grãos de areia. Cidade costeira, parece que tudo vira um grão de praia, mesmo quando se está distante. Depois de muitos dias frescos e até frios, nem acredito que usei meias, hoje está um pouco mais quente. Sensação de 28ºC. Tudo tão claro, tão vivo. Céu azulzinho, nenhuma nuvem.
Talvez você esteja com um sentimento confuso, tão confuso quanto o meu. Enquanto olho pela janela e escrevo este texto para você, ouço mais uma das tantas listas de chuva no youtube que ouvi esta semana. Rodrigo que me disse que me isolar em meio a chuva poderia me ajudar. Ouvir a água bater em folhas de bananeira, sentir o cheiro de terra molhada, mesmo num dia de sol, poderia me ajudar a me concentrar. Disse que logo eu chegaria nos vídeos de tempestade de neve. Ainda não cheguei. Eu continuo presa na chuva.
A rotina de trabalho mudou, a rotina de qualquer coisa mudou e a nova não é das mais agradáveis, por mais que eu possa resumir em um “está tudo bem”, quando alguém me pergunta como estou. Medos se acumulam e eu continuo presa nessa chuva. [deixe a chuva sozinha e mais alta um pouco] Tem horas que só ouço a chuva [mais chuva]. É um conforto confuso. Ao mesmo tempo em que me lembro de dividir um guarda-chuva com aquele que amava, como cena de filme gostosinho, lembro das inundações na casa de meu avô e a maldita lacraia da semana seguinte. Foi o pior beijo de minha vida. A peste me mordeu bem na boca. E aí lembro do romance com o cara do guarda-chuva, lembro que perdi ele em algum lugar, o guarda-chuva e o romance.
Será que você já está sentindo onde quero chegar? Bem, vamos parar com o som de chuva por aqui, eu sei que ele pode atrapalhar a escuta de vocês, sigo nessa escuta mais solitária. Enquanto isso, vocês podem pensar numa cadeira. Não, isso não é meditação guiada. Só preciso arrancar de vocês uma imagem. Eu gosto de cadeiras. Até porque estou sentada em uma neste momento. Que cadeira é esta que você imagina? De onde será que ela veio? Que cor ela tem? É alguma que você tem ai contigo? Ou veio de uma propaganda genérica? Eu sempre volto na cadeira vermelha do meu avô. A tinta já desgastada, mas gosto muito daquela cadeira. Quando minha avó piorou do Alzheimer, eu perguntei pra meu avô de onde veio a cadeira. Estava muito apegada às memórias. Queria ouvir aquele causo lindo, já guardado na memória, da cadeira que era da minha avó, de muito tempo, como as outras cadeiras que foram feitas por um tio dela. Mas a vermelha era muito mais gasta, e eu a achava mais bonita, com detalhes mais arredondados. As outras eram brutas, resistentes, mas meio quadradonas, que faziam um conjunto esquisito com uma mesa de canto alto, feita meio errada, numa família de gente baixinha. Não dava pra usar a cadeira e a mesa ao mesmo tempo. Era uma mesa pra se usar de pé. Nunca entendi. Não lembro dos meus avós terem mesa de jantar, mas sempre tinham cadeiras espalhadas pela casa, pra poder sentar e tomar café. A gente comia ou no sofá, que é um banco, na verdade, ou no chão.
Sobre a cadeira vermelha, meu avô me disse que ela era diferente das outras 3 porque veio da vizinha. Ela colocou no lixo e ele pegou. Tava meio bamba, mas colocou um remendo de madeira na parte de trás e ela voltou a funcionar. Até ele me dizer isso, nunca tinha visto o remendo. E ela não estava na família há décadas, talvez pouco mais de 10 anos. Na real, a cadeira é um pouco desconfortável e o assento meio frágil. Meu avô não precisava de uma outra cadeira, mas ele achou que poderia ser útil. Com o tempo, algumas pessoas que não tiveram cadeiras, nem mesas, nem talheres, se tornam um pouco acumuladoras. A cadeira, no final, foi útil. Assim que minha avó parou de comer sozinha, minha mãe passou a usá-la pra dar comida pra ela. Minha avó numa poltrona e minha mãe na cadeira vermelha, bem na frente dela. A cadeira vermelha é mais leve que as outras, pra ficar carregando pra lá e pra cá.
Nos últimos meses, comecei a ter um sentimento confuso com esta cadeira. Gosto dela porque ainda lembro das memórias que criei, mas já não gosto porque ela tinha mais de uma história. Ela me lembra algo mais, o risco, o perigo de uma história única. Talvez já tenha ouvido isso, se não ouviu, recomendo ir atrás da Chimamanda Adichie.
Esse acontecimento tem se tornado frequente nos últimos meses, ao ponto de querer me enfiar na chuva e isolar minha atenção. Outro risco, o de negação. A gente entra em parafuso, gira e gira num mesmo lugar, sem propósito nenhum, porque nada dá certo numa volta enjambrada. E eu preciso dizer. Este episódio quase não aconteceu. Hoje é sexta-feira. Na terça-feira à noite, eu sabia que não estava bem. Dormi um sono forçado e acordei grogue. Passei a manhã meio anestesiada e pensei que aos poucos voltaria. Não voltei. Foi uma quarta-feira inteira de choro. Daquele que dói, daquele que tira pedaço, que te deixa com falta de ar. Profissionalmente falando, às vezes acho complicada a relação tão aberta que mantenho com você, dizendo tudo isso. Uma professora em prantos por quase 24h. Inerte. Este episódio quase não aconteceu. Ontem, quinta, acordei porque já estava sem tempo. Entreguei um artigo, 8 páginas escritas em menos de 3 horas. Muita leitura. Uma live de 1h30 com uma turma grande, impecável, cheia de conteúdo, trocas e muitos risos. Nada forçado. Confusamente, fui dormir feliz.
O Não Pod Tocar nunca foi uma obrigação. Acho que foi o Samuel Muca, do podcast Boteco dos versados, que disse no Twitter que a gente faz assim, corre com o trabalho pra quando ele acabar, ter tempo para trabalhar em outra coisa. Isso é produção independente. Eu quase não gravei hoje. E talvez você já esteja cansado de eu repetir isso, mas falo com a intenção de mostrar que isso pode acontecer. Nada é assim tão simples. O quase não aconteceu parou quando vi um tweet do Jurandir do Rapaduracast. Ele disse assim “Quando a gente escuta um podcast e gosta, você se apega aos participantes. Eles acabam se tornando amigos, mesmo que muitas vezes eles nem saibam que você existe. Mas são grandes companhias em vários momentos da sua vida”. Quando li isso, eu pensei eu mim como podcaster e que talvez eu seja uma bolacha no pacote de biscoito, nem precisa ser a última, nem bolacha, nem biscoito, mas que tá ali junto da rotina de alguém. Esse era um ponto, mas, do mesmo jeito que uma cadeira nunca é uma só cadeira, o estar junto também é algo do lado de cá. Como que eu poderia ficar sem esta gravação e esta escrita numa semana tão difícil? Eu continuaria presa nesse dia ruim, se não parasse este tempo e reorganizasse as ideias e os sentimentos para entender que por mais que idealize uma cadeira, ela pode ser várias outras ao mesmo tempo.
Vamos conectar os causos. Foi na quarta-feira que o grupo de 257 educadores de ensino a distância entrou em parafuso na frustração com a educação e vários outros problemas que rondam a vida acadêmica. Foi num daqueles momentos em que nos desesperamos e pensamos em alternativas, mas, todas elas incluíam não acreditar mais na educação e simplificar a vida a retorno financeiro. E Rodrigo me disse o seguinte que me foi muito útil e queria compartilhar com vocês:
“Isso é tudo muito, muito perigoso e as pessoas precisam aprender isso. muita gente sofre o tempo todo por querer fazer o que é certo individualmente e pode acabar soterrada pelo mal. Essas não são lutas que possam ser vencidas com atos pontuais e solitários. Vamos pro segundo ponto. Lembro de alguma aula ou livro sobre arte moderna que li na graduação que dizia mais ou menos: falar que os artistas modernos de Paris eram pobres e miseráveis é um erro de perspectiva. Eles usavam todo o dinheiro que ganhavam pra comprar seus materiais e alcançar seus objetivos de pesquisa. Se você alcança seus objetivos de vida, você é miserável? Tá, isso é uma coisa. Mas, todos precisam de dinheiro pra sobreviver nessa realidade, certo? Certo. Não devemos confundir isso com mudar nossas escolhas de vida para apenas ganhar dinheiro. Nenhuma dessas discussões pode funcionar num campo progressista se elas não forem anticapitalistas. Nós vivemos no capitalismo, mas não precisamos ditar nos objetivos por ele. Isso é parecido com a discussão sobre pirataria. As pessoas se dizem progressistas até o ponto em que precisam pensar seus objetivos de vida de modo anticapitalista. Na hora que precisam fazer isso, nossa alienação é tão grande, que não conseguimos pensar em nada que seja fora do capitalismo. E sim, isso existe. Eu sei que não vou ficar rico como pesquisador, escritor, artista, etc. Meu objetivo não é esse. Se aquilo não estiver funcionando na vida, a gente precisa manter a liberdade de cair fora quando der. Desistir nem sempre significa perder. Aliás, na maioria das vezes, nos últimos anos, eu prefiro estar ao lado dos perdedores e dos perseguidos, mas tem que ter alguém ao meu lado. Eu jamais escolheria fazer um curso que eu detesto apenas pra ganhar dinheiro. [Vou fazer uma pausa aqui na fala do Rodrigo para acrescentar uma informação: antes de entrar no curso de artes, tentei ir para direito. Quando não passei na prova por meio ponto e fiquei super feliz por não ter passado, e aí eu entendi que eu tava insistindo em algo que não era meu objetivo, não era o que queria. Continuando:] Eu não conseguiria viver assim. Isso é algo muito sério. Muitas pessoas que cursam humanidades, talvez não estivessem vivas se tivessem escolhido outros cursos. Muitas pessoas LGBTQ+ só tiveram coragem e apoio para sair da casa de pais agressores depois de entrarem em cursos de humanidades. Muitas pessoas só passaram a ter coragem para encarar o mundo por conta de cursos de humanidades. [Rodrigo está aqui insistindo na questão do curso, não porque está dizendo que pessoas de TI não podem ter pensamento crítico e voltado também para as humanidades, mas porque a mensagem do desespero entre os educadores e que compartilhei com ele girou em torno de “mano, que faço agora, vou pra ti depois de anos de carreira acadêmica nas artes? Continuando:] Muitas pessoas que não tem essa liberdade, passam anos, mais de década, estudando pra entrar em medicina e engenharia sem ter a menor vontade de fazer aquilo… ou estudando para passar de concurso em concurso até chegar ao cinquenta e poucos anos e só aí poder começar a viver de verdade. Tem gente que morre sem ter vivido de verdade, pois nunca tiveram a chance de se perguntar quais eram as suas próprias vontades. Desejar perder a liberdade depois de conquistá-la é um sinal de desespero. O desespero é um péssimo conselheiro.”
O desespero é um péssimo conselheiro. É aqui que entra a cadeira do meu avô e o perigo de uma história única. Quando descobri que minha avó tinha Alzheimer, na verdade, quando ela passou a me chamar de Fabiana e não de Binha, como sempre me chamou, romantizei a memória. Achava tudo daquela casa lindo e me apeguei à cadeira vermelha como se ela fosse a presença viva de minha vó, que ainda me chamaria de Binha. Que besteira, ainda dou bença pra minha vó, mesmo ela não dizendo coisa com coisa haushaus mas isso é outro causo. Queria guardar tudo o que era de mais bonito nela, todo o carinho, toda memória gostosa.
Sempre que eu começava com esse meu lado meloso, um carinho nos cabelos grisalhos, ela me beliscava e me chamava de piranha ou gritava algo racista na rua, mostrando o racismo estrutural que ela não deixava escapar antes do Alzheimer. Ou gritava achando que qualquer homem que chegasse perto dela poderia querer estuprá-la. Minha avó tinha medo. Conheci uma outra mulher que não sabia que existia, porque ela sempre se esforçava dentro da ideia da caridade e empatia, mas também do silêncio.
Meu avô, um dia me contou que quando veio morar em Vitória, vindo do interior do Estado, ele tinha que chegar cedo em casa e estar sempre atento. Um homem branco, mas calejado de sol da roça e nariz de batata, como ele dizia, se não estivesse, naquela época, com a carteira de trabalho no bolso, era vagabundo e a polícia parava. Esse mesmo avô me disse há uns dias, de novo, que “naquele tempo que era bom. Um tempo sem bandidagem”. E aí eu abaixo o volume do jornal sangrento, e pergunto, mas, e se o senhor não estivesse com a carteira de trabalho no bolso? Pois é, o desespero é um péssimo conselheiro.
É isso o que vou levar comigo para todos os momentos de crise nos próximos dias, porque eles voltarão. Porque estou em uma disciplina sobre Escola e Cultura, e há aqueles alunos de graduação que, por desespero, acreditam que “aquele tempo que era bom”. Eles veem uma escola em que os alunos estão sentados, quietinhos, ordenados, a professora de pé, o dia ensolarado, os pais felizes, como uma escola perfeita. Isso porque ao lado comparam com uma escola em que os alunos se levantam e se revoltam verbal e fisicamente por não encontrarem meios de expressar a frustração e toda a problemática envolvida quando um professor faz um comentário racista. Ao menos, é isso o que penso quando vejo alunos de pé numa sala de aula, ou talvez uma atividade que não envolva cadeiras, que não envolva estar sentado passivo a tudo o que o educador precisa passar aos alunos, num sistema ainda em conflito entre uma educação bancária e uma libertadora. Estou me referindo a uma charge que vou deixar no post do episódio e que foi um dos estopins para este episódio quase não acontecer.
Quando entramos em desespero, quando precisamos com urgência de soluções, é no passado que buscamos a resposta. A necessidade de se pensar o futuro nos faz buscar no passado um caminho para ser trilhado no presente. Mas, o passado é um ponto complexo da experiência. O desespero nos aconselha erroneamente a romantizarmos e encontrarmos conforto no passado. Se ele fosse perfeito, por que o desespero nesse momento? Toda busca, todo pensamento, deve ser construído mais com perguntas que com respostas.
Depois de entender esta frase “o desespero é um péssimo conselheiro”, não pensarei mais na cadeira vermelha sem o remendo, sem o descarte e o medo do meu avô de ficar sem cadeiras como um dia já ficou, sem perceber que tendemos a pensar na experiência por dicotomias, em algo que se é bom, não é ruim, e se é ruim, não é bom. Não, pra cada ideia posta, vou criar tantas perguntas, que será impossível dizer se ela é boa ou ruim. Isso se chama experiência, isso se chama pensamento crítico. Ele dá trabalho, ele é sofrido, mas, no desespero, é o que se mais precisa.
É muito mais confortável, em meio ao desespero, buscar o conforto em uma ilusão positiva e perfeita, mas, positiva para quem? Perfeita para quem? Se é perfeita pra você, é também para os outros? Por quê? Como? Isso é possível? O que você precisa, então?
Não se trata de se perder em perguntas sem chegar a lugar nenhum como o tal parafuso que roda e roda sem ser parafusado. Cada pergunta, vai te levar a um ponto que precisa ser melhor pensado, a considerar os objetivos e o que está perdido no silêncio. O que há dentro do silêncio do choro guardado, sufocado do dia a dia? Por que quando você chora, chora trancado e escondido? O que você mais tem medo quando está em crise? Eu tenho medo de perguntas. Ela pode ser uma pergunta aparentemente simples “o que foi? O que aconteceu?”, mas é a tal pergunta que vai te fazer pensar e te forçar a sair do desespero. Porque pra responder, você precisa parar o soluço, precisa entender “que porra é essa que está acontecendo”.
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