
Imagem de capa. Ventiladores de areia, Alice Aycock, 1972. Quatro ventiladores ligados na direção de um monte de areia, no centro de uma sala de galeria de arte.
Transcrição do podcast Não Pod Chorar 25: Como mergulhar em areia movediça
Texto de Fabiana Pedroni
Quando eu era adolescente, eu tinha um pesadelo recorrente que me incomodou por muitos anos. Aos poucos fui esquecendo, até agora. Rodrigo disse: Fabiana, é contigo, você consegue gravar um Não Pod Chorar? Um flash do pesadelo apareceu na mente. Não, o Não Pod Chorar não me dá pesadelos, às vezes nem Rodrigo hahaha Vou explicar. O pesadelo era recorrente porque durante uns 2 meses, eu acho, não tenho noção exata desse tempo. Eu sonhava a mesma coisa ao menos 2 vezes na semana. Quanto mais eu sonhava, mais eu ficava impressionada e voltava a sonhar, mas sempre com alguns detalhes novos. A base do sonho era a seguinte:
Está tudo escuro. Tudo densamente escuro. Dá pra sentir apenas um cheiro estranho, mas, não sei de quê. Por não saber, começava a pensar no cheiro e me tornava mais consciente, até me perguntar “O que é isso?” Em seguida, lentamente, surgiam umas manchas amarelas. Sabe quando você olha muito para uma lâmpada e quando fecha os olhos a lâmpada te persegue? Ou, se você não tem a visão, é aquela sensação esquisita na pele de que algo está encostando em você, mas você passa a mão ao redor, e não tem nada encostado. Tipo uma presença.
Essas manchas começam a se mexer, e encostar no corpo. Dá até uma sensação gostosa, de leve dormência. Quanto mais elas se mexem, mais dá pra sentir a aspereza, a fricção na pele. O incômodo faz as manchas amarelas aumentarem, e como se fosse um processo de reduzir um zoom, passasse a ver contornos, passasse a entender a aspereza das manchas. Elas são areia. Tudo bem, você sabe o que é areia, você conhece areia, então pode lidar com ela. Basta se afastar. Você anda. Anda. Começa a querer correr, mas, tudo é areia. Você é areia. Areia não pensa em areia, não, eu não sou areia! Você se sacode, tenta focar na agonia da pele, e então começa a ver sua própria pele. Este é seu braço, estas são suas mãos. Agora você pode jogar a areia para longe de si. Mas, não adianta. É muita areia. Você ainda pode correr, agora que tem corpo. Com muito esforço, percebe seu quadril, sente suas pernas, mas não as vê, porque há areia está pra cima do joelho. Assim que você entende onde está seu corpo, a areia se aquieta. Tudo fica parado. A areia não voa mais ao redor do seu corpo, o que voava, repousou até quase seu quadril. O cheiro também sumiu. A areia tornou-se mais nítida e num amarelo vibrante, quente. Sem ouvir nada, a agonia aumenta. A respiração dispara. Você olha por um longo período o limite da areia e seu corpo. Quando levanta a cabeça, leva um susto. O enquadramento mudou, agora você vê à longa distância, toda a paisagem. É um gigantesco buraco e você é o centro dele. Tão gigantesco como se um meteoro tivesse caído e deixado uma cratera. O céu parece ainda mais distante que o normal. A princípio, você quer chorar e gritar, mas não consegue. O caminho para fora não é assim tão íngreme. É um buraco profundo, mas, sua dimensão faz as paredes parecerem morros. Humanos conseguem subir morros. Ora essa. Você ri e começa a se mexer. Sacode aqui, ali, o quadril vai soltando, as pernas se mexendo, e você consegue dar os primeiros passos. No 5º passo, começa a correr. Então, você afunda. Afunda mais que antes e a areia chega até seu umbigo. O pânico bate. A frustração te faz ouvir a areia comer seus pés. O formigamento não é mais prazeroso. Você se debate. Grita, me solta, me solta e a areia só sobe. Já está perto do peito. Seus pés começam a queimar, você tenta enxergar, mas é tudo areia. No desespero, você afunda o braço direito, em socorro dos pés. Alcança o pé direito, coça, coça como se fosse arrancar a pele fora. No coçar e se debater, você puxa a perna direita com tanta força que seu corpo fica todo torto na areia. Todo seu lado direito agora está fora da areia, você está deitado nela, com o lado esquerdo preso. O medo de ver a areia tão de perto te paralisa. O zoom aumenta, a areia brilha. Nada disso faz sentido. O corpo pesa. A areia fica leve. Um tempo depois, um longo tempo depois, você está deitado, com os braços cruzados sob a cabeça, olhando para a grande parede de areia. O corpo aquecido, parece a praia. Você relaxa, cruza as pernas, fica feliz de ter todo seu corpo sobre a areia. Pequenos movimentos são possíveis. Você vira de lado, passa a mão sobre a areia, a acaricia. Sente sua aspereza, que já não machuca. Quentinha. Você a pega e joga um pouco sobre seu rosto. Bem clichê, bem erótico.
É a partir dai que os detalhes de cada sonho começam a mudar drasticamente. Algumas vezes o pesadelo terminava ai, noutras, a areia ficava tão quentinha, tão fina, que você mergulha nela. Não dá pra saber bem se você nada ou se voa. Mas, num é um pesadelo? vai terminar com prazer e contemplação? Muitas vezes o terror vem no acordar, no recordar do sonho. Você pensa na agonia de não conseguir sair da cratera. De não compreender o que faz ali e onde estão as outras pessoas, esquece que a areia pode ser quentinha. Às vezes você fica preso na tentativa de sair de lá, no correr e subir infinitamente, como se não saísse do lugar. Você começa a recordar da paisagem com maiores detalhes e sentimentos diferentes do que o sonho despertava. A areia amarela, tornou-se vermelha enquanto você nadava, você esbarrou em alguns corpos. Reconheceu algumas cabeças soltas, flutuando em vermelho. Mas, continuou nadando. Não porque queria sair dali, mas porque podia nadar e estava feliz com isso.
O pior desse pesadelo, pra mim, não era estar presa, era a intensificação da indiferença. Num dia sonhei que via os cabelos de minha mãe na areia. Fiquei rapidamente triste, mas, ela não estava presa, não se mexia, e eu só alcançava os cabelos. Pensei, no pesadelo “será que ela gostaria de ter a areia quentinha sobre seu corpo?” Então eu jogava mais areia ao redor de seus cabelos. Acordei apavorada. A decepção comigo mesma era aterrorizante.
E justo nessa semana, lembrei destes pesadelos. Justo nessa semana que gravo um não pode chorar, justo nesta semana que completou 1 ano de pandemia para mim. Desde o dia 17 de março estou isolada. E sei que muitos também estão, resistindo, se esforçando. E não, não está nada fácil.
Quando lembrei-me desse pesadelo, me perguntei “Por que paralisamos? O quanto mudamos neste um ano?”
O último Não Pod Chorar que gravei, o de número 23, sobre Como não perder o encantamento, ainda está reverberando em mim. É como se fosse uma luta constante de resistência e encantamento com um mundo que não nos responde de volta.
Talvez este seja o Nao Pod Chorar mais curtinho que já fiz, porque eu não estou bem, não estamos bem. Não me sinto confiante para uma fala mais extensa, nem profunda, porque quanto mais profunda, mais ela nos atravessa. Acredito que eu não precisarei, depois deste um ano, explicar e fazer analogias sobre o sofrimento pelo qual passamos. Até porque não acredito que existam ouvintes negacionistas aqui comigo, e, se tiver, não sei como chegou até aqui e nem porque ainda escuta.
Todo dia, tivemos uma nova decepção, uma nova ferida que não tem tempo de cicatrizar. Afundamos em trabalho, em um esforço constante de estar junto mesmo distantes. Vimos um genocida debochar do sofrimento daqueles que não conseguem respirar, acompanhamos a retirada de direitos, o massacre de minorias. Acompanhamos isso todo dia, todo instante, intercalando sofrimento com trabalho, memes engraçados e vídeos de gatinhos. Enquanto escrevo essa difícil pauta, recebo um encaminhamento de post de Instagram uma live de uma psicóloga que vai falar sobre “Como lidar com tudo isso ao mesmo tempo, de forma leve e resiliente?”. Eu entendo as tentativas, aqui também estamos tentando, resistindo, mas é muito difícil compreender o que implica a leveza, flutuar, nadar entre corpos. Ser resiliente, palavra que era tão pouco usada e agora tá num ápice de coaching, porque é nossa capacidade de adaptação. na física, é a capacidade de retornar à uma forma original depois de uma situação de estresse. Sério mesmo? Voltar ao que era antes? O que significa adaptar-se?
Não estou dizendo que não devamos sobreviver. Mas, pensar porque estamos parados é importante. Alguns não se movem porque são negacionistas e pra eles não está acontecendo nada de diferente. Já outros, não se movem porque a morte do outro não significa nada. Podem até chorar por um ente querido, mas a responsabilidade da morte é o acaso da vida. “Todos vamos morrer”, é o que dizem. Uma parcela deles até acha a pandemia lucrativa, de certa forma. Barateia mão de obra quando o desemprego aumenta.
Mas, e nós, que estivemos e estamos em isolamento, que sofremos a cada novo recorde de mortos, que entendemos minimamente o que a pandemia e um genocídio implicam?
Vou dizer o que pensei quando me fiz a pergunta de por que eu estou letárgica, presa neste estado de cansaço, sem energia, com cada vez menos capacidade mental e motivação para lutar e resistir. Por que eu me decepcionei.
Até aí nenhuma surpresa, não é? Ouvimos tantos absurdos, tantas e tantas vezes que aos poucos não nos surpreendemos mais. Essa decepção tem dois graves sintomas: ao não nos surpreendermos, encaramos o absurdo como normalidade e, logo, não há por que lutar. Vão congelar salário de servidores públicos por 15 anos, você quer debater com os professores, mas eles só fogem do assunto e dizem que vai ficar tudo bem, vai passar. Você é isolado. Lutar, como, pra que?
Segundo que, se nos decepcionamos com as pessoas, cada vez mais, e poucos vão restando ao nosso lado, também já acostumados com o absurdo, não há por quem lutar.
Sei que o comparativo parece bobo, mas, pra quem já morou sozinho ou ficou sozinho uns dias, como foi sua relação com a comida? Sabe quando só você vai almoçar e bate a preguiça, o desânimo, e aí vc faz um qualquer coisa, e os dias passam e você continua no qualquer coisa, de noite, cansada, só abre um pacote de biscoito e come quietinha vendo uma série. É muito difícil desenvolver o hábito de cozinhar bem e coisas gostosas só pra um. E mesmo quando você aprende, com muito custo e tempo, que é importante se alimentar direito mesmo estando sozinha, é um passo curto para desaprender e voltar a uma rotina de afundamento e desleixo consigo.
É muito difícil dizer que você vai se mover vai sobreviver, por você mesmo. Vou ficar só mais um pouquinho aqui.. vou chorar só mais um pouquinho.. vou trabalhar e deitar aqui, só mais um pouquinho.
Se você não mora sozinho, pode ser que, depois de um ano, esteja se sentindo sozinho, porque a rotina pesa. Nos faz esquecer que comeremos juntos no almoço. A decepção com outras pessoas, faz apagar a admiração que você tinha daqueles que resistem com você. Porque passamos a espelhar o desânimo de nossa existência na existência delas, como se aos poucos as estivéssemos apagando. Como se aos poucos apenas a decepção e a letargia importasse.
Nos filmes apocalípticos ficamos naquela expectativa: não, mano, faz isso não, não vale a pena, não abre a porta, não salva esse povo. Tá se arriscando a toa, fica na sua.
Eu não quero comer biscoitos…
Mas este é um não pod chorar, não é mesmo? O que posso dizer depois de situa-los dentro deste enorme buraco de areia. Encontre aqueles por quem você quer lutar. Sim, eles existem, e não são apenas as pessoas que você mantém seguras dentro de casa.
Há umas semanas luto contra essa letargia e devo muito aos que divulgam as máscaras PPF2 no Twitter. Foi lá que encontrei pessoas preocupadas e cansadas como eu. Foi lá que entendi que a decepção não é com a humanidade, não é com uma generalização que nos arrasta para o fundo do buraco. Preciso reaprender que há pessoas no mundo. Preciso reaprender que há, sim uma responsabilidade individual, no uso de máscaras e cuidados, mas, principalmente, que há uma responsabilidade pública, governamental. Vou deixar o link desse fio que mexeu comigo hoje, de como somos manipulados em grupo para nós culpabilizar e não ao governo.
E você pode até pensar que o seu amor próprio seria suficiente para você não afundar, mas, por mais que você se ame, pode ser que você também se odeie, e esteja decepcionado consigo mesmo. Eu me sinto assim sempre que percebo uma vontade em mim de que o outro morra, ou que ao menos sofra o suficiente para aprender que não dá pra negar a realidade. E aí afundamos ainda mais.
Esse lutar que eu falo vai desde ações diárias, pequenas, de estar presente no mundo, em contato com o outro, para que o outro também tenha energia para sobreviver, até um movimentar-se em grupo, exigir direitos que nos estão sendo retirados. Teve um dia que liguei a câmera pra meu irmão e enquanto eu fazia pão, ficamos conversando. Passamos a tarde inteira assim. Às vezes as telas nos cansam, então, não olhe para ela. Ligue e siga sua rotina básica, compartilhe um momento. E encontre aqueles por quem vale a pena lutar. Não acredite, antes de estar junto, que todo estudante do outro lado da tela é um negacionista, ou que ele escolheu ser cruel. Não acredite que aquela pessoa sem máscara compreende perfeitamente suas ações e faz isso de modo deliberado. Ao mesmo tempo em que você descobre que, sim, tem gente muito ruim que se pudesse escravizava e assassinar os outros em prol do seu lucro, há, também, pessoas que se importam e lutam pelo bem do outro. Parece pouco, diante do estrago da decepção, mas, sempre que você compartilha uma informação importante que você já conhece e entende, você está depositando esperança numa mudança.
Mais uma vez este podcast quase não saiu. Fiquei o dia inteiro para conseguir escrever a pauta, porque parava, fugia, mas, agora, depois de pensar aqui com vocês sobre tudo isso, entendo que preciso gravar para que vocês saibam que existe mais uma pessoa que quer muito não deixar de sentir, seja sofrimento, seja pequeníssimas alegrias do dia a dia. Não vai ficar leve, porque a morte é pesada. Não vamos nos adaptar a retirada de direitos, mas sim, aprender a sobreviver e salvar a si e o próximo.
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Entre escrever a pauta e gravá-la, tenho que dizer que esse esforço por manter a humanidade e o encantamento é diário e a todo instante exige uma paciência. Vou te dizer, misericórdinha!
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