
Imagem de capa. Fotografia de busto da escritora Ana Paula Maia, vista de frente, olhando para a câmera, vestindo uma blusa preta de mangas longas, com fundo cinza, segurando a reprodução escultórica de uma cabeça de touro sobre o ombro direito, com a mão direita no chifre. Fotografia de Marcelo Correa (Divulgação(.
MAIA, Ana Paula Maia. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013.
Texto de Rodrigo Hipólito
Quando eu era criança, aprendi a matar alguns bichos pra comer. Não era nada muito impressionante ou, ao menos, eu pensava que não. Quase sempre, se tratava de cortar o pescoço da galinha de um jeito que deixasse o sangue escorrer pra limpar a carne. Tinha, também, a marretada na cabeça do porco, pra matar o bicho rápido, que aprendi com um vizinho. Ele morava a duas ou três casas na descida do morro. Nós morávamos na última casinha da rua.
No dia em que vi matarem um porco pela primeira vez, dois homens discutiram qual era o melhor método. Um deles advogava pela faca certeira, que faria sangrar, mas mataria em questão se segundos. Eu já ouvira algo parecido, em um programa da TV Cultura e aquilo parecia fazer bastante sentido. Infelizmente, o homem da faca perdeu a discussão e o outro, mais imponente, explicou, para a molecada em volta, como se matava o bicho com um só golpe de marreta.
Ele precisou de umas quatro ou cinco marretadas pra concluir o serviço. Depois que a testa do porco estava afundada e ele havia parado de bufar, trouxeram o lança-chamas e o pequeno botijão de gás. Sapecaram a pele do cadáver, arrastaram e começaram a abri-lo sobre uma tábua grossa, instalada entre duas árvores.
Antes do meio-dia, já havia torresmo e fatias de carne divididas entre os homens e as crianças. Os mais velhos abriram suas latas de cerveja, enquanto e os mais novos discutiam e esperavam a próxima rodada de pedaços de carne mal temperada.
Toda imundície de trabalho que nenhum de nós quer fazer, eles fazem, e sobrevivem disso.
Fica por conta do leitor medir os fardos e contar as bestas. (MAIA, 2009, p. 7)
Lembrei-me desse dia, logo nas primeiras páginas do livro de Ana Paula Maia. “De gados e homens” se passa em um lugar qualquer, mas com características específicas. Essas características são capazes de criar diálogos com porções de terra e gente que são esquecidas.
Esquecidas por quem? Pelo poder público, pelo noticiário, pela TV, pela vida luminosa do Instagram, pelo debate político e opinativo, pelo currículo escolar, pela realidade de consumo dos centros e condomínios metropolitanos e por aí vai.
É bom não confundir essas porções de terra com a ideia de “Brasil profundo”, afinal, isso não existe. O que, talvez, faça com que essas e outras narrativas de Ana Paula Maia criem diálogos e despertem memórias sobre cenários com os quais o futuro não quer sonhar, seja o modo como ela retrata pessoas e lugares. Há crueza palpável nos seus textos, mas nada que seja fetichizado, estetizado ou exotizado.
Ana Paula Maia não parece querer fazer poesia com a desgraça e o desespero. Não há, em “De gados e homens”, o esforço para que o texto acaricie o ego de quem lê. Você não vai se sentir uma pessoa culta e mais instruída ao ler esse livro. Se esse é o tipo de relação que você tem com literatura, melhor procurar o realismo e o naturalismo de outros.
Como Karina Vicelli (2015) observa bem, existe realismo e naturalismo em Ana Paula Maia, mas não apenas isso. Também poderíamos falar de elementos de literatura policial, mas os crimes não serão investigados e não é pela polícia que esses acontecimentos da vida se resolvem.
Edgar Wilson é o personagem central das narrativas que compõem o livro. Esse personagem se repete nas histórias contadas pela autora. Caso você acompanhe os livros anteriores, ainda que não haja uma necessária continuidade, perceberá que Edgar Wilson se torna mais consistente.
Em “De gados e homens”, ele trabalha no matadouro do Seu Milo, o “Touro do Milo”. A sua função é de atordoador. Ele marreta a cabeça dos bois para que morram de hemorragia cerebral, antes de serem suspensos e abertos. A sua técnica é perfeita. Mas, não se trata apenas de um trabalho físico. Edgar Wilson estabelece uma conexão com os animais que mata. A troca de olhares com os animais é fundamental para que eles morram tranquilos. Quase uma hipnose.
Esse é um dos elementos que nos remetem ao fantástico. Não que seja algo explicado ou explícito. É só que, coisas estranhas acontecem de vez em quando. Coisas estranhas acontecem em todos os lugares. Não costumamos nos importar ou procurar explicações para além daquelas que já aceitamos. Há urgências na vida prática que nos impedem de correr atrás de causas com as quais é possível que não pudéssemos lidar.
Em “De gados e homens”, você vai encontrar assassinato, sangue e tripas, pessoas esfomeadas, animais enlouquecidos, exploração da pobreza, ar seco, poeira, sol que machuca, tempestade que arrasta. Aqueles capítulos, que poderiam ser contos, te apresentam um mundo que existe entre o humano e essa coisa que já começamos a nos tornar.
Referências
MAIA, Ana Paula Maia. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013.
___. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro:
Record, 2009.
VICELLI, Karina. Sangue e hambúrgueres: o novo realismo e o romance policial na obra De gados e homens, de Ana Paula Maia. e-scrita, Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.6, Número 1, janeiro-abril, 2015, pp. 1-13.
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