
Imagem de capa. “O Buraco”, Rodrigo Hipólito. Ilustração, 2021. Em tons de marrom, preto, laranja e verde escuro, prédio velho com luzes amarelas nas janelas do último andar à direta e céu tempestuoso à esquerda.
Texto de Rodrigo Hipólito
Conto “O Buraco”, disponível em e-book, e impresso.
No último mês do ano, consegui cumprir um dos objetivos que havia estabelecido lá, no começo de janeiro. Eu havia acertado comigo que experimentaria a publicação independente de um e-book pelo KDP (Kindle Direct Publishing). Tudo bem! Eu sei que não é nada muito complexo. O sistema se propagandeia como de uso simples e tudo mais.
No fim das contas, não foi tão simples finalizar o processo de publicação. O principal motivo foi a minha decisão de experimentar, junto do e-book, o sistema de publicação impressa em “capa comum” do KDP. Se a ideia era testar e aprender como usar a ferramenta, ainda que a compra de versões impressas saia caro para quem reside no Brasil, valeria a pena a brincadeira.
Em um final de semestre repleto de correções e com poucas horas para me dedicar a resolver problemas técnicos, o e-book, que já estava pronto, esperou quase um mês para poder ir a público, junto de sua possibilidade impressa. Ocorre que eu não encontrava o formato correto do PDF, o tamanho das sangrias, o formato da capa, as sangrias da capa, a quantidade mínima de páginas para a formação de uma lombada desta ou daquela espessura. Pouco adiantava seguir os modelos disponibilizados pelo KDP. Foi uma sequência repetitiva de editar arquivo, enviar arquivo, esperar horas de processamento e receber um aviso de “erro” sem maiores explicações.
Como sempre, tutoriais não adiantaram muito, pois são como receitas em programas de culinária: só funcionam na cozinha do vídeo. Foram necessários dias para encontrar os pequenos detalhes de configuração exigidos nas páginas de instruções do próprio KDP. Foi estressante? Sim. Mas, fiquei feliz com o resultado. Neste momento, “O Buraco” está disponível em e-book, “gratuitamente” no Kindle Unlimited, e impresso.
Era começo da manhã quando os dois chegaram. Fortes, saudáveis, limpinhos, barbas por fazer, brancos, o típico olhar de falsa confiança. Assustados. Toda a vez que apareciam moleques daquele tipo, era só esperar pela merda. Não deu outra. Ou melhor, acho que eu percebi a diferença, embora eu não soubesse ainda do que se tratava.
Não fui apenas eu quem sentiu a mudança brusca de temperatura. Várias das pessoas deitadas pelo chão moveram as cabeças, alguns retiraram os cobertores e outros olharam irritados para as janelas quebradas e depois para a entrada.
Naquela hora, quase todo mundo tava dormindo. Centenas de pessoas com a esperança de um sono sem sonhos. Dez andares de silêncio entrecortado por gemidos, tosse, panos revirados e resmungos. Os dois novatos se sentaram num canto e começaram a mexer nas mochilas. Quando algum maluco do terceiro andar acordasse, ia dar briga. Gente nova que ficava muito à vontade era irritante. E tinha alguma coisa errada com aqueles dois. As caras vermelhas igual tomate e os movimentos bruscos de quem escondia alguma coisa. Vai que eles resolviam botar fogo em alguém? Como é que não fica tenso com isso? Só que, o sono falou mais forte e o povo incomodado voltou a dormir. Eu não. (trecho inicial do conto)
Essa foi a primeira narrativa que eu finalizei em 2021. Eu escrevi a história em resposta à uma chamada de textos com o tema “investigação sobrenatural”. Mas, eu não sou um grande fã de livros policiais. Na maioria das vezes, a palavra investigação leva para narrativas que, ainda que não sejam histórias policiais, utilizam-se da mesma estrutura, do mesmo roteiro. Talvez eu não tenha escapado tanto daquele esqueleto de romances policiais, mas, ao menos um pouco eu sei que consegui.
“O Buraco” é narrado por um personagem sem nome, que vive seus últimos dias em um antigo prédio residencial ocupado por uma variedade de pessoas excluídas da sociedade. A história se passa em Vila Velha, no Espírito Santo, mas em um contexto diverso da realidade atual. É provável que seja uma alternativa de futuro próximo. Embora isso não seja tão relevante para compreender o encadeamento dos fatos narrados, eu preferi inserir elementos próprios de cenários de ficção científica. Esses elementos relacionam-se com situações fantásticas, mais próximas do centro da trama.
Não pensei “O Buraco” para que necessitasse de alguma continuação ou complemento em outros contos. Ainda assim, aquelas personagens me dão tamanho gosto e ficaram marcadas de maneira tão nítida em minha percepção de escritor, que espero poder presenteá-las com uma sobrevida em outros cenários, com outros desafios.
A escrita de “O Buraco” me trouxe mais alguns pontos positivos, como o exercício de algo que compreendi nos últimas dois anos: eu tenho muito mais facilidade para concluir uma história quando pincelo fantasia e ficção científica sobre uma fundação de horror. Isso não é algo incomum. Mas, como leitor de ficção científica, durante muito tempo, tentei construir minhas histórias no sentido inverso: pincelava elementos de fantasia e horror sobre uma fundação de ficção científica. De algum modo, isso travava a trama e me fazia girar em torno da base, sem encontrar saída. Há exceções. “Segue o baile” não se constrói em nenhum desses dois caminhos e funciona muito bem sem evidentes elementos de horror.
“O Buraco” foi escrito com rapidez. O fio da história surgiu em poucas horas. Os recortes, acréscimos e desenvolvimento pontual das personagens ocorreu durante os processos de edição. Logo na primeira redação, percebi que não era o tipo de conto que atenderia aos interesses da chamada de trabalhos que o desencadeou. Não conseguiria finalizar a história e contar o que queria sobre as personagens no limite exigido de palavras. A coisa toda quase virou uma noveleta.
Já percebi que me dou bem com a extensão de noveletas e novelas. Contos ainda são um desafio com o qual preciso me sentir mais à vontade. Ainda que eu fique muito orgulhoso do resultado de um conto curto como “O Coice”, não posso negar o desejo de fazer brotar palavras que, talvez, não devam estar ali. A edição salva escritores de seus desejos mais burros. Quando comecei a pensar que poderia criar mais personagens dentro daquele prédio de “O Buraco”, mesmo depois que a narrativa estava concluída, decidi jogar tudo na gaveta.
O ano seguiu. O mês de outubro seria a época típica para lançar um conto de horror. Mas, a publicação de “Não pague pela boa morte” já me daria essa felicidade. Então, teria que deixar para novembro. O problema era que esse é o pior mês do meu ano. Faz tempo que novembro não me deixa respirar. Quando comentei sobre o lançamento desse conto, Ana Rüsche me disse que histórias de Natal costumam ser sombrias. Ainda que “O Buraco” não tenha sido pensado como uma história natalina, vou aceitar esse ideia de que a mensagem ali contida ainda seja de serventia para o clima de final de ano.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.