[ensaio] Sobre a massa através da argila/cerâmica. Parte I

 

Brisa Noronha. Minúcias. Porcelana. 2015

Brisa Noronha, Minúcias. Porcelana, Instalação. Individual Guardar uma coisa. Galeria Murilo Castro, Belo Horizonte, MG. 40x200x200cm 2015. Diversas peças de cerâmica em tons de cinza e bege claro, de formatos variados, organizadas uma ao lado da outra, sobre chão de cimento. Fonte: artesoul.com.br

Texto de Rodrigo Hipólito

Essas reflexões tiveram início após contato com a produção do ateliê de cerâmica do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, especialmente nas obras de Juliana Roque e Clecina Barata, na exposição DUO. Esse contato ocorreu no começo de 2011. Infelizmente, não encontrei nenhuma fotografia dessa exposição. Mais de dez anos se passaram sem que eu relesse o texto que segue ou o complementasse. Sim, complementar.

Quando abri a pasta na qual esse texto estava escondido, encontrei anotações não utilizadas e a indicação de “extrato” antes do título. Eu costumava fazer isso com diversos textos: não os considerava concluídos, mas pretendia dar-lhes um destino ou mesmo publicá-los de modo incompleto. Por isso, indicava condições as mais variadas e confusas para a saber se aquele material era o início de uma pesquisa, um futuro, artigo, ensaio, crítica ou qualquer outra coisa.

Por conta dessa estranha divisão, que não tenho condições de compreender, mais de dez anos depois, vou dividir esse texto em duas partes. Na segunda parte, editarei a página de anotações. Talvez, aquelas anotações pudessem ser inseridas no correr do texto, como complementos e aprofundamentos de algumas das reflexões a seguir. Mas, se essa fosse a intenção, o eu descuidado do passado deveria ter dado mais indicações.

Como um dos poucos textos que escrevi sobre trabalhos de cerâmica, não quis deixá-lo parado. Sua releitura despertou algumas curiosidades que podem ser similares às que me levaram a rascunhá-lo. Ainda que a escrita filosófica com exageros poéticos seja um saco, não nego que continuo a gostar desse texto. Como é possível perceber, eu estava encantando por alguns livros de Gaston Bachelard.

 

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Lígia Borba. Presentes e Ausentes. Cerâmica em alta temperatura, massas e vidrados variado. 2018.

Lígia Borba, Presentes e Ausentes. Cerâmica em alta temperatura, massas e vidrados variado. 50 esculturas com dimensões aproximadas de 14x22x16 cm. 2018. Foto Gilson Camargo. Seis rostos feitos de cerâmica, vistos de perfil, afixados em parede, cada um de uma cor, com destaque para o rosto central, em tom de vinho, com superfície esmaltada. Fonte: artesoul.com.br

A massa, em sua verdade originária, surge tomada por um choro clamoroso difícil de ser sanado. É uma reclamação pedindo por forma — a massa exige ser formada como uma criança faminta por um mimo. Nesse sentido, a tarefa de encobrir ou ignorar o choro da massa exige um esforço maior que o trabalho efetivo e, para uma consciência sensível à materialidade mutante, aproxima-se do impossível.

Mas, talvez, a metáfora do infante não nos permita realizar a natureza das necessidades da massa, pois, são verdadeiros desejos, pulsões íntimas, indistinguíveis, ao se realizar o material como corporeidade inanimada e, ainda assim, pensante. Nessa realidade onírica, a aceitação de uma materialidade permite que haja princípios vitais. Assim, a promiscuidade da massa é uma entrega para a geração e essa entrega aparece como um desejo inegável.

É através de tal exigência de entrega que reconhecemos uma coisa como massa, por estar propícia para uma confluência frutificadora de formas. Entenda-se, então, que a massa não se dispõe, simplesmente, às vontades modeladoras que lhe sejam ignoradas. A verdade queda para o contrário: a massa realiza-se (aparece) no processo através do qual ela adquiri forma. Em sua existência, o material moldável está no caminho inevitavelmente percorrido.

O material terá uma forma e, somente então, será possível um passado da massa. A existência da massa, em sua verdade originária, é dependente, primeiramente, de uma atividade que realiza a coisa como “coisa formada”. Não haveria uma massa “originária”, no sentido de anterior ao (desgarrada do) processo de “formação”. A massa surge na confluência do “poder formador” com as condições de dar forma (em que, paradoxalmente, inclui-se a aceitação do pedido desejoso, o pedido por adquirir forma, que surge no momento dessa confluência).

Tal localização do aparecimento da massa pode voltar para a neutralidade sem grande esforço, exatamente por ser, talvez, exageradamente específica, ainda assim, serve para fins de reconhecimento da existência da coisa num campo generalizado. E isso nos permite pensar o trabalho com a massa, no qual agarramos o exemplo da argila trabalhada para a cerâmica. Certamente, um estudo que partisse, simultaneamente, da generalização da “massa”, da primitividade da argila e da multiplicidade de tratamento resultante da cerâmica, necessitaria de um espaço muito mais extenso. Contentemo-nos, então, com o que se segue.

Três pontos são importantes para a construção de imagens sensíveis a respeito do trabalho com a argila, especificamente na geração da cerâmica:

(i) De onde vem a argila: ela é fruto da densidade, secura e dureza da terra, elemento correspondente ao ideal de resistência, no qual formula-se, com maior facilidade, uma imaginação própria para uma “psicologia do contra”. A terra, por si, já pode ser apresentada como um “de onde vêm” enquadrável em uma variedade de planos difícil de mensurar, pois é elemento harmonizador afirmativo. A terra é permissiva para com as relações elementares sem anular-se nessas relações; é a solidez intransponível da base pacífica.

(ii) A confluência com a água abre a resistência para a fluidez própria do “sonho livre”, do devaneio fácil. A água é uma artimanha para o sonhador (de imagem e de forma) insistente. Esse contado é o início de uma dissolução implacável — característica que jamais abandonará a massa argilosa, pois, como toda a massa, existirá no processo da dissolução de seu ser. Em uma purificação expansiva, a apresentação da água indica o ímpeto suicida próprio da massa, que quer ver-se com um passado somente possível quando a forma recém-nascida lhe apaga a presentificação.

(iii) Já o encontro com o fogo é transfigurador. O fogo é uma arma enérgica e ativa, que doma quando bem domada, paralisa e realiza os devaneios da “imaginação criadora”.

Você está lá, passivamente, como visitante ocioso, na atmosfera sufocante do forno de porcelana; então a angústia do calor apodera-se de você. Você recua. Não quer mais ver. Tem medo das faíscas. Julga-se no inferno. (BACHELARD, 2001, p. 74).

O fogo, o calor, o agente transformador na argila, preza por uma transmutação que garante a integridade da massa — a massa, que sobreviverá no passado, como um espírito satisfeito por ter ido — exemplifica o complexo[1] de Empédocles.[2] O ceramista entra no forno com a massa que saiu formada de suas mãos.

Participar do calor não mais como estado, mas do calor como crescimento, ajudar, com arrebatamento, o seu devir de crescimento, a sua qualidade ativa, a sua qualificante, eis o que imuniza contra os próprios excessos do fogo. O operário não é mais o servidor do fogo, é o seu senhor. (Idem).

Difícil pôr um fim tão brusco ao raciocínio. O correto seria pensar a infinitude da massa em uma memória da forma, em uma onipresença espectral do originário obscurecido em sua transmutação para a permanência.

[A peça feita] é uma caricatura do sonho e da habilidade. É uma convergência de forças naturais. O que nasceu da água acaba-se no fogo. A terra, a água e o fogo vêm cooperar para produzir um objeto usual. Paralelamente, grandes sonhos elementares vêm unir-se numa alma simples e dar-lhe uma grandeza de demiurgo. (Idem, p. 75)

O processo de trabalho poético com a argila/cerâmica conflui as potências simbólicas da terra, da água e do fogo. Com a compreensão desses três pontos fundamentais para a construção de imagens sensíveis no trabalho da massa, podemos passar para reflexões sobre a “imaginação criadora”, os atritos entre a curva e a reta, o duro e o mole, o permanente e o efêmero. Deixo tais reflexões para a segunda parte deste texto.

 

Referências

BACHELARD, Gastón. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

___. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

COSTA, Anna Luísa Veliago. A cerâmica na arte contemporânea. Arte Soul, 8 dez. 2020.

PUHL, Paula. Um estudo do discurso psicanalítico no filme Fahrenheit 451: a destruição do conhecimento. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 2, n. 11, p. 1-12, julho/dezembro 2004.

[1] A respeito do Complexo de Empédocles ver Bachelard, A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[2] “O filósofo grego Empédocles, um pré-socrático, defendia a unidade entre a vida e a morte e refletia sobre o destino do homem e sobre a unidade dos contrários (vida e morte), acreditando na morte na e pela beleza. Por isso, a morte de Empédocles é o símbolo da adesão do homem ao seu destino poético de transfiguração no cosmos. A morte de um pensador e a sua tarefa na Filosofia foi a de depurar o fogo vulgar do mundo. A morte como retorno à plenitude do ser, fusão com a inteligência cósmica, ápice de um mundo.” (PUHL, 2004, p. 9).

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