[ensaio] Sobre a massa através da argila/cerâmica. Parte II

Lei Xue, Drinking Tea, 2014. Hand painted porcelain

Lei Xue, “Drinking Tea”, 2014. Porcelana pintada a mão. Quatro peças de porcelana branca, imitações de latinhas de refrigerante amassadas, pintadas com motivos tradicionais chineses em azul.

 

Texto de Rodrigo Hipólito

Nessa segunda parte do ensaio, resgato algumas das anotações que encontrei na pasta esquecida, lá em 2011. Essas anotações foram feitas durante a leitura de “A terra e os devaneios da vontade”, de Gaston Bachelard. Tenho uma vaga lembrança dessa época; de como era estar fascinado pela metapoética dos elementos. Acredito que, caso eu relesse esses livros, hoje, o encantamento retornaria. Não pretendo fazê-lo.

Um dos muitos motivos pelos quais “A psicanálise do fogo”, “A água e os sonhos”, “A terra e os devaneios da vontade”, “A terra e os devaneios do repouso”, “O ar e os sonhos” e “A poética do espaço” causaram um forte efeito sobre mim, era a minha aversão às artes práticas. Eu escrevo “era”, mas, é possível que isso não tenha mudado tanto. Hoje, felizmente, sou mais resistente e maleável.

Na época em que redigi a primeira parte deste ensaio, eu tinha sérias dificuldades em permanecer poucos minutos em uma ateliê coletivo de feitura de materiais, exercício de pintura, escultura, cerâmica, etc. Como eu não era capaz de conciliar a prática com toda a sorte de materiais e ferramentas (tintas, argila, cimento, metal, pinceis, cinzeis, martelos, pás, tecido, água) com minha atividade reflexiva, instaurava-se uma crise de pânico.

A metapoética dos elementos me ajudou a superar uma fase da graduação em Artes Plásticas e, sem isso, eu teria permanecido ignorante quanto ao valor do trabalho com a materialidade. Ainda que continuasse a ser cabível o estudo distanciado desses processos de criação, não era mais necessário ser inflexível. Manter distância não significa apartar-se por completo. As práticas da crítica e da teoria das artes exigem essa maleabilidade.

Noutro sentido, a busca por romper essa distância e fazer com que a prática reflexiva seja amalgamada ao trabalho com a materialidade é um esforço infrutífero e meio ofensivo. Há diferenças substanciais entre a absorção de processos poéticos nas práticas crítica e teórica e acreditar que elas podem (e devem?) tomar o lugar do exercício físico com a transformação da matéria.

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Fernando Casasempere, Out of Sync, Atacama Desert, 2015

Fernando Casasempere, Out of Sync, Atacama Desert, 2015. Paisagem desértica, com ruínas de uma fortaleza ao fundo. Em primeiro plano, ruínas de uma muralha com a parte central destruída. Através da falha na muralha, aparece um campo de milhares de flores brancas feitas de cerâmica, sustentadas por caules também feitos de cerâmica.

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Em outras palavras, para nós, a imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diferentes e seria preciso uma palavra especial para designar a “imagem imaginada” (a afirmação do “caráter psiquicamente fundamental da imaginação criadora”) (BACHELARD, 2001, p. 2-3.).

 

À imaginação criadora, cabe a “função do irreal”; em contraponto, a “função do real” concerne à imaginação reprodutora (e, em certo nível, à percepção). A “função do real” está ligada, e é positivada, assim como positiva, “a presença do real, com toda a sua força, toda a sua matéria terrestre.” Podemos ligar, diretamente, a imaginação reprodutora com a terra, com sua solidez inabalável, impedimento para o devaneio. De modo similar, podemos ligar a imaginação criadora a todo o movimento externo à terra (água, fogo e ar).

Essa metáfora dispõe, de um lado, a terra, como um ideal apolíneo, e, do outro todo, o movimento dionisíaco. Do atrito entre essas duas partes, como na metáfora de Nietzsche, é que encontramos a força de vontade, ou a vontade de espírito, que é a vontade criadora; encontramos o próprio movimento criador, ou, o próprio Distúrbio.[1]

A dialética do duro e do mole coloca nossa relação imagética de maneira diversa da psicanalítica, embora utilize a psicanálise como contraponto:

Noutras palavras, a psicanálise se contenta em definir as imagens por seu simbolismo. Mal é detectada uma imagem pulsional, mal é descoberta uma lembrança traumatizante, a psicanálise coloca o problema da interpretação “social”. [Já a dialética proposta por Bachelard, leva em consideração a relação de resistência mútua entre consciência e materialidade.] “A imaginação da resistência, a substancialidade do contra”  (Idem, p. 17).

[…]

Grosso modo, e para preparar dialéticas mais sutis, pode-se dizer que a agressividade que o duro excita é a uma agressividade reta, ao passo que a hostilidade surda do mole, é uma agressividade curva (Idem, p. 22)

 

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A palavra “contra” não tem virtude dinâmica alguma: a imaginação dinâmica não a anima, não a diferencia. Mas se temos uma faca na mão, entendemos imediatamente a “provocação” das coisas”.

[…]

Para compreender essa provocação direta de um objeto do “mundo resistente”, cumpriria definir uma instância material nova, uma espécie de superid contra o qual queremos exercer nossas forças, não só na exuberância de nosso extravasamento de energia, mas também no próprio exercício de vontade incisiva, da nossa vontade acumulada sobre o gume de uma ferramenta.

[…]

O ardor combativo, o neikos, é polivalente. Mas não devemos esquecer seu valor primordial, a própria raiz da forma desperta, ao mesmo tempo em nós e fora de nós. § Para a imaginação dinâmica há, com toda a existência, além da coisa, a “supercoisa”, no mesmo estilo em que o ego é dominado pelo superego (Idem, p. 32).

 

Um pedaço de madeira deixa a mão indiferente, quase não é uma coisa. Mas, quando a mão está em posse de uma faca, diverte-se no trabalho do entalhe; a madeira deixa o estado de “quase coisa” e transfigura-se em algo que é mais do que ela mesma, “é uma supercoisa, assume nela toda a força da provocação do mundo resistente, recebe naturalmente todas as metáforas da agressão”.

Uma enciclopédica dos valores psicanalíticos do trabalho também deveria examinar os valores da paciência. Ao lado da forma desbastada viria o estudo da forma polida. Um novo aspecto temporal deveria então ser incorporado ao objeto trabalhado. O polimento é uma estranha transação entre o sujeito e o objeto (Idem, p. 40).

 

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Ver o livro “As Minas de Falun”, de E. T. H. Hoffmann, citado e analisado no capítulo IX. Dentro desta questão (sobre o metalismo e o mineralismo), buscar confluência com a frase:

Os olhos do marinheiro são agudos, porque são descontraídos e enxergam longe, os olhos do mineiro são penetrantes, porque são tensos e enxergam bem (p. 97 de “As Minas de Falun”, em “A Terra e os Devaneios da Vontade”).[2]

 

O direcionamento seria dado para a diferenciação de similaridade do olhar construtivo/analítico/imagético do metalista e do mineiro com relação aos demais olhares (isso certamente necessitará de uma redução; tal escolha deve ser feita com o impulso direcionador da obra experienciada, caso resolva utilizar tal apontamento para uma crônica/crítica). (04/04/2011).

***

Importante: eu precisei cursar a disciplina de Cerâmica I para me formar. Fiz todas as disciplinas teóricas disponíveis como optativas. Mas, ainda faltava carga horária. Foi um suplício. Isso também pode ter sido um motivo para abandonar essas reflexões.

Na data indicada, engavetei um texto que nunca existiu.

 

Referências

BACHELARD, Gastón. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

___. A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___. A poética do espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

___. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001a.

___. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001b.

___. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001c.

COSTA, Anna Luísa Veliago. A cerâmica na arte contemporânea. Arte Soul, 8 dez. 2020.

PUHL, Paula. Um estudo do discurso psicanalítico no filme Fahrenheit 451: a destruição do conhecimentoIntexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 2, n. 11, p. 1-12, julho/dezembro 2004.

 

[1] É nítido que, enquanto eu separava esses trechos e anotava poucos comentários, pensava na experiência com a argila, em um ateliê de cerâmica. O distúrbio, como ato criador, surge não na manipulação da argila, mas no direcionamento de certa imaginação. A prática com a matéria, a sua manipulação, ensinam o corpo a reconhecer a terra e participar de processos que apenas podem acontecer quando consideram uma dinâmica entre o apolíneo e o dionisíaco. A promiscuidade da terra é fundamental para que a criação ocorra. Aos mão modelam a argila com a consciência de que participam de uma orgia com água, fogo e ar.

[2] Na época, não consegui encontrar nenhum livro de E. T. A. Hoffmann que possuísse esse conto. Teria sido esse o principal motivo para abandonar a escrita do ensaio? Jamais saberei. É estranho que eu me lembre, com razoável nitidez, de procurar por esse conto e não o encontrar. Hoje, onze anos depois, foi simples encontrar um e-book com “As Minas de Falun”. Eu poderia ter lido o conto antes de fazer a publicação desta segunda parte do ensaio. Mas, não sei o quero considerar este texto como algo além do exercício de abrir e limpar gavetas. Há grandes chances de que eu leia esse conto, ainda que não com o interesse de encaixar qualquer percepção no raciocínio que deveria existir nesse ponto. Aliás, duvido que eu encontre essa frase, ao menos com uma tradução que não se afaste da citação contida no livro do Bachelard.

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