
Imagem de capa. Pintura em óleo sobre tela, de Zdzisław Beksiński, de 1975. Sobre um chão coberto de cinzas, restos e ossos queimados e insetos mortos, com uma cidade em chamas ao fundo, caminha, em primeiro plano, uma criatura quadrúpede, meio humana, com tronco preto e sem contornos definidos, membros esqueléticos e cabeça oval, envolta em bandagem branca.
Transcrição do podcast NPT S05E12: Fantástico, surreal e monstruoso em Zdzislaw Beksinski
Texto de Rodrigo Hipólito
Apresentação
E aí, gente perdida? Tá começando mais um Não Pod Tocar. Eu sou Alana de Oliveira e este é o décimo segundo episódio da nossa quinta temporada. Se você chegou aqui agora, o Não Pod Tocar é um podcast sobre teoria, história, crítica, prática de arte e temas afins. No nosso feed, você encontra, além dos episódios de temporada, com conversas, ensaios e experimentações, o Pataquadas, no qual eu repercuto as principais notícias do mundinho da arte, com colunas abertas de Dennis Almeida e Camilla Saloto, e o Não Pod Chorar, que são os episódios nos quais nós contamos algumas desventuras da vida e pensamos em modos criativos de lidar com elas.
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Lá, em notamanuscrita.com, você encontra a postagem original do episódio, com a descrição completa, com links para todas essas formas de nos ouvir, de tudo o que nós comentarmos no episódio e para os nossos perfis pessoais e oficiais. Quem comanda as redes do Não Pod Tocar é o Chewie, o primeiro e único cão podcaster. Tanto no Twitter quanto no Instagram, você encontra Chewie como @naopodtocar, sempre com o D, de pod, no mudo. Vai lá ganhar uns lambeijos do Chi Chi.
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Antes de a gente partir para o conteúdo do episódio de hoje, eu quero deixar algumas recomendações e divulgações.
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Todos os links estão na descrição do episódio.
Agora chega de recados iniciais! Vamos para o episódio de hoje, no qual…
Primeira parte
No episódio passado, a gente falou sobre obras que causam pesadelos. Bom, os pesadelos são só mais uma categoria de sonhos. Não deixam de ser sonhos. Tem quem só considere pesadelos aqueles sonhos que te deixam com muito medo, ao ponto de te fazerem acordar com um grito no meio da noite.
Outras pessoas podem considerar como pesadelos aqueles sonhos com perseguições e brigas, como se você sonhasse que está em um filme de ação.
Há, também, quem inclua, na categoria de pesadelos, experiências que são irritantes, constrangedoras ou engraçadas. Uma discussão que te dá nos nervos, uma cena revoltante, o retorno para os tempos de escola, para a casa da família, para a dependência infantil, o julgamento da nudez pública.
O ponto é que, o conteúdo dos pesadelos pode variar tanto, que não compensa defini-los por suas formas. Pesadelos são sonhos de horror, mas sem necessidade de raízes nas convenções do gênero no cinema e na literatura.
Os seus sonhos mais assustadores, repulsivos, enervantes e perturbadores, vão depender muito do seu repertório estético e da sua condição emocional.
Certo, tem coisas que são mais comuns em pesadelos. A razão pra isso, é que nós dividimos as mesmas experiências culturais.
A gente tá aqui produzindo arte há milhares de anos e se tem uma coisa que artista faz é pesquisar por formas para representar coisas difíceis de explicar. Mesmo quando você acha que não faz parte do meio da arte, pode acreditar, essa longa tradição de representações chega até você, entra na sua cabeça e constrói cidades inteiras na sua mente.
Você conversa com pessoas, você assiste televisão, filmes, aulas; você ouve música, desenvolve gostos pra músicas, pra roupas, pra comida; você passa a identificar o que te agrada e te desagrada por padrões estéticos, queira ou não. Isso é parte da comunicação necessária e da necessidade de expressão na vida em comunidade.
A sua percepção da realidade é fortemente influenciada pelos padrões estéticos que te atraem, irritam, amedrontam, encantam e por aí vai. E esses padrões não surgiram do nada. Eles foram construídos através dos séculos.
É óbvio que há diferenças culturais, principalmente quando você dá grandes saltos geográficos. Mas, a lógica permanece a mesma. As heranças estéticas acumulam-se como uma montanha de fantasmas. Às vezes, alguns se destacam, depois outros. Esse reviver de fantasmas é algo que dita o ritmo das histórias da arte.
Até dá pra traçar genealogias entre obras de arte e perceber o caminho que esse ou aquele tipo de representação trilhou nessas décadas e séculos. Mas, não faça isso na tentativa de encontrar um original, uma representação primeira, a fonte mágica do arquétipo… isso é besteira. Isso só vai te levar para o caminho infantil de acreditar na pureza e na verdade única.
Agora, se você se desvia desse risco, é muito interessante conhecer as influências, ou os fantasmas, revividos nos padrões estéticos que formam o seu vocabulário. O presente sempre fica mais interessante quando consegue conversar com o passado, seja de modo leve ou com muita tensão.
Essa, aliás, uma das características de artistas que desenvolvem estilos marcantes. Não se trata de desenvolver um estilo único, mas de saber conversar com fantasmas. Artistas que sabem conversar com fantasmas são capazes de representar coisas que não têm nome e de abrir as portas da interpretação.
Esse é o caso de Zdzisław Beksiński.
Talvez, esse nome não te diga muita coisa. Mas, eu garanto que, se você passa algum tempo na internet, você já se deparou com alguma imagem de obra dele. Ainda mais quando a gente chega em outubro, o mês do horror.
O Zdzisław Beksiński nasceu em 24 de fevereiro de 1929, em Sanok, na Segunda República Polonesa. Ele estudou arquitetura na Politécnica de Cracóvia e se formou em 1952. Mas, não se deu bem como arquiteto. Ao invés de se preocupar em finalizar as edificações, em seus primeiros anos depois de formado, o Beksiński usava os materiais de construção pra fazer esculturas.
O caminho como artista era meio inevitável e ele já sabia disso. Já no final dos anos 1950, ele já se entendia como artista plástico, realizava pinturas, esculturas e fotografias. No começo dos anos 1960 ele se arriscou a escrever alguns contos, mas acho que todos tinham ficado muito ruins e engavetou.
É mais ou menos por volta de 1964, quando ele realiza a sua primeira exposição individual bem-sucedida, que começa a fase da sua produção que vai ficar mais conhecida. O seu chamado “período fantástico” vai durar até metade dos anos 1980.
São as suas pinturas desse período que, comumente, são reproduzidas em sites de estética sombria ou em listas de obras mais perturbadoras.
Dá pra dizer que essa é, sim, a sua fase mais interessante como artista. Depois disso, a vida do Beksiński passou por uma série de complicações e tragédias que pouca relação tinham com o modo como ele pensava os seus trabalhos.
Em 1998, sua esposa faleceu. Um ano depois, na véspera de natal, seu filho, o radialista e jornalista Tomasz Beksiński, cometeu suicídio por overdose.
Em fevereiro de 2005, Beksiński foi encontrado morto. Ele foi esfaqueado 17 vezes pelo filho adolescente do zelador do prédio, pra quem tinha negado dinheiro emprestado.
O fim trágico do artista recobriu sua obra de mais camadas sombrias e isso também tem relação com o sucesso que essas imagens fazem até hoje pela internet. Mas, antes disso, elas já eram bem conhecidas na Europa.
Beksiński foi um dos principais pintores poloneses da segunda metade do século XX. Apesar de suas pinturas ecoarem temáticas soturnas, sua obra nunca foi obscura. Além de ser reconhecido no meio artístico, algumas dessas imagens eram escolhidas como capas de discos de bandas de metal e inspiraram produções audiovisuais de gente bem popular, como o Guilhermo del Toro.
Mas, afinal, que tipos de pinturas são essas que causam tanta comoção até hoje. Vamos conhecer uma delas:
***
Essa é uma pintura de meados de 1970. Ela não tem título, assim como a maioria das telas de Beksinski. Acontece que ele não acreditava que as obras tivessem um significado fechado. Mas, a gente fala disso daqui a pouco.
Nessa pintura a óleo, no centro da tela, que é verticalmente orientada, há uma cabeça de uma criatura antropomórfica. Eu vou chamar de cabeça, porque, aos poucos, a gente percebe esse formato. Essa cabeça ocupa a maior parte do espaço.
O fundo é escuro, com um gradiente de preto na parte superior para um vermelho muito escuro na parte inferior. É um vermelho de sangue coagulado.
Na parte superior da pintura, o fundo não é apenas abstratamente preto; dá pra notar que é céu preto com manchas brancas de estrelas e uma linha fina da lua na fase do quarto minguante. O que dificulta a identificação da cabeça de imediato, são os elementos que a compõem. Não há um rosto com olhos, nariz ou pele. Essa cabeça pode ser dividida em três partes, organizadas verticalmente uma sobre a outra.
A parte superior, ocupa metade da altura total da cabeça, é um corpus cinza-escuro, cujo topo (a parte mais clara da cabeça, possivelmente iluminada pela lua) parece mais ou menos lisa e uniforme. Talvez seja um cérebro triturado e meio apodrecido, conservado de um jeito que tenta lembrar sua forma original, mas falha.
No centro da parte superior da cabeça há um buraco escancarado olhando para a escuridão, no meio do qual há um círculo branco, comparável ao tamanho da lua. Toda a superfície ao redor do buraco, independentemente de ser lisa ou recortada, é coberta por um padrão de linhas finas vermelhas, pretas e brancas, entrelaçadas entre si e lembrando alguns rios com confluentes ou vasos sanguíneos.
As partes média e inferior dessa cabeça são repletas de fissuras e cavidades escuras, sendo a maior à direita, na parte inferior do topo da cabeça. O centro da pintura é tomado por círculos esbranquiçados, que são as pontas de fios vermelhos grossos, como se dezenas de vasos sanguíneos do tamanho de cobras saíssem do meio da cabeça e apontassem em nossa direção.
A parte inferior da cabeça é a menor em tamanho; é um corpus em forma de losango, constituindo o queixo e os lábios. O lábio superior é escuro, quase preto; o inferior é castanho claro. A boca está ligeiramente aberta; os dentes anteriores inferiores são vistos mais claramente do que os superiores. O queixo é vermelho escuro, com laços de fios vermelhos pendurados
No queixo há a inscrição “SLOWA” ( que significa “palavras”). As letras dessa inscrição parecem não ter sido escritas, mas cortadas ou estampadas em uma superfície dura (o que é comprovado por um sombreamento distinto nas três primeiras letras).
Parte dessa descrição é uma tradição direta do que consta no artigo “Três pinturas de Zdzisław Beksiński: tornando a arte possível “Depois de Auschwitz””, de Natalia P. Koptseva e Ksenia V. Reznikova, publicado em 2015.
Apesar das autoras tentarem trazer análises e interpretar os significados dessa pintura através de analogias, isso não é necessário para que a imagem seja impactante. Procurar esses significados também não seria um problema.
O próprio artista já tinha afirmado que não fazia suas pinturas pensando em uma narrativa ou sentido específico, mas inspirado por longas seções de música erudita. Ele teve sua fase de pinturas abstratas e, em alguma medida, isso permanece nas suas obras figurativas.
Tem muita coisa incômoda nessa imagem: a inevitável relação entre os detalhes da pintura e a composição dos tecidos humanos, a ausência de elementos que a gente considera fundamental para uma forma ser considerada antropomórfica, a percepção de que essa cabeça está solta em um espaço escuro e é bem menos humana do que a relação com os tecidos dava a entender de início. Você pode começar a pensar em planetas e entidades intergalácticas ou sobrenaturais, mas a boca ensanguentada e a inscrição na parte inferior te arrasta de novo para a escala humana. Quanto mais você dedica atenção à ela, mais simples e mais desagradável ela se torna.
O que a gente tem aqui é uma espécie de monstro surrealista.
Falar sobre monstruosidade e surrealismo talvez seja um dos caminhos mais seguros para encontrar e compreender as referências do Beksiński.
Se você quiser encontrar artistas que faziam coisas similares ao que ele trabalha em sua fase fantástica, nem precisa se afastar demais no tempo e no espaço. O Bronislaw Linke, que também era polonês, tinha pinturas que usavam os mesmo tons opacos, ocres e escuros, em contraste com partes esbranquiçadas, para construir figuras antropomórficas, absurdas e soturnas.
Se você resolver explorar a história da arte polonesa e for um pouco mais longe no tempo, vai cair em imagens do Artur Grottger, que se destacou como gravurista, na primeira metade do século XIX. As pelas do Artur Grottger eram feitas para impressão e, logo circulavam em larga escala (larga escala pra época, é óbvio).
Na virada para o século XX, você encontra requinte e estranheza no simbolismo art noveau de Edward Okuń e nas paisagens sublimes e aterradoras de Ferdynand Ruszczyc.
Agora, se você quer um conjunto de pinturas bem mais famosas e que provavelmente inspiraram não apenas o Beksiński, mas uma infinidade de representações de paisagens e personagens assustadoras, dá uma procurada nas pinturas do surrealismo sombrio de Max Ernst.
Max Ernst foi uma das grandes figuras do movimento surrealista e do dadaísmo. Ele explorou um semúmero de possibilidades e formas durante a sua carreira. No caso dessas pinturas, a gente encontra paisagens que lembram formas arquitetônicas, torres e árvores. Mas, todas elas parecem ter sido cobertas por mofo, limo, trepadeiras apodrecidas, ou serem compostas por metal enferrujado e corroído por décadas de chuvas ácidas.
No meio dessas cidades, derretidas e reformuladas como fungos metálicos, tudo parece deserto de humanidade. Ainda assim, a própria existência da imagem nos leva a crer que há sobreviventes naquela realidade. Deve haver um ser humano suportando uma solidão que só é possível em sonhos, ou pesadelos.
Essa ideia de que alguém sobrevive em um lugar deserto, assustador e impróprio para seres humanos viverem, em quase completa solidão, vagando pelo resto da sua vida, faz pensar em outro elemento que, talvez, seja fundamental para entender o sucesso das pinturas de Beksiński: o pós-apocalipse.
Segunda parte
Tem alguns elementos de muitas das pinturas da fase fantástica de Beksiński que fazem a gente pensar em pós-apocalipse.
Primeiro, é bom considerar que o artista produz essas imagens em uma época em que imaginar o pós-apocalipse era algo comum e, pra muita gente, quase inevitável. A guerra fria já tinha passado por crises que deixavam evidentes a possibilidade de um conflito atômico final.
E quando eu digo que tinha “passado”, não significa que essas crises tenham sido superadas. A ameaça nunca deixou de rondar o debate político e a percepção popular. O conflito nuclear e o que seria da humanidade depois disso eram temas frequentes no cinema, na literatura, na televisão e as artes visuais não ficavam de fora.
O que seria desse futuro variava muito. Mas, algumas coisas se repetiam.
Os cenários desérticos, as construções em ruínas, as pessoas vivendo em bunkers, o inferno nuclear, o céu tempestuoso, a escuridão constante, a solidão dos últimos sobreviventes, a selvageria de um mundo sem normas, o tipo de criaturas que nós nos tornaremos nesse mundo, tudo isso e muitos outros elementos compunham as perspectivas de mundos pós-apocalípticos.
Se você pensa na destruição da civilização como nós a conhecemos, não seria estranho imaginar algum tipo de, entre aspas, “retorno” históricos. Isso é típico do imaginário colonizador, que acredita que há uma evolução, um progresso, nos adventos tecnológicos, na extensa industrialização e no crescimento populacional em escala global. Se esse era o caminho do progresso, então, o contrário disso se torna um mundo com poucas pessoas, sem as tecnologias que a gente conhece hoje, com construções assemelhadas às de séculos passados, no caso europeu, ou paisagens tomadas pela natureza, em uma indicação do que deveria ser considerado primitivo.
Você poderia pensar esse mundo futuro, que sobreviveu ao apocalipse nuclear, como um mundo que aprendeu a lição e passou a valorizar as pequenas comunidades, o contato com a terra, o respeito a natureza, a ordem baseada no cuidado coletivo e o repúdio a todo o tipo de tecnologia baseada na extensa exploração dos recursos naturais para suprir desejos criados pela ganância.
Só que, não é isso que acontece.
Qualquer ideia de perder o mundo que a gente tem hoje, soa funesta e é atacada como retrocesso. É mais fácil imaginar que o ser humano que abdique do nosso modo de vida tenderá à degeneração.
Quer dizer, quem conseguisse sobreviver ao apocalipse teria que perder parte da sua humanidade, se tornar bestial, corromper o próprio corpo e assumir uma natureza pendular entre a proteção da companhia e a ameaça do estranho.
Uma representação pós-apocalíptica baseada nesses princípios não vai apenas te jogar em um cenário desértico e tóxico. Ela vai te fazer encarar essa monstruosidade.
Pra isso, você precisa, ao mesmo tempo, reconhecer que há algo de humano naquele monstro, e ter certeza de que a parte não-humana é algo de que você quer manter distância. A proteção e a ameaça em uma mesma figura.
A solidão, nesse mundo destruído, é aceitável apenas temporariamente. Não há chances de você sobreviver ali sem ter ajuda de quem já domina aquela paisagem, de quem já conhece os perigos e os caminhos seguros.
O problema é que, para conhecer esses perigos e os caminhos seguros, seria necessário se transformar em monstro. Quando você encontra essa coisa, esse monstro, não dá pra saber se ela vai te alimentar ou te devorar.
***
Quando a gente elenca esses elementos, já é quase uma descrição de algumas pinturas do Beksiński.
Em uma tela vertical, quase quadrada, de 1972, esse encontro com a monstruosidade parece prestes a acontecer.
Você está entre dois despenhadeiros de dezenas de metros de altura. De ambos os lados, erguem-se gigantescas esculturas de esqueletos encapuzados que trajam mantos escuros. Não são figuras idênticas. À direita, em primeiro plano o esqueleto junta as mãos em oração, os demais não. Alguns estão virados de lado, outros olham para baixo. Em todos, a caveira fica à mostra, sob uma luz amarelada, meio alaranjada, difusa e enevoada.
O céu tem essa cor ocre, terrosa, como nuvens que refletem as chamas de um incêndio.
À esquerda, as esculturas são apenas silhuetas apertadas umas sobre as outras, por conta da perspectiva. Do meio delas, bem no alto, surge um longo braço. A mão desse braço segura um objeto elíptico, sustentado por um fio.
Não há muita variação de cor. As laterais da imagem são escuras, o céu é mais claro e, ao centro, o fim desse corredor perde-se na névoa. Tudo é marcado por pinceladas verticais finas, que parecem descer como chuva, até a minúscula figura aos pés das esculturas encapuzadas.
É uma figura humana, você tem quase certeza. Ela segura uma luz, na mão esquerda erguida. Se não fosse por essa luz, talvez ela passasse despercebida. Não dá pra ter certeza de que ela está virada na sua direção, mas ela parece caminhar. Seu corpo é apenas uma fina mancha preta. Com uma exceção. A cabeça. A cabeça é um ponto branco. Branco demais. Estranhamente branco.
Noutra imagem, do mesmo ano, é possível que você esteja diante dessa mesma figura. Agora, você tem certeza de que o estranhamento não foi à toa.
A coisa na sua frente tem enormes mãos esqueléticas, com pele esticada e unhas grossas e quebradas. Essas mãos estão diante do peito e envolvem um embrulho de tecido vermelho, com a mão esquerda envolvendo a coisa e a direita servindo de suporte para que a pequena criatura se sente.
Tem alguém envolto naquele tecido vermelho. Um feto, uma criança desnutrida, um cadáver. Na parte de cima do tecido, ressalta-se a cabeça, na parte de baixo, pendem os dois pés magros.
As mãos que protegem o minúsculo cadáver saem das mangas de um paletó marrom puído, largo demais para quem o veste. Para baixo, a imagem é interrompida no meio das pernas.
Não dá pra saber a altura dessa criatura que está de pé, a poucos metros de você.
Ela é esguia. Os ombros estreitos devem ser ossudos como as mãos. Sobre esses ombros, não há uma face humana.
Sem pele, surge um crânio avantajado, que lembra a carapaça de um caranguejo. Dá pra perceber a separação dos ossos do crânio, na parte de cima. Amarelado.
Na parte inferior dessa cabeça, não há maxilar ou boca ou nariz visíveis.
Duas cavidades oculares muito afastadas misturam-se com a escuridão que é encerrada por um lenço cinza que envolve um possível pescoço.
O amarelo dessa cabeça quase brilha em um cenário cinza. Como se aquele mundo tivesse sido queimado e só restasse fuligem.
Na parte de cima da pintura, a linha do horizonte indica uma pequena elevação. À direita, há uma construção quadrada, com dois, três ou quatro andares. É apenas uma sombra, no meio da qual se destacam duas janelas acesas, como olhos. Para além desse horizonte, apenas o céu escuro, por trás de um véu de névoa, sem estrelas, sem nada.
De poucos anos depois, 1975, há outra possibilidade para a figura de cabeça branca que você encontraria. Mas, o cenário já não é o mesmo tipo de deserto. Agora, você está em uma cidade devastada pelas chamas.
Ao fundo, a fumaça dos incêndios embaça as formas dos prédios sobrepostos, marcados apenas pelo brilho das chamas que escapam de cada janela. Quanto mais para cima, mais avermelhado. Quanto mais para baixo, mais escuros os prédios. Não tem como identificar ruas.
O vento sopra da direita para a esquerda, inclina as chamas, leva brasas e arrasta poeira e cinzas. O chão está coberto de cinzas que se acumulam em um amontoado contra a parede de um prédio escuro, que fecha a imagem do lado esquerdo. Um quadrado preto, talvez um pedaço de madeira, destaca-se no canto superior esquerdo, suspenso pelo vento, como uma demonstração de sua força. Logo abaixo desse quadrado preto, um fino poste dobra-se, mas continua de pé, marcando o limite do chão.
O fogo ilumina essa linha horizontal da rua, coberta por restos da destruição. Não dá pra identificar nada além de um móvel, talvez uma escrivaninha, sobre a superfície da qual brotam chamas. Ela está mais para a direita, à distância. Antes dela, o limite direito da pintura é um amontoado de fios escuros que tomba de um prédio prestes a desabar.
Não dá pra entrar nessa cidade, não daria para sobreviver ali. Mas, há um ser que parece ter saído lá de dentro e está bem diante de você.
Sob o chão amarelado e repleto de restos, pequenos ossos ensanguentados ou insetos queimados, o monstro caminha sobre as quatro patas esqueléticas.
Seriam mesmo patas? Talvez não. Talvez, seja uma pessoa caminhando com as mãos no chão.
A mão direita está adiantada e toca o chão apenas com os dedos. A mão esquerda está recuada de um passo que já foi dado e o braço dobra-se em paralelo à coxa esquerda. Os membros traseiros não são humanos. Não têm como ser. São mais como de um cavalo? São como as pernas de uma ave? Difícil dizer.
Esses quatro membros unem-se a um tronco que parece feito de fuligem. Não tem fronteiras nítidas. É apenas uma mancha preta ovóide.
Grudada nesse tronco indefinido, entre o que seriam os ombros, bem próxima de você, aparece a cabeça. Está totalmente envolvida por algo branco. Podem ser bandagens, pode ser um só fio de lã branca e enrolada, como um novelo. Parece um casulo de teia de aranha. Na parte da frente, onde deveria haver o rosto, apenas uma faixa vermelha, que você tem certeza de que é sangue.
***
Há muitas tentativas de interpretação dessas imagens. Tem quem fale sobre as memórias de infância do artista, sobre seus pesadelos e sonhos, sobre a experiência da guerra, sobre seu gosto pela ficção científica e a música erudita.
Honestamente, não há necessidade de se tentar encontrar a mensagem correta. Ela nem deve existir. O próprio artista já dizia que não se tratava disso.
Ele teve sua fase como pintor abstrato e não dava títulos para as suas obras para que a forma gerasse possibilidades abertas com o público. No máximo, ele explicava como preferia pintar enquanto ouvia música erudita, sem letra, sem canções, apenas os instrumentos. Quer dizer, sua pintura nunca se desgarrou da abstração. É sempre bom lembrar que a música é a arte abstrata por excelência.
Mas, interpretar, colocar em palavras, inventar narrativas, conferir significados, estabelecer relações, paralelos e oposições, nomear, buscar intimidade com as imagens, tudo isso, faz a arte ser mais interessante.
De alguma maneira, interpretar é um modo de criar.
Na descrição deste episódio, além dos artigos que a gente usou, você vai encontrar uma wiki com mais de 700 obras do Beksiński. Tem muitos conjuntos de pinturas e desenhos dos quais a gente não passou nem perto aqui, neste episódio.
Se você gosta de horror e cenário pós-apocalípticos, é provável que você logo encontre as suas imagens preferidas dessa coleção.
A gente não tentou escolher as que mais nos impactam ou as que teriam mais possibilidades de narrativa. As obras descritas, aqui, aparecem na medida em que o episódio foi construído. Não tem nada que as faça mais especiais que as outras. Aliás, tem muitas que são mais impactantes.
Apesar de ser fácil reconhecer as obras desse artista, ele variou bastante durante os anos 1970, 80 e 90. Tem pinturas que chamam mais a atenção por conta da quantidade de detalhes. Outras, fazem composições de cores e texturas que te prendem antes mesmo de você pensar em entender a figura que está na tela.
Se você gosta de cinema, tente se lembrar de filmes que se inspiraram em alguns desses cenários e figuras monstruosas. Pode ter certeza de que não são poucos os exemplos.
Essa mesma sugestão vale para referências em capas de livros, capas de discos, outras pessoas que ilustram, ou qualquer tipo de arte.
Quando você gasta um tempo para observar qualquer coisa com calma, até os pesadelos podem se transformar em diversão.
Encerramento
Taí! Encerrando mais um Não Pod Tocar. Gostou? Não gostou? Fala com a gente. Você pode entrar em contato com a gente através do e-mail, que é naopodtocar@gmail.com, ou das nossas redes sociais, que são todas @naopodtocar, sempre com o D, de pod, no mudo. E quem comanda as nossas redes é o Chewie, o primeiro e único cão podcaster. Segue a gente no Twitter e no Instagram e vai lá ganhar uns lambeijos do Chi Chi.
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Ainda em notamanuscrita.com, você encontra textos de processo, crônicas, contos, resenhas de livros, artigos acadêmicos, fotografias, ilustrações e outras das nossas produções.
Por hoje é isso. Se nada der muito, mas muito, muito errado, semana que vem, a gente tá de volta. Bora dar um tchau!
Comentados
– [livro] Na volta a gente esquece, de Fabiana Pedroni;
– [noveleta] A morte do vizinho da serra elétrica, de Rodrigo Hipólito;
– [campanha] Outras histórias, por Miramar Livros;
– [artigo] ALVARENGA, Valéria Metroski. A cidade dos mortos: o mundo imaginário do artista polonês Zdzislaw Beksinski. R. Inter. Interdisc. Art&Sensorium, Curitiba, v.4, n.2, p. 31-45, jul.-dez. 2017.
– [artigo] SOKOLOWSKA-SMYL, Beata. Zdzislaw Beksinski’s Paintings of the “Fantastic Period” as an Expression of Early Childhood Experience. Creativity. Theories – Research – Applications, 2014, Vol. 1, Issue 1.
– [artigo] KOPTSEVA, Natalia P.; REZNIKOVA, Ksenia V. Three paintings by Zdzisław Beksiński: making art possible “After Auschwitz”. Journal of Siberian Federal University. Humanities & Social Sciences 5 (2015 8) 879-900.
– [dissertação] CATTAINO, Javier. METAMORFOSIS. Figuraciones fantásticas y estética de la Nueva Carne. Universidade Politécnica de Valencia. Faculdad de Bellas Artes, 2011.
– [wiki] 700 obras de Zdzislaw Beksinski;
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