Caderno de Anotações, p. 113, 31.01.2012
Três ou quatro séculos atrás, do ponto em que me encontro agora, via a entrada da baía de Vitória (ES). Era este o ponto mais alto, a construção mais imponente e tudo que pudesse chegar a essa cidade, chegava primeiro ao olhar daquele privilegiado habitante dessa guarita com paredes de pedra. Aquela embarcação de velas curtas já se encontrava aqui, diante deste porto num zoom retiniano demolidor de perspectivas. Vida horizontal, vida vigilante. O corpo expandia-se num mapear sem planos de importância determinados por posições de fenômenos. A percepção, vontade pré-objetiva, expectava chegadas e partidas.
Quanto maior a planaridade evidente, maior a ilusão de transcendência. Talvez a passagem de quatro séculos e meio não tenha cogitado sobre esse valor corporal resultante da realização da espacialidade existente entre extensão de céu, extensão de coisas e Eu. Construiu-se um bloco divisor que estranhamente nos afundou. Eis a impressão. Tanto para a esquerda, para onde se via a entrada da baía, ladeada de um morro-ilha por um lado e de um Penedo[1] por outro, quanto para à direita, com o embrenhamento para serras e mais além para os mares de morros, há agora rabugentos menires. Uma série inconclusa de prédios aqui, um buraco para o porto ali, uma rua apertada pelas cortinas de janelas e ar-condicionado mais adiante. Eles são mais altos que a antiga colina vigilante sobre a qual me encontro.
Como vejo, são mais altos? A partir de onde? Já havia uma montanha por trás deste prédio que habito agora, mesmo quando começaram a construí-lo, quatrocentos e sessenta anos atrás; então ela sempre esteve ali, e o céu sempre acabou ali, naquele hábito. O que estava aqui estava abaixo daquela montanha. Agora, os prédios construídos do outro lado, que vedam a visão para o mar, cresceram sobre o pano do céu como novas e esquisitas montanhas. Numa noite de breu, tudo o mais que seja horizonte, são gigantes adormecidos, como ratos enganosos num Disparate de Goya.
Pela manhã, quando o sol demora a surgir, percebo que afundamos nesse ponto, enquanto os gigantes despertavam pelos últimos cem anos de avanço vertical. Se ainda não somos subterrâneos é por conta daquelas lascas de azul, que forçando o pescoço para trás, consigo fotografar.
O céu é um externo, e pelo modo como o vejo, sei a extensão deste corpo, deste limite habitável (mais horizontal/mais vertical). Entendem-se aí as palavras do claustrofóbico urbano. Ele morava por sobre um morro, num descampado, num planalto, ou numa época sem menires tão notáveis. Ele diz que ao olhar para o céu sente-se fechado na cidade. Vê? Que a cidade, o corpo, o hábito… Essa coisa compõe-se por elos de corrente soltos.
[como no trânsito, quando o veículo no qual nos encontramos para e os demais continuam lentamente, temos a impressão de uma marcha ré de nossa parte, do nosso eixo de base, também afundamos quando passamos a perceber todo o resto elevar-se] Com esse limite-céu diminuto, nosso Hábito estende-se verticalmente e cria uma pressão horizontal, pressão essa que é resultado da própria ilusão de movimento sentido vertical. Eis o claustrofóbico urbano.
Na minha antiga cidade, meu antigo hábito, havia um conjunto de pedras vulcânicas e montanhas que circundavam o perímetro urbano. A cidade encontrava-se em um buraco (que em verdade deveria ser um vale, por onde deveria correr um rio, posto que não houvesse rio, este vale era um buraco). Estávamos, nós habitantes, inevitavelmente abaixo daqueles monumentos naturais. Nossos arco-íris vinham de por detrás de um morro e sumiam atrás das árvores no topo da pedra maior (e junto com a pedra maior essas árvores também era maiores). Nossos raios eram um bate-rebate de linhas brancas brilhantes saindo e voltando na tela; vinham do nada e acabavam no nada, sempre fora de nossa perspectiva. Nossa profundidade nem era tão profunda, pois o aro de nosso foco era de diâmetro considerável. Ainda assim estávamos abaixo. Mesmo que estivéssemos mil metros acima da linha do mar, como realmente estávamos, no momento em que se saía do buraco, no momento da decisão de deixar os limites da cidade, o conhecimento da decida somente chegava já ao pé da serra, muito após o abandono físico do buraco. Descia-se a serra e a presença do mar tornava a situação bastante curiosa. Pois, na linha do horizonte, caminhando neste traço, a extensão de todo o hábito vestido é a extensão do meu olhar, e é a extensão do meu corpo próprio. O limite-céu é a cobertura extensiva desse hábito. Entre o limite-céu e o limite-chão haveria apenas o corpo próprio. A linha do horizonte está sempre presente e é a ligação entre um limite e outro. O corpo próprio realiza essa ligação e o equilíbrio entre a extensão do limite-céu e a estabilidade do limite-chão ordena minha vertical e minha horizontal. Digamos de uma vez: o total equilíbrio não existe para a percepção, desse modo, estamos sempre impulsionados por uma pressão. Este é o nosso limite panorama.
[1] O Penedo é um monumento natural da cidade de Vila Velha, no entanto, a típica visão da pedra tem com base de observação a cidade de Vitória. É mesmo difícil encontrar imagens que nos mostrem o Penedo visto de um ponto localizado em seu município. A verdade é que o Penedo é parte constituinte do “corpo” de Vitória, inserido em sua imaginária e em sua representação paisagística. O Projeto Resgatando o passado e refletindo o futuro do centro de Vitória demonstra de modo objetivo a relação da imaginária urbana com a transformação das representações paisagísticas, utilizando como exemplo de caso o Centro da cidade de Vitória.