[crítica] Planos sobrepostos: a cidade que se constitui no tempo

Texto de Fabiana Pedroni.

A cidade se constrói no tempo vivido. Não se trata de uma sucessão de acontecimentos e mutações, mas de experiências com o espaço. A dicotomia, ou melhor, tricotomia do passado-presente-futuro não é válida num objeto em constante alteração. O discurso pode assumir sua existência, mas o conceito não se aplica por uma realidade perceptiva. A cidade torna-se um arranjo espacial motivado no sujeito. Pode conter marcas de tempos diversos, mas todas se unem num momento-ato de vivência do sujeito. O passado é utilizado para compreender o presente e intuir o futuro ao mesmo tempo em que encontra no presente ferramentas de compreensão e construção do passado.

A sobreposição material do tempo na constituição da cidade é clara nos centros urbanos, nos quais, como num processo de restauro, é possível pôr à mostra as camadas de construção. Edificações que possuem em seus veios a história de diversas vidas pouco dizem sem a vivência atualizada de um sujeito específico. Vivências que criam panoramas. Cada habitar constrói um novo espaço que mescla memória e ação. O registro da memória urbana nada mais é que um registro da atuação material do tempo sem maior significação se não houver uma perspectiva relacional. O resgate da memória espacial leva-nos a ver uma alteração física e natural do espaço, uma curiosidade sobre a ação do tempo, mas o que fundamenta sua essência e lhe concede significado é a relação perceptiva entre sujeito e espaço, independentemente de seu tempo.

O significado de lar ultrapassa uma edificação e o passado vivenciado por outrem. Por uma casa antiga já passaram várias famílias, muitas memórias foram construídas, mas todas se perderam a partir do momento em que o laço com o presente se desfez. No sentido de reconstituir e criar laços com o passado, o registro fotográfico torna-se uma ferramenta de interesse. O projeto de Giovanna Faustini [1], “Resgatando o passado e refletindo o futuro do centro de Vitória”, contrapõe, na criação de postais, imagens antigas e recentes do centro da cidade de Vitória. A reflexão concentra-se na mudança física da cidade e das relações sociais, apontando para um futuro que una as duas vertentes.

Viaduto Caramuru, 1930 (Giovanna Faustini)

Rua Uruguai, 1940 (Giovanna Faustini, 2011)

Escadaria Maria Ortiz, 1936 (Giovanna Faustini, 2011)

Já o trabalho de Camilla Saloto, “Memória: realismo e distorção” [2], discute para além de uma percepção visual da mutação urbana, o contraste do tempo. Utiliza-se para isso a sobreposição de fotos antigas na paisagem original. O fato é que Saloto constrói uma memória não vivida, de vestígios não experienciados do comunismo. A brasileira, que hoje mora na Alemanha, mostra o resgate da memória do comunismo na cidade de Weimar, na Turíngia, pela perspectiva de uma estrangeira de tempo e espaço. Em depoimento nos afirma o nascer de uma história alemã na qual se envolverá e atuará a partir do contato com registros fotográficos e declarações daqueles que vivenciaram tal passado: “Para mim não será apenas trabalhar o contraste do velho e novo. Será mergulhar no passado comunista da cidade, envolver-me com essa sensação nostálgica de um passado que não me pertence, mas que me toca. Acho que se encaixa bem com diletantismo [3], uma estrangeira resgatando essa face de outro país”.

Construir uma vivência é vestir hábitos e estes, constroem-se pela passagem temporal e pelas marcas espaciais. O sentido histórico somente pode ser dado pela “retemporalização” das marcas esvaídas do presente, i.é, presentificar passagens temporais é injetar sentido em entes que tendiam ao nada. A tentativa de Camilla Saloto, aparentemente, é caminhar por significações nascentes, puxando linhas nas quais tropece, para seguir sentidos que lhe permitam habitar. Se caso tais sentidos insistam por tendências contraditórias, talvez este seja o ideal, pois um sujeito, um corpo, uma cidade, uma história, uma soberania, uma rua, uma catedral ou uma palavra, jamais possuem direção única, pois suas medidas são as medidas do possível.

O espaço da cidade não é homogêneo, entregue a inteligência sem corpo, mas heterogêneo. Um espaço que se relaciona com as particularidades corporais do sujeito e com a situação deste como Ser jogado no mundo[4]. A percepção da cidade dá-se no relacionamento entre o espaço heterogêneo e o sujeito: no diálogo constrói-se a memória e o mundo percebido. Todos os elementos que permeiam o universo urbano (sujeito, memória, sentimentos, vivências, espaço físico, edificações, vias, limites etc.) comunicam-se, trocam informações entre si e permanecem em constante mutação.


[1] Contato: giovannafaustini@gmail.com

[2] Experiência em realização no ano de 2012.

[3] A gênese do trabalho de Camilla Saloto é agregar e transmitir conhecimento através do condicionamento da captação numa atitude de lazer e de identificação intuitiva. Esse procedimento a torna uma diletante, i.e, para o espaço cultural no qual ela se insere, sua posição pode ser, no máximo, paralela à de um nativo. Uma estrangeira que expõe um passado não-próprio dela. O sentido de criar uma memória que a conecte ao espaço em que atualmente habita ultrapassa as obrigações de caráter profissional.

[4] MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas – 1948. Tradução de: Fábio Landa; Eva Landa. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.17.

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