Caderno de anotações, pp.116-117, 05.02.2012 – 06.02.2012
15 minutos. 30 minutos. 45 minutos. Menos uma pasta do MP3. O que ouvir agora. Como compor a trilha amorosa mais animadora, ou acalentadora para essa filmagem a là Tarkovsky? Talvez algo mais sombrio, com menos distorção; trocar guitarras por violões e uma voz grave e melancólica (alguma melancolia não-triste). Não sei. Mas já percebi que tento compor uma estética sonora para essa paisagem tão costumeira: para este habitat de passagem. Sei cada árvore, cada guindaste do porto, cada foco de luz matinal por trás dos morros e do Penedo, onde as casas aglomeram-se mais e as ruas somem, onde os prédios são mais solitários, onde nos desviaremos dos buracos… e sei quando cobrem os buracos. Passo todos os dias pelas mesmas malditas vias.
De casa para o trabalho seriam cinco minutos livres. Há uma ponte para ser atravessada e tal travessia, contando 23 carros habitados apenas pelo motorista para cada ônibus inevitavelmente contendo carga extra de pessoas… tal travessia leva em média 50 minutos na terça-feira, 40 minutos na quinta-feira, 55 minutos na sexta-feira, 5 minutos no domingo. Essa espera, a vibração do motor, os celulares-rádio-microssistem-AIWA, o sol-fritadeira, o saber do que existe além do olhar (para os dois lados da baia que a ponta atravessa), a presença dos veículos menores, a visão dos navios ao longe, os outros seres humanos (?) ao lado, todos estes itens e mais alguns inumeráveis, contam na formação do traço que me é esta via principal.
Conhecer pelas vias principais é conhecer um dado corpo; e por serem estas vias mais procuradas, é por elas que forma-se uma generalidade falsa a cerca do corpo urbano. Falsa, diríamos, pois, quando se pergunta pelos pontos da cidade para reconhecê-la, as informações nos vêm através de nomes e títulos dados às coisas; porém, essas coisas raramente chegam nas palavras ou nas imagens, acompanhadas por uma descrição significativa (siga pela avenida Beira Mar, você verá o Penedo à direita, os canhões do Forte à esquerda, ao passar pela curva do Saldanha, nessa via, 15 minutos depois, terá passado a Praça do Papa e subirá a Terceira Ponte num retorno à esquerda, então terá uma vista da entrada da baia de Vitória e começará Vila Velha passando entre o morro do moreno e o Convento da Penha. E como são essas coisas? Na verdade, elas não são, mas passarão a ser quando estiver com elas).
Uma cidade possui vias principais, ou vias gerais, pois é através delas que se conhece a estrutura básica das cidades. Viver na cidade depende dessas vias gerais. O traçado primário da cidade encontra-se nelas e mesmo que em um mapa ou uma imagem de satélite, não as encontremos de início, quando construímos mentalmente a cidade, sua estrutura planificada e os elementos que compõem a trajetória das vias principais inevitavelmente mesclam nessa projeção. A cidade, corporeamente, é um interlocutor de retórico imbatível, com o qual travamos contato de ódio, desejo, necessidade, zelo e desprezo, isso, através sempre da intuição. Racionalizar a cidade por mapas e GPS é uma boa saída para a localização prática, sem deixar de lado o fato de ser o ambiente urbano, ou a vivência de seu corpo, uma mistura de contemplação, maquinário, acontecimento e imprevisbilidade (happening e land-art)[1].
[1] Nos últimos anos a cidade de Vitória tem passado por uma curiosa e inquietante transformação. Trata-se da grande quantidade de obras executadas simultaneamente em suas principais vias, tanto na ilha quanto na parte continental. Alguns estudiosos e poetas cogitam que se trate de uma parceria entra a Secretaria Municipal de Obras, a Secretaria de Cultura e a Secretaria de Turismo, com o intuito de construir um modo de interação filosófico e percepção do corpo urbano. A cada dia, ao sair de casa, as chances de que você consiga chegar ao seu destino, tomar a condução no horário anteriormente costumeiro, e mesmo que a residência na qual você dormiu ainda seja a mesma, é mínima. Não espere por seu ônibus, pois os trajetos mudam semanalmente sem aviso de modo que é aconselhável observar as placas nas quais se inscrevem os trajetos; é de bom tom perguntar ao motorista antes de pagar a passagem. Atente também para a proximidade de seu local de destino, pois, fatos como, a rua ter sido escavada ou mudado de posição, os pontos não existirem mais, um edifício surgir no caminho de modo suspeito e o diálogo entre semáforos aparentar ser uma discussão, são das artimanhas mais utilizadas para evitar que seu dia seja igual ao anterior. Daí a afirmação de que viver na cidade de Vitória é estar entre o happening e a lad-art (provavelmente aconteça assim em toda a metrópole).