[crítica] Outubro – A isca

Texto de Rodrigo Hipólito e Fabiana Pedroni

Texto em PDF, com ilustrações.

[Exposição “Outubro” realizada na Galeria de Arte Espaço Universitário, na Universidade Federal do Espírito Santo, em Outubro de 2012. Proposição de Hebert Baioco, Gisele Ribeiro, Marcus Neves e Silfarlem Oliveira; com curadoria de Waldir Barreto].

Apontamento II, p. 116.

Consideração 1:

A isca é lançada e somos devorados pelo incômodo em pensar em nossa própria existência. Em um espaço supostamente vazio nos damos conta de que ali há o ser. Qualquer outra materialidade que invada o espaço (outros, poeiras, gradações de branco nas paredes, manchas no piso, defeitos de construção arquitetônica, marcas do tempo, aparelhos que fazem intencionalmente parte da exposição, tudo aquilo que está contido em parênteses e que nos faz esquecer o que estava sendo dito antes…) capta…

Por mais silenciosos que tentemos ser para nos preservar o direito de interferir apenas naquilo que queremos, Outubro nos absorve. Pensamos manipular os aparelhos, as captações, mas são as situações que nos manipulam. É assim em todo diálogo. Não seja pessimista.

É-me exigido tempo. Frase que ecoa a cada som apresentado. Em dias em que mal respiramos, é-me exigido o elemento mais precioso da produção – todos os tempos. E vejo, agora com olhos sensorialmente diferentes, o tempo ser roubado de outros que ali estiveram. Não são apenas sons captados e reproduzidos formando paisagem fora de mim, mas a delicadeza em expor outros dos quais não tive participação e a grosseria em não saber em que tempo minha interferência indesejada será exposta ou simplesmente apagada.

Consideração 2:

Caderno de Anotações, 19.10.2012, p. 095.

“Por que há o ser e não antes o nada?” A pergunta de Heidegger(1) é bastante cabível diante de uma obra que lhe exige retificar sua condição de ser-pensando. A obra Outubro apresentou (2)intimamente a condição de paisagem como aquela que se esconde na sua presença. Não se trata do espaço representado ou mesmo presentado, mas da decisão do sujeito que recorta entes no mundo e lhes enquadrada como um panorama do qual o próprio sujeito não pode ser presente.

Georg Simmel(3) caracteriza o que nos faz realizar uma paisagem como algo da ordem da subjetividade, o sentimento de stimmung. Para formar uma paisagem deve o sujeito primeiro reconhecer seu modo de ser para depois renegar-se como presença e então formar um panorama ao qual não pertence, mas que lhe deve a razão de existir. (4)

Resultado de uma obra extremamente eficiente, incômoda e divertida é saber que a ideia de paisagem é suficientemente ampla para afirmarmos que se trata de uma invenção individual, que por vezes partilhamos. Visitar Outubro sozinho lhe facilitava solucionar a obra, visitá-la em grupo lhe permitia derrubá-la. É possível distrair-se no incômodo.

Sempre há um poder formador da paisagem: diante dela e em seus bastidores. A natureza de tal poder pode ser distinta: de um lado criando margens fenomenais, de outro numa atuação plenamente técnica.

Quando quero distinguir uma luz muito forte, ou ainda medir sua intensidade, me ponho de costas para a origem, para que a possível força de uma verdade não me cegue. Posso ainda interpor alguma solidez entre dois conteúdos tão difíceis de apanhar (como a fumaça, Nietzsche): Eu e a Verdade.

Foi um Outubro de movimentos, como muitos outros antes. É bom lidar com a paisagem como algo temporal; como algo que apreendo em certas condições, nas quais me permito criar, mesmo que não reflita todo o trajeto dessa criação, mas que passa; uma paisagem somente se formula quando me outorgo o direito de deliberar sentidos e encontro um segundo momento de atuação, quando posso integrar esses sentidos num mesmo mundo.

(1) HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.

(2) Exposição realizada na Galeria de Arte Espaço Universitário, na Universidade Federal do Espírito Santo, entre 03 e 19 de Outubro de 2012 (Proposição de Hebert Baioco, Gisele Ribeiro, Marcus Neves e Silfarlem Oliveira; com curadoria de Waldir Barreto).

(3) Georg Simmel. A Filosofia da Paisagem. Covilhã: Universidade da Beira Interior/LusoSofia: press, 2009.

(4) Cf. HIPÓLITO; PEDRONI. Subversão e Dependência das Tecnoimagens: Paisagem e Câmara-escura na Arte Atual. II Seminário do Núcleo de Conservação e Restauração – Paisagem: Do Panorama ao Pertencimento. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2012.

Situação 1:

Apontamento II, p. 117.

Abertura. 03 de outubro. Tumultos e isolamentos. Confabulações. De minha parte, mais silêncio.

Situação 1.1

Não resisto: “está é a primeira exposição que me faz correr”. Parecia uma simples afirmativa de deslocamento espacial testando o diálogo com o espaço sonoro e seus dispositivos. Agora ganha outras conotações de correr no tempo e nos significados de diálogos possíveis.

Situação 1.2

Inevitável não recorrer ao material mais próximo diante do vazio incômodo. Observar pessoas. Comportamentos similares de deslocamento e não-permanência no espaço vazio. Todos se acumulam na entrada onde há plantas, banco, pessoas, matéria costumeiramente mais palpável; ou deslocam-se para o fundo da galeria, onde se escondem da captação de som e de longe confabulam questionamentos possíveis diante de tamanha estranheza. Sabe-se que não é uma galeria vazia, não apenas por estarmos ali, mas por sentir que o tempo e o processo estão em andamento.

Situação 1.3

O som é ativado. Muitos correm. Vou lentamente. Todos olham, onde está? Desistem. Todos saem. Eu corro. Necessidade de relações individuais e subjetivas com o espaço. Não

Situação 2:

Retorno individual à exposição. Objetivo: comprar o catálogo. Real objetivo: escutar se estou ali. Não há identificação pessoal (nem de pessoas), há um silêncio sonoro que reverbera. Treme o vidro, chama-nos como isca mais eficiente que palavras. Interferências invisíveis, mas existentes. Silêncios escutados em tal gradação que ensurdece. Muda-se o movimento: o correr para testar o dispositivo e a ausência corporal para acionar o som torna-se um correr para calar a reverberação. Até que ponto estamos dispostos a ser incomodados a pensar? Repito, “esta é a primeira exposição que me faz correr”.

Situação 3:

Bate-papo com artistas. Séries de imprevistos que tornam o processo expositivo para além do domínio de nossas ilusões de manipulação. Sons de aparelhos, câmeras que nos observam, nosso não-domínio sobre o tempo presente. Questões fragmentadas que encontram justificativas em muitos discursos. Cada vez mais estou pensando sobre a questão do interesse e da memória afetiva. Sem materialidade, tendemos a nos apegar ao mais material possível e depois de correr tanto, respiramos e invertemos a situação: quanto mais não vemos, mais a uma memória nos apegamos.

Situação 4:

Catálogo. Escutando o cd.

A ausência de materialidade facilmente reconhecível nos deixa ansiosos e pensantes. Por que 78 e não 49? São os mesmos sons? A mesma faixa repetida? Passam-se as 78 faixas seguidamente, dando-lhes apenas alguns segundos para cada. Não, não é assim que se experiencia uma situação não visual. Exija o tempo.

Retorna. Sendo manipulados pela circunstância expositiva em um espaço que já não à exposição pertence, ou não pertencia. Paisagens sonoras que invadem.

Eis então que ruídos despertam ecos de algo que não escuto. Confiro o telefone duas vezes. Não, ele não toca. Ouço a máquina de lavar desligada. Sensação de incômodo ainda maior. Corro (novamente). Não, o telefone realmente não toca. Paisagens mentais?

Dar corpo à ausência.

Quando fora tendemos a observar e pensar, imputamos significados e construímos paisagens. Quando dentro, somos devorados em paisagem. Sejam captados por esta sensação.

Situação 5:

Outubro — A isca

Sim, é outubro.

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