[crítica] O Ambiente-arte e o olhar sem direção

01 - Hilal Sami Hilal - Navegar é Preciso - Múltiplo- 2013

“Navegar é Preciso”, Hilal Sami Hilal, dobradura em cobre, 2013, Multiplo, 50.

[texto publicado originalmente em Caderno Pensar, Jornal A Gazeta, Vitória, ES, pp. 8-9, setembro 7, 2013]

Uma máxima funcional diz que arte causa estranhamento. Mas, isso é tarefa frustrante em museus apartados da vida e galerias politicamente centrípetas. Não há risco em afirmar que o sistema de arte possui moral refratária e exige arguta diplomacia com outros campos. O século XX, que grita o ganho da livre criação em arte, estipulou locais adequados e inadequados para o assentamento dessa criação. Quando incursões institucionais se batem com a liberdade crítica o museu surge no papel de vilão encaixotador e as galerias comerciais como um refúgio inglório.

Entre as paredes e as ruas as grandes instituições atendem ao desejo desintelectualizante do público e aderem a formatos não carimbados: as feiras e as praças. A SP-Arte, iniciada em 2005, exemplifica o molde brasileiro da feira de arte. Ao tomar o Pavilhão Ciccillo Matarazzo como local de realização a SP-Arte serve como sinalizador da parecença entre feiras e bienais. São Paulo, Veneza ou Havana costumam apresentar recortes curatoriais mais determinados pela extensão do tecido que pelo corpo vestido.

As bienais internacionais afetam agressivamente o mercado.  Vincular o indubitável valor histórico de nomes fundamentais para a arte das últimas cinco décadas a artistas novos ou fora dos palcos traz os últimos para o centro do comércio. Isso pode ser observado na Bienal de Veneza 2013, na qual Hélio Fervenza e Odires Mlászho compõem o pavilhão do Brasil ao lado de Lygia Clark, Max Bill e Bruno Munari. Essa estratégia é próxima do modo como o design vintage é encarado pelo mercado da “decoração requintada”. Apoiar o novo no antigo é uma tendência permanente que gera crescimento numérico.

Outro caminho é evitar o hermetismo através da dispersão. Aberto como uma praça o SESC Pompéia leva o visitante a esquecer-se de que artes visuais, teatro, dança, música e literatura obedecem a sistemas diferentes. Com intenções aproximadas o New Museum de Nova Iorque produz sua Block Party e outros eventos para atrair crianças, adultos e animais. A criação de situações de desobrigação leva ao olhar não-determinado que atenta para a condição “habitável” da arte atual. Mas, o que ocorre ao injetarmos o ambiente-arte noutros circuitos?

Os visitantes da CasaCor ES deste ano tem recebido saudáveis doses de estranheza. A presença da arte não é inédita no maior evento de design e decoração do estado. A conversa entre as galerias e o planejamento de ambientes marcou todas as edições da CasaCor. Em 2013, porém, um espaço de uso pouco explorado abre duas clareiras no interior do labirinto erguido para acomodar os 48 ambientes: a galeria de arte.

O espaço projetado por Angela Gomes para a OÁ Galeria prioriza a observação meticulosa de peças de grande complexidade estética e pergunta pelos limites de adaptação da galeria moderna, o “cubo branco”, pois o local de uma exposição determina  processos curatoriais. Perguntar pela localização da mostra inclui não apenas condições físicas, espaciais e técnicas, mas também o público majoritário e os diversos eventos desconexos que circundam a exibição. Pensar o público significa facilitar seu entendimento? Não necessariamente. Se ainda considerarmos a máxima do estranhamento para o sucesso de trabalhos de arte poderemos encontrar num público contrariado um significativo aliado.

Imagine-se na situação de sair do abraço acolchoado do mobiliário estofado de escritórios a meia luz e deparar-se com uma abertura espacial de paredes deslocadas de seus ângulos habituais num branco pontilhado por coisas coloridas. Deslocamentos, aliás, é o título de uma das peças de Hilal Sami Hilal apresentadas no espaço da OÁ. Diante desse trabalho cada indivíduo é instigado a deslocar-se para criar movimentos óticos com linhas estáticas de quatro placas identicamente recortadas. O olhar é pego de surpresa e tenta localizar-se. A experiência reservada vira um diálogo de surpresas nas palavras inventadas de Jorge Menna Barreto e desemboca no drama íntimo de Um dia me perdoe e volte para mim, de Nazareno Rodrigues.

Angela corta o ambiente da OÁ com uma parede que expande diagonalmente o cubo branco e cria trechos espaciais. Tal projeto abre-se para as escolhas curatoriais de Thais Hilal. A galerista amarinhou a sala com uma vasta riqueza de linguagens recolhidas em outras paragens do país. Passadas pelo crivo das qualidades estéticas e discursivas as peças integrantes da exposição “Confluência” valorizam tanto a renomada Regina Silveira quanto o jovem observador Nino Cais. No alto pé direito a paisagem de grandes dimensões de Mariannita Luzzati pode respirar seus verdes difusos e há adequação tanto para a vertical de nanquins sobre foto e acrílico de Claudia Melli quanto para a horizontalidade sequencial das pinturas de Marina Saleme. Ao centro do salão encontra-se o integrante mais recente da marinhagem, um exemplar de Navegar é Preciso, múltiplo lançado por Sami Hilal. Com 50 barquinhos em dobradura de folha de cobre o “múltiplo” salienta o crescimento do mercado de arte brasileiro e instiga a atividade do colecionador no estado.

Já o “Louge das Artes”, pensado por Tatiana Coutinho e Roberta Vilela, integra propostas de arte extremamente heterogêneas trazidas pela Matias Brotas Arte Contemporânea à possibilidade do convívio despretensioso. Pensar em uma galeria de arte como um ambiente intimista faz com que a experiência com as peças fuja ao olhar direcionado. As paredes chanfradas, a mudança de pé direito e a iluminação de Maneco Quinderé resultam numa transição absolutamente amena entre os setores da galeria. O Ralo dourado de Vanderlei Lopes talvez não seja observado nos primeiros passos, assim como tantas outras peças desse quebra-cabeça que forma um estranho e confortável recinto. Se nos aconchegarmos nos sofás e deixarmos a atenção vagar é provável que o olhar recaia sobre ideias absurdas como as “malas de pedra” de Luiz Phillipe, ou singelas, como a pintura de Rosa Oliveira e a escultura de Ana Holck. Gradualmente a familiaridade abarca a curiosidade. Ao abandonar a lucidez do funcional ergue-se através da malha de aço, que é mais veladura que bloqueio, a fragilidade retilínea de Black Tie, de José Bechara. A composição dos cubos fechados e abertos num amontoado que somente ameaça ruir inclui em sua falsa instabilidade os corpos daqueles que o cercam. A suavidade desse ambiente é resultado de um garimpo de móveis e objetos. As poltronas Tonico (Sergio Rodrigues) eVentura (Fernando Mendes) estão pareadas em valor criativo com as obras de arte. Cada objeto presente possui sua história e valores subjetivos, como no caso dos vasos de Guto Requena, os quais reproduzem formalmente as vibrações dos contos de sua avó.

Sentir simultaneamente atração e repulsão pelas “jóias” de Nazareth Pacheco ou assustar-se com o metálico som de You and Me de Paulo Vivacqua são inescapáveis encontros carnais. Mas, o que resulta desse contato com a arte? Se formos verdadeiramente positivos, provavelmente nada. Caso jamais alimentássemos a esperança de encontrar a arte ou destruíssemos as expectativas de que ela está no reino da galeria distante ou no enevoado museu imaginário, talvez ela se apresentasse menos tímida e arredia.

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