Texto de Fabiana Pedroni.
GUYAU, Jean-Marie. A gênese da ideia de tempo e outros escritos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Estamos tão habituados a conceber o tempo como limitador e norteador do dia, que chegamos a confundi-lo com o real. Como se o tempo fosse um a priori, um encalço de toda representação. Mas, onde o tempo está? É possível encontrar o tempo? Após ler os escritos de Guyau, reunidos nesta obra, posso dizer que o tempo está na consciência, sua aparência segue o desejo e o temor. Quando distante de quem amamos, na agonia de uma espera, por Deus, a espera por um atendimento burocrático pega o tempo pelas pernas[1] e o estica ao ponto de torná-lo um monstro rancoroso.[2] O tempo parece elástico nas mãos de quem o sabe manipular. O tempo da velhice que apenas espera um fim, aquele da expectativa vazia que deveria ser encurtado pela ausência de diferenciações de fatos [3] é alongado por um desejo de preenchimento.
“Durar é traçar uma linha no interior do caos de nossas sensações, percepções, volições, sentimentos e lembranças; é produzir uma direção, colocando em sucessão o que aparece quase concomitantemente.” (SCHÖPKE, Regina. Guyau e o tempo que não passa. In: GUYAU, Jean-Marie. A gênese da ideia de tempo e outros escritos. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2010, p.11-12).
Traçar esta linha às vezes é mais assustador do que imaginamos, porque tomamos consciência, em meio à consciência de tempo, de que nossa sensação depende dos pontos de referência e daquilo que ordenamos. Quem diria que já fazem 12 anos desde o ataque as torres gêmeas (11 de setembro de 2001), ou que a blusa que visto agora tem aproximadamente … 4 anos. As questões que são postas distantes da esfera particular tendem a ser lembradas por uma distância menor que realmente possuem do presente. Lembro-me de assistir na televisão as torres do World Trade Center desabarem “como se fosse ontem”, mas se trago para minha esfera particular, lembro de estar em casa, sentada na cama de minha mãe, ouvindo os debates do que seria aquele acontecimento. A lembrança vai aos poucos se distanciando, porque tomo consciência da distância daquele eu do agora, que incrivelmente conseguia ter menos de 1,50 m… “A distância de um objeto parece maior para os olhos quando há certo número de objetos intercalados que servem como pontos de referência.” (p. 125).
No cálculo do tempo de existência desta blusa em meu armário, tive que viajar uma imagem da blusa ao espaço da compra. Onde a adquiri, em que ocasião? Numa viagem. Viajei para este local duas vezes, uma nas férias de julho de 2009 e noutra no final de 2009 para 2010. É uma blusa fresca, lembro que era verão, era julho. Aconteceram tantas coisas entre 2009 e 2013, e mesmo dentro de 2009, que apenas 4 dígitos não comportariam as sensações.[4]
A estimativa da duração de um fenômeno é relativa
“1º) à intensidade das imagens representadas; 2º) à intensidade das diferenças entre essas imagens; 3º) ao número dessas imagens e ao número de suas diferenças;[5] 4º) à velocidade de sucessão dessas imagens; 5º) às relações mútuas entre essas imagens, entre suas intensidades, entre suas semelhanças ou suas diferenças, entre suas durações diversas e, por fim, entre suas posições no tempo; 6º) ao tempo necessário para a concepção dessas imagens e de suas relações; 7º) à intensidade de nossa atenção a essas imagens ou às emoções de prazer ou de dor que acompanham essas imagens[6]; 9º) aos apetites, desejos ou afecções, que acompanham essas imagens; 10º) à relação dessas imagens com nossa expectativa, com nossa previsão.” (p.113-114).
E no caos, que tento ordenar em tempo de sequência todos os pensamentos anotados a margem da página deste livro, parece-me não haver muita distinção entre o que é uma citação importante e uma nota de rodapé. Ouvi dizer, de mim mesma, em tempos atrás, estudando formatações de textos acadêmicos, que as notas de rodapé unem informações complementares, que por seu caráter de “acréscimo” não alterariam o entendimento do texto. Mas se pararmos para observar o que até este momento tem se tornado nota de rodapé veríamos que são citações importantes e cruciais para o entendimento das ideias de Guyau. Então você pode estar se perguntando por que eu estaria mudando de assunto no meio de uma resenha sobre tempo para falar do próprio texto. É tudo sobre organização. Foi o que mais aprendi lendo esta obra. Se começo a escrever compulsivamente, sem pensar uma linha de argumentos e exposições, o texto perde seu sentido e fica confuso. Turva-se. No final, para falar de tempo, memória, espaço, sentimento, pontos luminosos começam a invadir o intelecto desordenadamente se não houver um controle. O ritmo de escrita, a condição em que me encontro, os acontecimentos paralelos a cada palavra acrescentada (a música country que ouço postada na internet por uma pessoa da Malásia, o frio nos meus pés, mensagens de alguém falando sobre redução de notas de rodapé em artigos científicos, etc.) influenciam no tempo que gasto para escrever a resenha e o tempo que você gasta para ler uma frase que agora você já julga longa demais.
Tendemos a contar as páginas que faltam para uma leitura agonizante; ou mesmo, contamos as páginas antes de começar a leitura, porque precisamos calcular se temos tempo suficiente para ler “isto” antes “daquilo”. É como em uma viagem, referência a um exemplo dado por Guyau na página 129,[7] se vamos viajar por 6 horas, sabemos de antemão o tempo da viagem e apenas nos entediamos quando a espera parece longa, aproximadamente às 4 horas de viagem. Se vamos viajar por 2 horas, o tédio nos faz companhia a partir de 40 minutos. Prever um acontecimento é nos preparar para ele. Uma ilusão de dominarmos a sensação do tempo.
“[…] No fundo, só existe mesmo o presente da existência. Ou seja, não é o tempo que passa. São as coisas que passam no devir infinito do mundo. […] o tempo é a ideia que descortina melhor o modus operandi humano, ou seja, mostra a forma como o nosso espírito funciona, como representamos as coisas, como conhecemos o mundo e como o retemos e o reelaboramos a partir de nossa psique. De fato o mundo será recriado em nosso espírito; algumas imagens ficarão retidas como pontos de luz na escuridão, outras se perderão ‘como lágrimas de chuva’. É verdade que os vestígios de nossas pegadas são apagados pelo vento… O que resta em nós é apenas a impressão mais ou menos vívida dos momentos que já não existem mais’. (Regina Schöpke, p.11-12). Esta longa citação possui aqui crucial importância por reunir, de modo poético, questões que são tratadas em minha produção. Na exposição ‘Chronologia Kairológica’ (outubro 2013) o tempo aparece como protagonista de corpos acumulados; da utilização da vivência do tempo pelo Ser. No projeto ‘A Presença Fantasmática’ o tempo é aquele que recobre os vestígios, tempo que é descortinado pelo tecido da alma.” >> (Pedroni, Fabiana. Apontamentos III, resenha de obra, 26.02.2013, p.37-38).
Nos descompassos deste texto, que provavelmente deixou rastros de um tempo confuso e apenas determinado na consciência, deparo-me com palavras que já não pensava serem minhas. Onde está o tempo daquela escrita?…
[1] Guyau cita as conclusões de Wundt sobre a representação do tempo de modo mais longo ou curto a partir de experiências psicofísicas. 0,72 segundos é o tempo cronológico de duração para reproduzir uma memória ou representação; 0,75 segundos é a duração de um passo em marcha rápida. Então é “[…] pela duração do passo no espaço que medimos o tempo”. (p. 120)
[2] “A influência da espera sobre a duração aparente é bem conhecida. Se a espera parece longa, é porque ela é uma série de decepções, de ainda não. Nosso desejo, juntando-se à representação do objeto esperado […] tende a nos figurar o futuro como presente, e como gostaríamos que ele se realizasse imediatamente, pulamos sobre os intermediários e figuramos a distância como transposta.” (p. 122-123) “O futuro, na origem, é o devendo ser, é aquilo que eu não tenho e de que tenho desejo ou necessidade, é aquilo que eu trabalho para possuir.” (p. 69)
[3] A duração é medida segundo sua relação com o espaço, entre a ordenação das atividades e percepção de diferenças que constituem o dia de uma pessoa. Quando o dia é vazio, entenda aqui “dia” como as 24 horas marcadas no relógio, e os dias que se seguem são tão vazios quanto, a diferenciação entre um ano e outro diminui. Os poucos momentos marcantes e memoráveis que aproximariam o sujeito de uma ideia de tempo “comum”, reduz um ano à um mês, e uma década à pouco menos de um ano. Ser ativo, criar memórias é dar tempo ao espírito. “[…] o sentimento do tempo provém, em parte, do sentimento da diferença […]” (p.78). “[…] medimos o tempo pelo número das sensações […]”. (p.107) “Você quer alongar a perspectiva do tempo? Preencha-o, se puder, com mil coisas novas.” (p. 127).
[4] “[…] julgamos o comprimento do tempo decorrido através da série de lembranças que intercalamos nele.” (p. 129)
[5] “Em uma massa absolutamente homogênea nada poderia dar nascimento à de tempo: a duração só começa com uma certa variedade de efeitos” (p. 59).
[6] “Não existe, na edição original, o oitavo item ou qualquer referência a essa lacuna. (N.T.)”. Curioso, muito curioso.. sabendo que nós é que criamos a história, as associações, diria que é um teste a nossa atenção. Manipulação dos números à casas decimais?