Texto de Fabiana Pedroni.
Há algo mais íntimo que tocar e ser tocado? De participar de uma relação sinestésica em que o prazer possa vir de uma simples sugestão e/ou expectativa?
A intimidade entre dois entes nunca foi tão clara para mim. Já me disseram que cada um tem seu tempo para encontrar uma nova “zona de conforto” após deixar a casa materna. Afinal, a relação que se estabelece com a cidade natal é forte e bizarramente contraditória (já que partimos e não voltamos rapidamente por algum motivo). Esse tempo parecia jamais chegar… encontrei, sim, locais agradáveis, espaços de passagem, espaços de compra, espaços de permanência, mas ainda assim, faltava o espaço de intimidade. Aquele em que tudo remete a trocas, em que há um toque leve de aspereza para se sentir vivo, um cheiro de tempo e o mais importante, o “que” de memória. Se a busca, inconsciente ou não, inclui um sentir-se íntimo do espaço, a arquitetura, num sentido amplo, seria uma arquitetura da memória-afinidade. Trata-se de todo um conjunto de fatores que culminam no suspiro “agora posso sentar-me”.
Algumas obras de arte fazem isso com a gente. Estendem o tempo, nos chamam a sentar num banco e a li permanecer até que a satisfação chegue com aquele abraço silencioso . Daquela intimidade em que você precisa olhar para trás antes de sair da sala, porque pode ser que nunca mais a veja e a sinta, não do mesmo modo. Quando penso neste comportamento, logo vejo um gatilho de memória que norteia a experiência. Se em Entremeio (Lea Van Steen e Raquel Kogan, Itaú Cultural) o gatilho era o encantamento pelo fogo, por uma história de infância vivida na roça, K 05_still femmes (César Meneghetti, Paço das Artes) me toca pelo olhar do outro. A sugestão destas obras, aqui, vem apenas da ideia do suspiro. Não que não tenha me maravilhado com outros trabalhos nos últimos dias, pelo contrário. Apenas por serem de suportes bem diferentes do que hoje tento falar com certa dificuldade, porque o que é íntimo, custa a ser exposto.
E justamente por ser tão confusamente íntimo, às vezes sinto necessidade de retornar aos espaços sozinha, para, com o devido tempo, sentar-me e suspirar sem culpa.
A princípio imaginei ser o suspiro correspondente ao fato de ser uma casa. Não é todo dia e em todo lugar que você se propõe a visitar uma exposição de arte e encontra uma memória. O conforto poderia estar contido na função de memória e nas entrelinhas do espaço arquitetônico da Casa Contemporânea, mas não. Como eu disse, há uma série de fatores. Nem toda casa se assemelha a um lar, e cada lar é individual e depende da confiança do sujeito do sujeito nesse ente.
Por isso, repito a pergunta: Há algo mais íntimo que tocar e ser tocado? É aquele sentimento de ter as pedras sob o sapato, lhe empurrando para serem percebidas. Da combinação branco-azul, própria das casas do interior, nas quais você mal entra e já sente o pisar sobre a madeira.
Num espaço tão íntimo, que a cada momento revelava (agora sim, num passado de experiência já vivida) uma nova memória sensorial esquecida, o que mais poderia juntar-se para causar aquele tão esperado suspiro de intimidade? É nesta resposta que se concentra todo meu espanto, toda minha ingenuidade por ainda não ter associado tão claramente a ideia de prazer com o conjunto casa-pesquisa-conversa-arte-livro. Sim, é uma zona de conforto, mas não daquelas que adquire sentido negativo e sim daquelas… do suspiro íntimo. Ainda não encontrei, nem sei se pretendo, uma palavra que substitua esse suspiro. Por ser uma sensação tão física e própria do sentir-se a vontade… parece impossível traduzir.
Havia uma exposição de arte. Haviam livros de artista. Era uma conversa sobre fazer e trocar. Porque os livros tem disso, são intermediários do conhecimento, do toque, do interesse, das pessoas, do olhar, de tudo que é (para mim) envolvente.
As palavras de Edith Derdyk tornaram essa relação de prazer ainda mais evidente. Uma evocação sensorial que dança numa coreografia particular da descoberta do objeto, a meu ver, de um corpo-livro. Ainda amadora (de pouca experiência e de amor em excesso), toco este corpo com uma expectativa de sentidos – quero saber da encadernação, da costura, da lombada, e de todos seus “ossinhos”. Mesmo que o toque relativo ao tato não seja permitido, ainda adentramos pelo objeto de mil maneiras. “O livro de artista é aquele lugar em que pensamos o livro como espaço poético (…) com todas as questões que especificamente ativam” (Derdyk). O livro passa de um espaço mais funcional (de divulgação de conhecimentos pela palavra/imagem, mais clara em, digamos, manuais de instalação de software) para adquirir uma potência poética. Essa transição é tão leve que as palavras ainda permanecem, ou não, mas tudo torna-se linguagem poética.
Então, um livro de artista pode falar de livros, sem ser um livro fisicamente. Trata-se de uma natureza tão diversificada, de tantos meios, que se torna complexo dizer exatamente o que seja um livro de artista (Luise Weiss). Ele pode não ter páginas, pode lidar com outras tecnologias (vídeo, fotografia, holografia, projeção, maquinarias, etc.), pode ser de papel, mas dele escapar, pode ser um objeto, pode não ter palavras, pode ser uma dobra, pode ser tecido, pode ser cera, pode ser linha, pode ser metal, pode até ser vento. O livro de artista pode ter muitas faces, mas uma coisa é inegável, ele busca uma troca íntima.
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Situação: Conversa com artistas (22.03.14) – “Livro de artista: entre o ateliê e a sala de aula” [Edith Derdyk, Luise Weiss, Ullysses Bôscolo].
Evento da mostra “Livro de artistas: produção, pesquisa e reflexão” na Casa Contemporânea, curadoria de Luise Weiss e participação dos seguintes artistas:
Adriana Dias, Ana Almeida, Ângelo Cappellari, Célia Alves, Daniela Avelar, Danilo Perillo, Fabíola Notari, Lilian Arbex, Lúcia Loeb, Luise Weiss, Márcia Gadioli, Márcia Rosa, Márcia Rosenberger, Maria Irene P. Guerreiro, Marilde Stropp, Marília Lourenço, Marisa Garcia de Souza, Norma Vieira, Paula Éster, Rafaela Jemmene, Rosa Esteves, Ulysses Bôscolo, Wagner Priante.
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