[texto de processo] Cartografias holográficas sentimentais

(Sentimental Holographic Cartographies – SHoC)

Quantas razões para detestar a tecnologia! Principalmente a móvel, a touching, a 2.0! É angustiante a distância física dos aparelhos. Não encontrar o celular no bolso e não poder se lembrar onde ele pode estar, pois lá se encontrava toda a agenda: o antes e o depois. Perder o iphone durante a viagem e descobrir que ele não possui um sistema de retorno automático (automatic return system- ARS). Esquecer o modo como se segurava a caneta quando criança, embora seja certo que não era exatamente como os demais colegas de classe seguravam. Tentar apontar um lápis e promover o encontro entre a falange do indicador e a lâmina do estilete.

Cartografias holográficas sentimentais

Isso faz pouco sentido. Todas essas relações mecânicas não passam da camada menos útil da situação. Esses incômodos são como o âncora do telejornal que sorri para previsão do tempo, depois da criança ter ficado dois anos acorrentada no quintal de estranhos. Não faz sentido odiar o âncora, mas, é a primeira postura de um cidadão revoltado. A segunda é odiar a emissora de TV. Dificilmente sua revolta atinge as raias da destruição. Quantos aparelhos de televisão são defenestrados diariamente? Poucos.

O celular pouco importa. Mas, encerrar a comunicação é desesperador. Estar fora da Rede é correr riscos incalculáveis. Sem sinal, sem acesso, sem tráfego de dados, sem alguém em contato direto. Não interessa você se está em uma grande metrópole. Talvez fosse melhor estar perdido na floresta. Isso justificaria a queda da Rede. No instante em que a conexão se encerra, comece a cogitar que o planeta está sob uma invasão alienígena. É uma possibilidade razoável quando se mede a extensão de nossa incapacidade de sobrepujar essa tecnologia capenga com a qual estamos sempre a nos maravilhar.

Sequer podemos nos comunicar telepaticamente! Carregar um corpo estranho no bolso e erguê-lo com as mãos até a cabeça para que possa ouvir “a voz que vem de longe”. A voz soa distorcida. Grandes volumes de metal cortam os céus enquanto consomem uma quantidade impensável de energia, a qual por sua vez consome uma quantidade impensável de minerais. Deslocamento espacial! Nem mesmo deslocar o corpo no tempo como um dado imaterial nos é possível. Retire um parafuso do carro e todos morrem. Retire um fio do Mac e todos morrem. Tecnologia capenga.

Cartografias holográficas sentimentais

Resfriar o disco para que não haja pane. Esquentar o alimento para manter a flacidez. Como não se constipar assim? Não é uma vida completa no mundo onde os dedos se movem, as costas doem e a garganta arranha. Mas é saudável ter vontades além da fome, do sexo, da sede, do abrigo. Quais seriam essas vontades? Fumar, beber, tomar sorvete de pistache, roer as unhas, comprar sapatos. Não é uma vida completa no mundo onde as imagens saltam, giram, somem e reaparecem como mágica (como se não fossem necessárias pilhas de discos-rígidos girando ininterruptamente, e sugando as turbinas de hidrelétricas, de termoelétricas, campos eólicos e dos mares contaminados de Fukushima, para que esse universo zerodimensional exista). Mas é saudável ter intenções além de concordar, discordar, compartilhar, apagar, bloquear, convidar. Quais seriam essas intenções? Duvidar, ficar na preguiça, não saber, se perder, optar por NDA (nenhuma das anteriores).

O mundo real tornou-se o holograma dos gostos retirados da estante de discos. É o espelho de opiniões expressas em provas objetivas. Sair do ciberespaço? Para isso será necessário escolher sempre entre duas opções. E “você tem certeza que quer fazer isso? <sim> <não>”. A visada crítica foi excluída da interface. Medir a realidade pela contagem entre os que endossam e os que divulgam, os que reprovam e os que apagam, os que ignoram e os que viralizam, é uma estatística tão razoável quanto perguntar sobre o significado de Java. Tampouco é proveitoso observar as trocas de informações entre os “nós” (pessoas virtuais) que permutam dados copied-borned na Rede, pois suas ações já estão circunscritas nessa mesma interface obscura.

A teoria dos grafos aplicada a cibercultura não passa de uma engraçada playlist automática do Youtube. Não diz muito sobre o conjunto de qualquer coisa. É preciso mais. Pois, o poder da divulgação de opiniões mata pessoas, ou melhor, a predefinição de opiniões nas interfaces do ciberespaço mata pessoas.

Cartografias holográficas sentimentais

É necessário falar de como o costume de escolhas “de provas objetivas” da comunidade virtual leva a opiniões extremistas? Quando não lhe é permitida a escolha por NDA, tudo que for escolhido consiste em prescrição da interface. A Rede mudou o modo de ser no mundo. A Rede mudou a própria concepção de natureza, construída em laboratório ou não. Tratamos agora com um laboratório que cria contextos ideais simultaneamente para a ciência e para a política. Morte da cultura? Morte de Deus? Morte do sorvete de pistache? Não, morte de pessoas.

Quantas cabeças cortadas e explosivos detonados vale um clique de aprovação na comunidade virtual? Cálculo complexo. Diversas revoluções (micro e macro, armadas e floridas) explodem mundo afora. Tais revoluções são sujas, fedem, sangram. Em suma, não servem para a cibercultura, se forem tomadas como realmente são. Para serem aproveitadas telematicamente, devem ser transformadas em manchetes (texto e imagem). A assepsia do ciberespaço nos dá a impressão de que elevar uma notícia ou uma opinião sem decompô-la e acrescentar-lhe conteúdo crítico em nada influencia nas gargantas cortadas de egípcios. Ledo engano. A simples divulgação, a simples retificação, a simples negação, são modos extremamente eficientes de peneirar conteúdos mais emaranhados que seus phones de ouvido e mais férteis que o húmus amazônico, até que reste apenas a pureza de um sim e de um não.

Tristemente, essas são as vias de fato, como já mostrava a dupla “Brócolis” (Leandro Vieira e Mariana Meloni) em Hello (2003) <http://www.arteria8.net/&gt;. Ao acessar o pequeno vídeo em looping o espectador se depara com a imagem de uma mulher apavorada diante de uma mão armada. A pessoa que segura a arma encontra-se fora do quadro de filme. A mensagem que completa o vídeo diz “Oi. Isso é um novo jogo especial. Esse jogo é minha primeira obra. Você é o primeiro jogador. Espero que você goste”. A consequência é inevitável. Jamais deixará de ser uma brincadeira. E como em toda a brincadeira, a perversidade deve estar nos ossos.

Num mundo sem meio termo nem NDA, as alternativas <sim> e <não> reduzem-se a uma só, a qual é bem pior que a pura violência: a violência pura. Conclusão, a comunidade virtual é o purgatório dos terroristas cenográficos exterminados pelo Rambo. Sem dor, sem sangue, sem cheiro e com um mix 90’s+hipster_tribal+2000’s+soft_indie rolando na aba ao lado.

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