Texto de Rodrigo Hipólito
O sofrimento está presente em todos os ambientes e na experiência de praticamente todas as pessoas. Mas, parece ser impossível notá-lo coletivamente. Sabemos que ele existe, principalmente quando o sentimos. Sabemos que ele existe mesmo sem o sentir, porque o “Extra” serve nosso café da manhã todos os dias. Sabemos ainda mais que ele existe porque acreditamos que seja errada a sua existência.
A dor simulada é um pão sem fermento, embora ainda seja um pão nutritivo. A sinceridade de Warhol nos leva bem próximo do procedimento de comunicação da dor e da revolta atual. Para o serígrafo das vitrines floridas, a Coca-cola não era um mal, pois demarcava uma proximidade única entre todos os indivíduos do planeta: diante da Coca-cola, não há diferença entre o presidente dos EUA e os trabalhadores do porto; ela não mudará na dependência de seu público. No entanto, quando esse mesmo processo se dava com corpos mutilados por acidentes de carro (exibidos na primeira página dos jornais), ou com líderes poderosos, ou com personalidades públicas que espirram notas de U$100, o risco e a crítica davam um giro de 180º sem mudar de meio.
O nivelamento do horror, do poder, do sucesso, da angústia e do sofrimento faz com que ele pareça ser compreendido da mesma maneira por todos. Fazer com que o sofrimento seja consumido como Coca-cola é o melhor modo de acalmar cavalos esfomeados e desorientados. O melhor de tal tática é que os próprios cavalos podem empreender seu adestramento, assim que forem viciados.
A rede virtual baseada em compartilhamento trouxe o vício de transformar a dor em pôsteres de cultura POP. A dor atraente e facilmente simbolizada necessita de arejo constante, necessita de brilho e esquecimento simultâneos. Os estúpidos bem-intencionados, criadores de mártires na cibercultura, são tão elogiáveis quanto os “pastores” do horário nobre, quanto os repórteres do desespero ou os telejornais sanguinários do meio-dia. É uma atitude de excluir-se da realidade. A realidade não precisa de mártires para representar suas contradições, ela é o puro risco de que dê errado (ou certo). Esses são os mártires que têm seus cadáveres violados para que todo seu sofrimento seja sugado e trocado por valor comunicacional. O mix entre o mártir e a proliferação do medo pelos próprios agentes interessados em propagar a coragem somente é possível no mundo fortemente influenciado pelo compartilhamento maquínico de dados.
O Aparecimento do “mártir-manchete” serve bem para desviar as atitudes antes que elas brotem. Permitir que alguém sofra em seu nome, já que você é covarde o suficiente para não resistir, não é uma atitude da qual qualquer um deva se orgulhar. Embora o sofrimento de muitos ocorra todos os dias, requisitar as possíveis benesses da morte de desconhecidos é das atitudes mais mesquinhas que se pode encontrar amontoadas na historinha “ocidental”. Os cristãos já possuem seu “justo”, os anticristãos fingem recusá-lo, todos os demais “ocidentais” nomeiam novos sofredores em cada esquina.
A estratégia para que isso seja feito é baseada no pretérito. O sujeito que já sofreu, que já não pode falar, é posto como porta-voz de indivíduos amedrontados, incompetentes e vitimados. Não surpreenderia encontrar o rosto de um homem bomba estampado em bandeiras dos movimentos “antiviolência psicológica nas escolas”. Não é com mais um ícone, mais um sacrificado, mais uma figura sagrada, que chegaremos à compreensão dos erros do nosso caminho. Existe um ponto em que a didática pode se tornar manipulação.
Quem pensa redimir-se com a adoração e propagação dos “mártires-manchete” se engana. Quem propaga a dor alheia, dissecada, curtida ou empalhada, apenas compactua para que o mercado das manchetes macabras se estenda. Uma surpresa a menos seria ver as grandes e médias redes de jornalismo abrirem seus próprios departamentos para a criação e execução de crimes macabros e acidentes políticos (DepCEXMAP).
Se, antes, os mártires mudavam a atitude dos coletivos, hoje, eles retificam sua posição de vítimas, explorados e escravos, e impedem sua reação prática. O que seria reação prática? Cuidar para não exercer o papel de vítima como se você o tivesse escolhido, não espelhar a derrota dos “mártires-manchete” e não basear sua luta por justiça apenas no desejo de vingança. O fim da opressão não encontra seu fim da linha com o sofrimento dos opressores, mas com a libertação dos oprimidos.
As nefastas “ordens do dia” são muito bem executadas: Torne o indivíduo que sofre uma bandeira, pois isso faz com que todos os outros não notem que são iguais a ele. Torne o problema um bordão fácil de gritar em conjunto nas ruas e, antes disso, nas redes, pois assim ele passará a ter o mesmo efeito que as piadas dos programas de sábado à noite. A classe média sofre, é difícil ser patrão no Brasil, os cristãos são perseguidos, um cotista roubou minha vaga, imposto é roubo, as feministas tiraram meu emprego. Escolha o seu lema. Simplifique a existência do sofrimento ao ponto de poder repeti-la em gifs animados e estampas de camisetas, pois assim todos acreditarão que esse sofrimento existe, e acreditar é menos perigoso que duvidar.
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