Que acadêmico nunca se deparou com uma língua incompreensível mesmo em livro traduzido para sua língua materna? Quem nunca odiou o sujeito que deixou citações em latim num livro traduzido para o português? Há algumas pessoas que tem linguagens inteligíveis, mas descobrir o quanto somos apegados a nossa língua materna é realmente desesperador. Passamos grande parte de nossa vida insistindo em aprender novas línguas por exigências acadêmicas e a outra parte apenas ouvindo sons e admirando a forma de algumas palavras. Uma querida professora de francês disse-me uma vez que somos denunciados na contagem mental de números. Some 4+24 e talvez pensará em português, agora conte regressivamente de 28 a 20 e aí estarão as grades da língua materna. E não se sinta um grande linguista por se controlar e contar em inglês, francês, espanhol, coreano, etc. Afinal, já estamos falando sobre linguagem. Iluda-se, eu também sorriria.
Mesmo um conhecimento considerado avançado em outra língua pode fazer-nos um completo viajante se estiver em seu país de origem. Não estamos acostumados a ouvir mais que 2 ou 4 horas de palavras tão pesadas e exigentes de raciocínio. Se me disserem “gato”, pensarei em pelo, escada, animal, fofura e por aí vai. São associações quase instantâneas e que podem ficar em potência, caso não me seja admitida nenhuma associação. Seria difícil separar a fonética de todos os sentidos possíveis que a forma destas letras unidas possa indicar, como conseguiria caso ouvisse chat (um desavisado logo associaria as antigas salas de bate-papo na internet).
Fato que nossa relação com a língua materna é tão profunda que até nos esquecemos de sua existência se não nos deparamos com outras formas de expressão. Ficamos imersos em nosso hábito até um mínimo choque com as fronteiras que o delimita. Ontem mesmo estava na biblioteca vasculhando a sessão de livros sobre imagens medievais e encontrei um exemplar sobre caligrafia árabe do século XII-XIII. Abri-o e me espantei pelo quanto a forma “salta” das palavras. A intimidade com o alfabeto latino faz com que este já não tenha um corpo (forma) tão aparente quanto o contato com um alfabeto desconhecido. Há algumas experiências “bobas” que indicam essa familiaridade, como retirar as vogais das palavras ou trocar algumas letras e mesmo assim conseguir encontrar o sentido. Ou ainda quando nos deparamos com este tipo de brincadeira linguística: “The alcohol triplica le capacité di parlare other languajes.” Mas e se tentássemos ler isto?
الكحول ثلاثة أضعاف القدرة على التحدث باللغات الأخرى.
Ou isto:
Parece uma imagem completamente diferente, mas é um fragmento ampliado. Fragmento de imagem.
Simples experiências costumeiras, sobre as quais não costumamos pensar exatamente por serem costumeiras. O tempo para pequenos encantamentos e descobertas vai se tornando cada vez mais raro.
Com mais doses diárias de atenção ao brilho das formas talvez me divertisse em criar traduções narrativas para o Enûma Eliš ou um novo Codex Gigas (ainda mais divertido, quem sabe uma versão dos comentários ao Apocalipse em sumério). Acho que na próxima ida à biblioteca entrarei na sessão de livros nipônicos, quero saber que tipo de imagens me aguardam.
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