Texto publicado originalmente em: Jornal A Gazeta, Caderno Pensar, Vitória, ES, p. 16 – 16, 07 jun. 2014.
O que ocorre com um trabalho de arte após mergulhar nas entranhas de um acervo público? É certo que o contexto no qual foi apresentado primeiramente jamais poderá ser reconstituído. No caso do acervo da Galeria Homero Massena, tal condição surge em alto-contraste.
Com seus trinta e sete anos de atividade, a GHM acumulou uma quantidade considerável de peças que representam esforços poéticos iniciais de várias gerações de artistas. Muitos sucumbiram diante da “contra-poesia” do quotidiano funcionalista ou passaram a “carregar os pianos” da produção cultural. Suas doações são, muitas vezes, difíceis de enquadrar em qualquer retrospectiva, pois, ao abandonarem suas pesquisas plásticas e conceituais, deixaram também suas obras para o limbo histórico dos “sem catalogação”. Talvez essa seja a principal razão para a curadoria de acervo prezar por nomes reconhecíveis, mesmo que sejam nomes espaçados por décadas. Os nomes sublinhados pelas instituições da arte são menos alienígenas para uma mostra de acervo. Como peças razoavelmente independentes de um quebra-cabeça mutante, os nomes mais relevantes da coleção funcionam como fotografias de líderes imponentes que se portam bem uns ao lado dos outros.
De todo o modo, quando embalsamadas na reserva técnica, tanto os trabalhos de artistas “com continuidade” quanto os vestígios dos desconhecidos dividem a mesma trama mumificadora. A estranheza de uma retrospectiva de acervo está no fato de os trabalhos não poderem mais ser peças independentes, mas, ainda assim, estarem para sempre solitárias em sua história.
As vinte obras apresentadas na exposição “Papel do Acervo” certamente não representam um todo, que se iniciou com a doação de Evandro Carlos Jardim antes mesmo da existência da GHM. Mas, ainda que não constitua um todo, esse conjunto de trabalhos sobre papel, disponível para o público até o dia 14 de junho, aponta para uma diversidade tão representativa quanto a distinção entre as materialidades de Frans Krajceberg e Kenia Lyra.
Na sala de exposições que já se tornou uma segunda casa para os artistas baseados e engendrados nas terras do Espírito Santo, o passeio é mais familiar e despretensioso que em um repetitivo arranjo do museu passadista. Abrir o “Papel do Acervo” da Galeria Homero Massena assemelha-se mais a uma tarde de lembranças na qual são espalhadas fotografias novas e antigas sobre a mesa da sala. Ali descobrimos como se vertiam alguns parentes distantes e mesmo como eram diferentes nossas próprias roupas poucos anos atrás. Para a cena artística local, a sensação de deter-se diante do desenho, da gravura e da fotografia quase sempre escondidos do público é de encontrar traços que podem estar em sua genética sem antes se ter reparado. Já para quem se compreende externo aos processos de produção a curiosidade pode ser tão difícil de surgir como se estivesse de visita na casa dos avós alheios, ao menos até tomar a primeira xícara de café.
Através do “clima” próprio desse espaço (pois “clima” é algo único para todo o espaço de arte) as obras escolhidas por Paula Nunes, José Augusto Loureiro e Franquilandia Raft permitem disparar debates que vão dos limites estéticos à crítica institucional. Lembremos nesse momento que os riscos corridos pela GHM e a Casa Porto das Artes Plásticas foram amplamente apresentados e discutidos nos primeiros meses deste ano. A existência diversa desses dois espaços, hoje, demonstra que os artistas que vivenciam nossa cena cultural são também “patronautas” atentos a política e economia da arte que perpassa a todos.
Então perguntamos, especificamente, para a mostra: e quando o artista não tem mais uma obra de arte para chamar de Sua? Como numa “roda dos expostos” pública e espelhada, a galeria recebe seus órfãos de bom grado e os mantém em cativeiro climatizado (ou não) para servirem a memória de nossos processos poéticos. Essa seria uma boa conclusão. Embora discussões como o desenvolvimento da técnica de um artista através das décadas, mudanças temáticas, variedade de tratamento do suporte, expressões e representações culturais mantidas ou esquecidas, prazeres de deixar o Eu desenhado no futuro, numa retrospectiva tudo se encontra submetido ao valor da localização no interior do conjunto.
No sentido de tornar os valores reconhecíveis, o exercício de construção de retrospectos é um dos primeiros passos para o refinamento do acervo. Somente através da constante análise de sua genética será possível dispensar os apêndices e compor uma política limpa para aquisições e manutenção. Nem todos os que chegam devem ficar, porém, aqueles que ficam devem ser capazes de sustentar-se mutuamente.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.