
Coisas estranhas no deserto 02. Rodrigo Hipólito. Fotografia impressa em jato de tinta e intervenção manuscrita, 2014.
Texto de Rodrigo Hipólito
Era o posto 413A, ou algo parecido com isso. Já havia perdido a conta. Não se lembrava mais de como era estar em casa e cuidar de suas coisas. Isso fazia falta.
Cada veículo atulhado que parava para abastecer, com metal a ranger e peças a chacoalhar, fazia pensar nas ligações que perdia por não poder ficar um dia extra. Os motoristas não conversavam, mas restava a certeza de que sofriam do mesmo mal. Não um arrependimento pelos crimes cometidos nem um choro solitário. A desolação e o desconforto de encarar um mundo impossível de organizar é que fincavam a agulha profundamente.
Poeira, engrenagens quebradas, correias secas e vidros tão arranhados, que eram como paredes brancas através das quais se adivinhava uma batida libertadora. Ainda assim, esse acidente jamais dizia olá. Eram todos medrosos e por isso mesmo encontravam-se naquela condição.
Por vezes, pensava que a proibição de gerarem raízes não tinha relação com os talentos para matar, enganar e roubar. Essa extirpe da qual fazia parte estava condenada a jamais fixar residência, porque sua incompetência para gerir a própria vida surtia um efeito maléfico nos demais.
Esperou a luz de carga indicar “completo” e afastou-se do meio dos grandes pneus protegidos por correntes. Por um momento o motor pareceu falhar. Pensou em como seria se o caminhão quebrasse e o motorista tivesse que descer e pensar em um modo de resolver o problema. Por cinco minutos, talvez menos, debateriam a possibilidade de não sair do lugar. Então, não sentiriam nada e, antes que as pálpebras descessem e as línguas se esticassem, teriam virado duas bolas de carne e sangue espalhadas pela lataria. No seu caso, algum sangue e pouca carne.
A primeira vez que tentou tirar a coleira pode ver que uma fina fibra entrava pela traqueia e lhe imobilizava, inclusive a respiração. Outra vez encontrou um corpo na estrada e parou para observar o que poderia ser uma morte serena, coberta daquilo que não era neve. Logo, sentiu uma pulsação crescente na altura dos pulmões, uma dor que queimava como gelo e correu o mais rápido que pode na direção que devia seguir.
O motor estalou e grunhiu e as dezoito rodas passaram rente a seu peito. A poeira branca, fina e gelada se ergueu, cobrindo até mesmo a cúpula metálica que guardava os geradores do posto. Não havia poeira na cidade. Não sabia para que lado era a cidade.
Na medida em que a poeira baixava, notou a silhueta arrastando-se a distância. Suspirou, calçou as botas grossas, ajeitou o sinalizador na cabeça e partiu na mesma direção em que seguia o caminhão. Não olhou pra trás, não tinha mais ímpeto para isso. 18 quilômetros à frente, o 414A, ou B. Depois de dois anos calado, só agora constatava que os nomes e números faziam sentido apenas para os outros. Não possuía mais outros.
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