Porta sem Aldrava IV

Cyborgs e Androids 01, 2014.

Cyborgs e Androids 01, 2014.

“A questão de saber se a máquina é ou não humana está, evidentemente, de todo resolvida, ela não o é. Só que é preciso também saber se o humano, no sentido em que o entendem, é assim tão humano.” [1]

Os cyborgs sonham com…? [2]

Pense que anexamos ferramentas ao nosso modo de ser desde que somos humanos. A linguagem pode ser considerada a primeira dessas ferramentas, por mais primária que tenha sido. As ferramentas servem para comunicar, para informar. Informar=colocar forma sobre a matéria. Matéria= ύλή= a madeira guardada para ser tornada coisa pelo marceneiro.[3] Comunicar é informar coisas, no caso da linguagem, informar circunstâncias.

Sob essa ótica, a ideia de “homem natural” é uma falácia. O limite dos nossos corpos foi vencido ao pronunciarmos o primeiro som conectado com um fenômeno, apenas pelo fio de ouro que é nossa vontade de significar. Nunca mais nos livramos dos vestígios deixados por cada etapa (tentativa) de aprimoramento da comunicação. Mas, há de se perceber que não há diferença considerável entre a fala e uma alavanca. Ambas contratacam, a linguagem e a alavanca.

Falar nos designou um caminho, poder erguer pesos insustentáveis para nossos primeiros braços, ou derrubar frutas que nossas primeiras mãos não alcançariam, ou cortar a carne fibrosa que nossos primeiros dentes rejeitariam, esses poderes também designaram caminhos. Desejamos/necessitamos de uma fruta, mas não a alcançamos. Tomamos de um galho longo e derrubamos a fruta. Num segundo momento, não importa a necessidade nem o desejo, derrubamos a fruta porque podemos. Todas as outras possibilidades que não envolveriam a tomada daquele instrumento são impensáveis.

As ferramentas nos definiram, nos lapidaram, nos programaram e nos alimentaram. Então, sabemos uma das coisas que certamente os cyborgs comem: mecanismos de informação. Além disso, provavelmente possuem preferências por alguns temperos. O digital tem incrementado o recheio já há algumas décadas. Os gostos mais vanguardistas tem experimentado introjetar toda a sorte de sinais para comunicarem-se mais confortavelmente não apenas com os sujeitos-máquinas, mas com os objetos inteligentes e mesmo com aqueles que ainda não se manifestaram. [4]

Na prática, jamais houve uma máquina puramente sintética nem um ser humano puramente orgânico.  Nós vivemos “com” a tecnologia. Jamais existiu ser humano sem tecnologia. Continuamos a estender nossos braços, dedos, pernas, unhas, olhos e cada vez mais nossa cognição. O processamento de dados realizado pelos computadores não é algo externo a nós, é parte de nós.[5] A computação é uma extensão de nossa capacidade de processamento. Encontramos modos mais eficientes de preservar e acessar a memória que a repetição baseada na efemeridade.

Se isso tudo funciona? Tão bem como a linguagem sempre funcionou: cheia de remendos, recortes, apagões e alergias. A todo o momento nossas mais novas mãos deixam os copos caírem. Descobrimos, depois, a falta de certa enzima na digestão que afeta fortemente nossa coordenação motora. Uma vez ao ano precisamos trocar a lentes dos óculos por conta de alguns pixels mortos ou porque algum distraído fincou um garfo na tela. Deslocamos o pulso ao abrir o vidro de azeitonas escuras sem caroço simplesmente por não sabermos exatamente como segurar a tampa. Nossos joelhos falham no último degrau da escada e morremos pela queda apenas por não ter lido corretamente as instruções do fabricante que diziam para não ficar sentado mais de oito horas por dia.

Tudo funciona muito bem. Melhor que isso só com um design baseado num código que se autoestruture na dependência das circunstâncias. Felizmente sabemos que isso é algo muito parecido com o famoso DNA. O código que não informa circunstâncias, mas sim as cria.

Nós, cyborgs, sonhamos com circuitos sangrentos.

[1] LACAN, Jacques. Seminário II – O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicnálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, apud ÍTALO, Adriana. Arte e Natureza: circuitos filosóficos integrados, tese de doutorado em Filosofia. Rio de Janeiro: PUC, 2004, p. 12

[2] Pensando em  MORSE, Margaret (1994) “What Do Cyborgs Eat?: Oral Logic in an Information Society,” Discourse: Journal for Theoretical Studies in Media and Culture: Vol. 16: Iss. 3, Article 7.

[3] FLÜSSER, Vilém. O mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Organização Rafael Cardoso. Tradução Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 23.

[4] Ver LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.

[5] Ver SANTAELLA, Lucia. A Ecologia Pluralista da Comunicação: conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010.

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