[crítica] Abra os olhos e divirta-se

experiência Água

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Uma espera escrita a partir da experiência Água, performance de Vic von Poser e Herbert Baioco presente no espaço Satyros (Praça Roosevelt, 124, São Paulo), em 21 nov. 2014.

“Espero que vocês tenham se divertido, porque nós nos divertimos muito” – Herbert Baioco ao final da performance. Devo dizer que há um embate caloroso entre o fazer arte e desfrutar de arte. Se a diversão de um lado é clara, na experimentação e no controle, o impacto da espera e do experimentar indiretamente é uma contradição. O que seria de nós, experimentadores, se não pudéssemos compartilhar minimamente a nossa própria espera. Se não pudéssemos nos questionar enquanto objetos de uma performance que lida com controles e descontroles. “Criar narrativas” – é a felicidade da contradição da angústia por não poder tocar na matéria. Hoje ouvi, em contexto pouco distinto do universo artístico, uma frase que fez todo sentido: “Não é porque se deva subtrair, que precise ser uma amputação”, logo, não precisa ser traumático. É realmente uma contradição. [1]

A performance, muito bem nomeada também como experiência, lida com ações projetadas. Sob os efeitos de um retroprojetor, cria-se um ambiente de acontecimentos. O universo torna-se reduzido a uma vasilha de água e objetos cotidianos, xícaras, pires, travessas, gotas de pigmento, nada tão incomum. E então começa nossa contradição. A experimentação projetada cria camadas, surgem imagens quase místicas, reforçadas pelo embaço de leves nuvens umidificadas. Imagens envolvidas por uma paisagem sonora que torna-nos também projeção. Somos diluídos na ação performática. Há um misto de tensões criadas em cada movimento que às vezes são mais rápidos ou mais lentos do que desejaríamos. A contradição se torna aparente entre uma satisfação de uma beleza que parece inalcançável e uma fúria de nossa insignificância diante das mãos e dos desejos daquele que controla a água.

E, então, esperamos, e nos perguntamos qual é o centro dessa imagem mística.

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[Aqui eu comecei a te ver]

“Você não pode fazer isso.”

Todo tipo de castração demora a ser aceito. E quando o é, gera questionamentos tão amplos, que até se esquece da origem da privação. [O que é mesmo que eu não podia fazer?][2]

Demora-se para aceitar que há situações que não podem ser direcionadas ou mesmo contornadas. Mesmo que haja o desejo de agir, não haverá acontecimento, nem reação. O jogo é simples: gire o pião e espere. Espere sob o tempo e não sobre o desejo. Não adianta pulsar as veias quando o pião chega próximo ao buraco, ou querer que ele contorne o grão de areia. Toda espera (esperança) é inútil nas circunstâncias de um universo muito maior que o pulso. A pulsação é a expressão mínima de vida, contudo, mesmo diante de sua importância, ela não possui a capacidade de nos jogar para frente ou para trás, ela expande e contrai dentro do mesmo corpo.[3]

Imagine uma pulsão contínua que leva um corpo a se jogar para frente sem nunca parar, girando em torno de si, como um pião viciado em sua aparente única função: girar. Que tédio! Aí também não há acontecimento.

A ordem aqui talvez não seja do âmbito da castração, mas da experimentação alheia. Observe, reflita, admire aquela beleza que nem sempre é possível ver apenas com o olhar. E então espere. Não no pulso, nem no desejo, apenas junto. É estranho pensar que a retirada de uma pulsão possa ajudar a lidar com nossa insignificância. É como dizem por aí, os mais moderninhos de uma atualidade caótica: a ordem é o desapego. [4]

A partir do momento em que se aprende a lidar com a mão alheia, ou ao menos ter consciência de que ela exista e que possa existir, consegue-se ver com olhos mais tranquilos o que nos foge do domínio. Até que ponto posso me iludir sobre minha atuação em um ato?[5] Não sou eu quem controla o pingo da chuva, nem a projeção em poça d’água do pássaro voando sobre minha cabeça. Controlo, provavelmente, o direcionamento do meu olhar que capta o instante tão ínfimo que não permite interferência.[6] Eu posso, claramente, adentrar na poça, torná-la enlameada e sem reflexo, mas para que? para tornar um pássaro invisível ao chão?

Há momentos em que é preciso esperar, e, então, juntos, esperamos.

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[Aqui eu comecei a me desfazer]

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“Para Fabiana,

Não temos o controle. No final, aliás, no começo e no meio também, não temos o controle.[7] Crescemos com a ilusão de que se fizermos tudo certinho, planejado, controlamos os eventos e, assim, nos tornamos os senhores da vida. Não! Não temos o controle.[8] Podemos escolher a roupa que vestir, a carreira a seguir, o que almoçar… Mas é só.[9] Não podemos controlar o funcionamento natural do nosso corpo, se ficaremos doentes ou não, se nosso trabalho renderá bem, se vão gostar da nossa companhia e nos convidar pra jantar…[10] Podemos fazer milhares de escolhas, mas não podemos controlar como elas vão se entrelaçar e como surgirão os eventos que, de fato, determinarão nosso andar. Não temos o controle real. Simples assim. E isso não é nenhuma grande descoberta. Sempre soubemos, todos. Mas porque aceitar é tão difícil e, na maioria das vezes, até doloroso? O que fizemos com o entusiasmo das surpresas? Com o conforto de sermos guiados sem nos preocupar com o caminho? Dá nervosismo ver alguém tremer na tentativa de controlar o que não se pode. Corre-se até mesmo o risco de deixar a diversão passar, a paisagem bonita ficar pra trás sem apreciarmos, quando nos contaminamos com a ideia do controle. Deixe! Deixemos.[11] Há muita beleza no “deixar”.

O avesso do controle nem sempre é descontrole. Pode ser só “não controle”! E é bem provável que a grande diversão esteja aí, no não controle, na fluidez, na permissão do se deixar ir. Quando nos agarramos à fantasia do controle, nos prendemos com força e nos mantemos de mãos fechadas.[12] Mas em mãos abertas cabe mais, cabe o mundo inteiro. Melhor o não controle, o deixar ir. Afinal, com ou sem consentimento, estamos todos indo. Então, melhor que seja divertido”.

A ideia de colaboração, a princípio, era a interferência definitiva (sem recursos e reclamações) sobre o texto de Fabiana. É como dizer: bata em mim, nas duas faces, e não reclamarei. Como controlar, manipular, sem ofender? Apenas apague! Risque tudo! e encha de exclamações, fora!! A água flui sem sabermos para onde…

[Aqui eu me despedi, depois de me deixar levar e conversar]

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Textos de Fabiana Pedroni, Ana Paula Barreto e Rodrigo Hipólito.

Ana Paula Barreto é formada em Ciências Biológicas, mestre em Biologia Celular e Molecular, doutoranda em Endocrinologia Celular e Molecular, e a partir desse instante, desdobra seu tempo entre células,  terapias gênicas e experimentações laboratoriais com desdobramentos literários. currículo lattes

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[1] Noutro dia me levaram um livro, me senti amputado. Doutra feita foi o coração, tornei-me livre.

[2] Tudo o que lhe tiravam o deixava mais leve, mais verdadeiro e mais feliz. Dignidade, trabalho, perspectiva, dinheiro, lar, chão, idade. Tudo aquilo que adquiriu após ver a luz pela primeira vez afastou-se com uma velocidade invejada pela imaginação dos físicos mais invejados.

[3] Nos dias mais quentes, caso queira se refrescar com maior eficiência, algumas regiões do corpo devem receber atenção. Áreas de maior circulação sanguínea, ao receberem infusão de frescor, tendem a causar maior impacto no restante do corpo. Nuca, pulsos, atrás das orelhas, dobras dos cotovelos, atrás dos joelhos, são áreas indicadas para brincadeiras com cubos de gelo. Curiosamente, também funcionam bem para a aplicação de fragrâncias caras.

[4] Há um smartphone quebrado sobre minha mesa. Ele não me pertence e não sei o que fazer com ele, mas devo fazer algo.

[5] Por favor, esqueçam as fotografias, do contrário permaneceremos nesse ponto até a próxima revolução tecnológica.

[6] “Lá por olhar para ti

Não julgues que é por gostar.

Eu gosto muito do sol,

E nem o posso fitar.”

[7] “L’État c’est moi”, dizem que foi Luiz XIV que disse, certamente antes de morrer de gangrena.

[8] Quando criança, com apenas um aparelhos de televisor, bastante pequeno por sinal, e muitos olhos com gostos diversos, relativos às idades que variavam em saltos de três anos, estabelecíamos horários específicos para que cada um detivesse o controle. Obviamente essa instituição, como as demais que conheceríamos nos anos vindouros, estava fadada ao fracasso. Em pouco tempo o comércio tomou conta do controle e o domínio das 18h valia uma fatia de bolo, todo o período matutino poderia ser trocado por duas horas de um filme em horário nobre, ou ainda poderíamos embarcar em algum rearranjo bélico decorrente de inversões de programação alheias ao nosso conhecimento, pois as redes de televisão não se importavam conosco.

[9] Ainda desejo experimentar espetinho de grilo.

[10] Sentamo-nos nas últimas cadeiras vazias do ônibus. Coisa rara em épocas de individualismo massivo. Ela retirou o plug dos fones de ouvido do mp3 e as notas de “You’ll be in my heart” ecoaram pelo coletivo. Nossos olhares cruzaram-se imediatamente e o rubor recobriu suas maçãs sem maquiagem. Por um momento pensei: “Detesto Phil Collins!”.

[11] Sempre apreciei filmes de terror. Sentir meu coração pular pela boca de susto, caminhar imaginariamente pela noite escura sem saber quais mãos me aguardam, aqueles que estrangulam e esfaqueiam ou aquelas que acendem o lampião e salvam.

[12] Guarde todo o seu dinheiro sob o colchão e tente comprar uma jujuba daqui a vinte anos.

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