É estranho como a vida urbana jamais agrada aos especialistas. Os leigos se incomodam, mas como não são pagos para torcer a mente em resoluções eficientes, se refugiam em plataformas virtuais dispersivas ou gastam o fim de semana na árdua tarefa de tostar ao sol. Talvez a irritação mais justa esteja no acadêmico orgulhoso, incapaz de dosar o compromisso político da praça com o verdadeiro desejo por carros com ar-condicionado. As contradições do cenário urbano são espinhosas e escorregadias o bastante para serem atiradas ao limbo irrevogável da Sociologia.
Tocar a superfície ácida das teorias sobre urbanidade é um risco enfrentado por poucos. Propor saídas para suas contradições é ainda mais raro. Eis o grande mérito de “Intervenções Temporárias, Marcas Permanentes”, livro da arquiteta Adriana Sansão Fontes (Casa da Palavra, 2013): tentar um entendimento.
A autora pensa nos resquícios semânticos deixados nos espaços públicos por intervenções passageiras. Tais usos eventuais não se reduzem, aqui, ao artístico, mas estende-se para toda atividade de caráter não-permanente, não-cotidiano e não-comercial. De fato, a quebra de rotinas funcionais, a simultaneidade de modos de uso, o predomínio de conteúdos permutáveis e o individualismo de massa são características que tornam o “temporário” atrativo ao habitante da metrópole.
A preferência de Fontes pela intervenção temporária na análise das transições dos valores de convívio é não apenas cabível, mas aparenta ser um modo seguro de verificar possibilidades de cuidar da saúde comunitária na gambiarra metropolitana. No entanto, suas escolhas partem sempre do negativo, o que resulta no embate com problemas idealizados. A exclusão das ações cotidianas surge com o argumento pouco consistente de que nelas não existiria ruptura espaço-temporal para a relação intervenção-intenção transformadora. Pôr o cotidiano para escanteio é ignorar o sujeito citadino multiatarefado que existe em várias camadas, constantemente em fricção. Pensar intervenções em uma praça não é mais possível sem considerar conexões em rede e circulação de documentos de fonte inidentificável. Com celular em mãos, ruas em obra, greves e arte de rua, o cotidiano é todo transitório.
A autora move-se na “escala comunicativa” de Milton Santos. Isso tenciona o espaço mais para o seu uso que para sua projeção. Tal definição, aliada ao espaço coletivo de Solá-Morales, como lugar em que “a vida coletiva se desenvolve, representa e recorda, e que podem ser públicos e privados ao mesmo tempo”, confluiria com o objetivo de pensar a qualidade do espaço público. O esforço de planejamento se daria a partir da observação dos usos de espaços já determinados, para então conceber situações eventuais que abram margem para uma “amabilidade urbana”.
A metrópole está atada a programas funcionais que impem o desenvolvimento de ambientes de “intimidade, proteção, refúgio, centralidade e conforto”. O valor da intervenção temporária estaria na força disfuncional que permite o surgimento da interação positiva entre usuários, a “amabilidade urbana”. Festas populares, blocos de carnaval, pistas de skate improvisadas e a Arte contribuiriam para o surgimento do “espaço feliz”, do qual Bachelard fala em “Poética do Espaço”. Porém, com as definições e objetivos dados acima, é justo escolher a via de intervenções temporárias supostamente não-comerciais e guiar o empenho teórico para a, talvez irreal, “amabilidade urbana”?
Fontes parece interessada em demonstrar possibilidades espaciais de um conceito social bastante inefável. Para isso, faz uso, desde o início, de diagramas subsequentes às explanações. O esquema referente ao seu principal conceito diz: “amabilidade urbana como articulação das dimensões física, temporal e social.” Mas, a falta de definição das dimensões a serem articuladas é um problema não solucionado, embora seja esboçado nos estudos de caso.
O livro é dividido em 4 blocos. No primeiro, são apresentadas as teorias de base e efetuadas as conexões com uma constelação de 15 casos “exemplares”. Nos blocos seguintes, divididos em Apropriações espontâneas, Intervenções de arte pública e Festas locais, a autora emprega os conceitos apresentados em casos das cidades de Rio de Janeiro, Barcelona e Girona.
Entre o “urbanismo cotidiano” de Margareth Crowford e os “espaços eventuais” de Sabaté, Frenchman e Schuster, Fontes prefere o segundo. Tal posição encaixa-se na ideia de Giovanni La Varra, da cidade como um livro cheio de post-it, onde ações acabadas deixam marcas. Terminamos soterrados por perguntas. O temporário serve somente ao deixar marcas permanentes? A guerra santa contra o individualismo não nos atiraria num mar de conflitos de cortiço, mais pessoais que coletivos? Queremos uma família urbana no “espaço feliz”, quando nem sabemos mais o que é família? Afinal, não somos suficientemente eventuais para dispensarmos uma amabilidade funcional?
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