De 30 em 30
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Fio solto, trinta tempo. Ilustração de Rodrigo Hipólito. Fundo azul claro com busto de mulher branca de cabelos longos arroxeados com os braços para trás, usando óculos redondos de lentes vermelhas com números e ponteiros nas lentes.
Texto de Fabiana Pedroni.
Quando se cresce em uma família de contadores, assim como em uma família de médicos e engenheiros, os filhos tendem a seguir a tradição profissional já trilhada. Contudo, já que em toda família tradicional a maior tradição é haver ao menos uma anormalidade, a continuada questão “O que você quer ser quando crescer?” podia não ser seguida de uma resposta adequada (ou como dizia meu amigo Momo, uma resposta decet). E assim minha resposta mais imediata, a contragosto, foi “Mamãe, eu quero ser contadora de tempo”. Já estava fadada à falência. Eu via isso em seus olhos lacrimejantes a cada vez que reafirmava minha decisão. Passei anos de minha infância amadurecendo a ideia, convencendo-a de que a profissão precisava de especialização, de pessoas que compreendessem o tempo cronometradamente de modo tão rápido que nem mesmo o tempo percebesse a presença para a tal maldita rasteira não ser concretizada. Ainda não sei se a convenci. Apenas tenho a total certeza de que minhas convicções foram suficientes para minha irmã. Desvirtuou meus argumentos e tornou-se uma grande literária, que faz do tempo um campo de contos. Compreende essa ideia? Parece um tanto absurdo ela achar que assim estaríamos na mesma profissão. Um complexo que precisa de tratamento.
Em alguns momentos milimetricamente específicos quase me convenceram de que minha ideia profissional na família de contadores podia ser um fiasco. Ladainhas sobre a definição de tempo, o uso de citações descontextualizadas de filósofos e muitos outros artifícios podiam mascarar a real importância da função. Teriam me convencido, mas o cronômetro foi disparado.
Foi um comando simples: Conte até 30 e avise. Se parto do 32 será até 62, mas meus minutos infelizmente param no 60, portanto, conte até 30, mas anuncie no 2. Foi assim que pensei. No 02 digo que são 30. Lembro-me de ter visto o 10, mas só de relance. Aquele 10 acima do 32, então 42, e não 08 acima do 02, que seria 72. Entre o 10 e o 14 foi um passo tão galopante que Conde de Monte Cristo exigiria nada menos de seu intendente a compra de todos os passos e crinas deste maravilhoso animal. Daí que entre a escuta e a lembrança do Conde, de uma paixão já guardada na prateleira, veio a contagem catalográfica e a dúvida sobre o espaço que o Conde ocupa. Certamente algo próximo do 08, que é muito próximo do 10 e do 02. Opa, foi nessa hora que me lembrei do 02. Que é 30! E antes mesmo de pensar no “É 30!!” em sons destruidores de Ionesco em clima de futebol da quarta-feira (isso é realmente possível? a cantora careca concordaria que sim), tão rápido quanto os cavalos do Conde, veio o aviso. “Preciso que acelere o tempo.” Não se preocupe, está tudo sob controle. Foi, claro, o que eu, como excelente contadora, pensei, mas, já eram 10. Agora sim, o 10 acima da soma dos 32 ao 30, que é 72. Um pequeno descuido, temos 10 de diferença, nada que um fuso horário não perdoasse. “São 30”. Tempo contado. Novamente entre a estranha escuta, a memória e o desejo de dizer “Mamãe, já podemos iniciar meu INSS”, me pedem um novo número. Mais 30. Se partimos do 32, somamos 30, que deu 62, que é 02, e alcançamos o 72, que é 12, e agora somamos 30, paramos então no 102, que é… 42. Ok, aos 42 eu digo “60”. Correto?. Não precisava mais ser dito, era apenas a contagem. Não seria anunciado. E o 30 passou, como se passaram os 02, os 10, os 72, os 102, os 42 e outro 10 que não me lembro bem, mas acho que foi de fuso. O rapaz apareceu, não se importou com minhas anotações efusivas de somas no bloco, porque era preciso guardar, e ele fez seu próprio trabalho. Despregou, soltou, amarrou, guardou e se retirou em silêncio. Deu 42, que era 102, e mais 20, finalizamos a contagem do tempo. Só era preciso avisar que o silêncio retornasse, porque mais um fio ficou solto. Fiz minha última anotação: “mostrar gráfico para mamãe” e voltei, feliz, contando os números, na esperança de que coincidissem com os passos até a mesa de cabeceira da minha mãe, onde ela guarda sua calculadora.
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