Minha maldade e minha preguiça

 

– Ela está morta.

– Uma conclusão razoável. Agora tentarão imputar culpa. É quando começa a longa parte concernente à ignorância.

(Conversas durante o chá da madrugada)

 

Sempre que fico mais de dezesseis minutos a observar a movimentação de nuvens de chuva sou obrigado a reconsiderar a ideia de não ser meteorologista. Mas, meteorologistas provavelmente não observam as nuvens. Eles devem observar gráficos numa tela ou acompanhar relatórios chatos com “imagens de satélite” que mais parecem esboços de uma criança no ultrassom.

Nenhuma profissão lhe permite apenas observar. Sempre chega o momento em que lhe pedem que desfaça o trabalho do outro ou algo pior, que seja uma pessoa boa. Há uma enorme confusão no mundo dos mercados e não faço a mais vaga ideia de em qual momento da longa decadência humana isso teve início. Por alguma razão, que talvez pertença aos mistérios maçônicos ou as rimas d’A canção de amor de Šu-Sin, ser uma pessoa boa tornou-se sinônimo de ser uma pessoa produtiva.

Essa lógica, certamente, desconsidera as variações de legalidade entre nações e grupos independentes. Conheci um rapaz numa das madrugadas do inferninho próximo à rodoviária que não possuía nação. Na prática, o rapaz jamais foi registrado e nem mesmo havia por onde puxar de memória a posição geográfica de seu maldito nascimento. Essa é uma condição rara (ou não) e bastante apreciada pelos amantes da sonegação e desejosos de total liberdade para os serviços terceirizados.

"Passagem encoberta", 2016.

“Passagem encoberta”, 2016.

A produtividade daquele menino era mesmo impressionante. Certamente suas funções jamais lhe confeririam uma boa colocação no ranking das pessoas boas. Se há alguma lição que extirpei desse fugaz contato é que as pessoas boas são as que mais precisam da produtividade das pessoas más. A partir de tal aprendizado, admito que se tornou impraticável conceber uma situação, mesmo ficcional, na qual uma pessoa má recorra a uma pessoa boa. [1] O contrário, por ser deveras frequente, me apresenta outros detalhes óbvios dessa espécie de relação. Quando uma pessoa boa recorre a uma pessoa má para que realize um serviço que considera impróprio para uma pessoa boa, a pessoa boa crê praticar uma ação que indiretamente resultará em algo bom e produtivo. Num sentido diametralmente oposto, quando uma pessoa má realiza um ato mau, como prestação de serviço ou não, sua intenção é realizar algo mau. Não há, no caso da pessoa má, a crença em segundas intenções que sejam avessas as primeiras. [2]

O que consegui retirar dessa última sentença ainda justifica meu receio frente às pessoas boas, assim como meu empenho em evitá-las. Imagine que é bastante sofrível trabalhar em tais condições. Por sorte, sempre existe um caminho do meio. No caso do atrito entre a produtividade boa e a produtividade má, a ficção novamente me salva. Porém, não descrevo tal caminho como qualquer salvação generalista ou professável para além das fronteiras da ação individual por uma simples razão: mentir de verdade é uma qualidade de poucos.

[1] Há uma possibilidade estranha de que isso aconteça e felizmente ela pode ser exemplificada neste momento. Essa possibilidade diz respeito ao pedido de negação ou abandono. Faço, nesta nota, tal pedido. Caso você não tenha construído um perfil minimamente nítido de uma “pessoa boa” e de uma “pessoa má” até este ponto do texto, peço, encarecidamente, que abandone a leitura. O seu abandono evitará que se desgaste e também o risco de que me atormente com a crença num frutífero diálogo entre nós.

[2] Essa conclusão nos leva ao embate entre sinceridade própria (parente do amor próprio) e sinceridade social (parente do compromisso social), mas seria estupidez além da conta para um só texto.

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