[resenha] Aquele Clássico Romântico

ARGAN, Giulio Carlo. Clássico e Romântico. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

O livro “Arte Moderna”, de G. C. Argan, possui, para a academia brasileira, o peso de uma base sólida poucas vazes dispensada por docentes e discentes. Apesar de sua composição por ensaios curtos, em muitos momentos o texto toma os mesmos ares enciclopédicos de volumes como os de Ernst H. J. Gombrich e Horst W. Janson e Anthony F. Janson. Considera-se ainda que, na medida em que os textos aproxima-se das transformações ocorridas no cenário das artes nas décadas de 1960-70 o olhar crítico e agudo de Argan perde parte considerável de sua profundidade. No lado oposto desses conteúdos, ao apresentar sua tese sobre a dualidade do mundo europeu em “Clássico e Romântico”, ensaio que abre o volume, o ex-prefeito de Roma presenteia o leitor com uma síntese de difícil suplantação até os dias de hoje.

Pela caracterização inicial dada por Argan, a Europa poderia ser separada por dois modos de pensar o Mundo, o Clássico e o Romântico. Embora o segundo tenha se evidenciado na passagem do século XVIII para o século XIX e represente para muitos estudiosos a nomenclatura mais adequada para um período específico com representantes nomeados e já reconhecidos, a visão que nos dá Argan permite estender o Romântico pela construção do modo de ser europeu.

Basileu Gomes Menezes, Fotograma criado a partir da obra A Dança, de Henri Matisse, 2009

Basileu Gomes Menezes, Fotograma criado a partir da obra A Dança, de Henri Matisse, 2009

 

De imediato, duas separações possíveis nos são indicadas. Geograficamente o Mediterrâneo representaria o Clássico e o Norte, Flandres e Germânia representariam o Romântico. Cronologicamente a Antiguidade e o Renascimento são clássicos e o Românico e o Gótico são românticos.

Tal distinção se faria a partir da substituição dos tratados renascentistas pela Estética e a filosofia da arte no século XVIII. É justo apontar que Argan não se dispõe a posicionar o anticlássico maneirista nesse palco dúbio. Ainda assim, com alguma liberdade, podemos aceitar que duas Europas se formam numa disputa jamais resolvida entre os ideais e a ordem empregados pelo Império Romano e as ambiguidade e variedade culturais do restante dos povos do continente e das ilhas nórdicas.

É justo também ressaltar que somente no século XVIII a tratadística clássica abraçada pela renascença pode ser tirada de cena sem que se gere um vazio insustentável. O que era um vazio no maneirismo torna-se, no século XVIII, uma forma aparentemente de encaixe aritmético para a Estética. Ancorada no porto da contemplação, a arte não seria mais um “meio” para conhecer ou transcender, mas seria o próprio conhecimento e a própria experiência intraduzíveis. Nesse sentido o trabalho com a imagem, a forma, a letra e o som não se submeteria, de antemão, a quaisquer outras instituições que não ao seu próprio sistema de valores e as suas necessidades. O século XVIII promoveria uma jornada da técnica e da mímeses clássicas para a intencionalidade e a poética romântica. A isso nós chamaríamos de autonomia da arte, isto é, a experiência poética seria seu próprio fim.

Deslocada de suas funções a arte passa a habitar um território de dúvidas quanto ao que poderia ou não poderia representar para uma sociedade florescente de revoluções. Qual seria então o lugar da arte na sociedade e qual seria a responsabilidade do artista? Grandes poderes trazem grandes…

Se responder a pergunta parece ser a aceitação de um risco desnecessário ou um empreendimento com poucas possibilidades de sucesso, escamotear a dúvida com a apresentação de outras saídas pode ter sido o melhor caminho. Argan é capaz de reconhecer e dispor esse desvio tomado diante da deslocalização social da arte na segunda metade do século XVIII em uma afirmação simples: “A arte romântica é a que implica uma tomada de posição frente à história da arte.” (p. 12).

Podemos depreender de tal afirmação que a natureza é atirada pela Estética para uma realidade bem distinta daquela que habitava em Grécia e em Roma. A natureza surge para o romantismo como um Outro, mas não seria mais o parâmetro para a construção artificial. O artifício dominaria como modelo e os avanços tecnológicos seriam o catalisador do reposicionamento do fazer artístico.

Torna-se então necessário delimitar esse novo modo de encarar a natureza por parte não apenas daqueles que produziam o objeto contemplativo, mas também para todo o europeu que respirava os humores do seu tempo. Ao pensar sobre a relação entre natureza e criação na metade do século XVIII até a metade do século XIX as palavras Pitoresco e Sublime ganham força;

Para o Pitoresco, a natureza e o humano artificioso parecem possuir uma relação de simetria, uma relação agradável e positivada, uma relação boa e bela. Sob essa ótica a paisagem estaria dada, o ser humano nela interferiria e ela não deixaria de ser natureza por isso. Já para o Sublime, a natureza é assustadora e tende a expulsar o humano, que resiste, mesmo no temor. Teríamos então uma relação de atrito e nessa relação, ou o ser humano aceitaria o desafio ou se tornaria um “Deus exilado” do Outro.

Com essa distinção em mente poderíamos pensar em outra dupla conceitual mais funcional para designarmos conjuntos de trabalhos, artistas e ideologias. Sem criar uma amarração por paralelismos, Argan concebe duas linhas possíveis de serem assimiladas por parâmetros estilísticos.

 “Neoclassicismo Histórico”: princípios de ordenação e do “belo construído”. Nesse sentido os urbanistas pensariam a cidade para o usufruto da população e, de modo geral, os artifícios promoveriam a valorização do projeto (traçado) intelectual baseado na observação de modelos ideais.

 “Romantismo Histórico”: do pathos ao ethos. O neogótico surgiria, nessa linha, como uma ação voltada para a nação, ou a comunidade. Simultaneamente, a experiência poética apareceria como individual. Com essas duas posturas aparentemente estranhas, mas nada dissociadas, o avanço industrial não deveria ser deixado nas mãos dos burgueses aculturados. É nessa insegurança compromissada e meio desesperançada que as disputas românticas ocorrem.

Enquanto Ingres e Delacroix se embatem entre seu idealismo intelectual clássico e seu idealismo passional romântico, Gericault já apontava para o embate Ideal x Real, do qual brotaria Courbet. Embora seja um raciocínio arriscado, por gerar uma sensação de segurança quanto à construção histórica da arte, o discurso de Argan em “Clássico e Romântico” não pode ser posto de lado sem deixar um buraco localizado bem na entrada da nossa residência acadêmica.

.

.

.

.

.

.

.

.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s