Texto de Fabiana Pedroni.
Há dias em que as memórias nos acompanham como fantasmas. Você acorda pelo lado errado da cama, encontra pés já desconhecidos e não sabe quais são suas roupas, pois já não reconhece o próprio guarda-roupa. Na esquerda ou na direita? Quando foi que tudo tomou outra direção? E você segue, continua as tarefas como se não sentisse presenças fantasmáticas. Mesmo aquele prato vermelho, que você amava tanto, tornou-se memória depois de ser empacotado. Pacotes, caixas, cheiros, escritas, flores de canudos, anéis, colheres, pratos e xícaras, sussurros.
Você segue. Continua a caminhar no sentido horário e, dentre tantas músicas, uma será um Last Goodbye (The Kills) ou uma House of memory (Merle Haggard).
Se havia algo de estranho naquele dia, era a proximidade de uma memória. Ela parecia tão carnuda que não era fantasma, nem sintoma. Não havia como ter um lado errado da cama para se levantar. Não havia lados. Sua casa era tão pequena que o único modo de se levantar era por um salto direto para o estreito corredor. Saltava-se de uma cama dura para equilibrar o rosto entre paredes sufocantes e pegajosas. Desenvolvera estranhas habilidades físicas para não encostar o corpo na própria casa. Limpava o que era possível. Não se remove décadas de corpos. Era provisório. Sempre era.
Diferente de outros dias, não se questionou por que havia tantas paredes. Poderia ter questionado, mas precisou de mais concentração para o salto. Quando estava no ar, sentiu um calafrio vindo da cama. Não quis olhar para ela, teria que voltar o corpo e poderia encostar Naquilo. Era um dia de negativas – também não queria dar nomes às marcas do corredor. Incomodava-se com o quase-dever de comprar removedores que prometiam eliminar manchas com nomes sem esfregar. Enquanto se equilibrava e tentava esquecer o calafrio nos pés, observou que muitos Daquilo começavam a se mexer. As marcas gordurosas tomavam corpo. Um centímetro de aproximação dos olhos e nariz equivalia a dois centímetros de massa para fora da parede. Era apenas um estreito corredor, com piso que um dia foi de taco. Corredores, mesmo esverdeados, mesmo sufocantes, não podiam ter ou ser corpos, não novamente. Era possível um cocô de pombo cair duas vezes no mesmo lugar, com a mesma inclinação, com o mesmo estrago?
Na tentação do toque, lembrou-se de muitos filmes de sucesso de bilheteria, e estúpidos, em que renomados cientistas encostam-se a objetos não identificáveis, sem luvas, e espalham a praga devastadora da humanidade. Tolice. Só siga o compasso [Expressão que para ele também não fazia sentido, o linear em circularidades. Relógios também são tolos]. Chegou, receoso, ao final do corredor, em dois passos e meio. Pensou em virar à direita e tomar seu café da manhã. Desistiu assim que lembrou qual era o lugar de maiores ausências, depois do quarto. Sem xícaras, sem nada que pudesse fazer. Puxou o casaco e saiu de casa. Não conversaria com ninguém durante o dia. Não precisava escovar os dentes, nem pentear os cabelos. Só precisava pegar coisas num lugar e deixar em outro. Tirar de uma caixa e colocar em outra. Depois pensaria nos corpos. Tudo o que fez durante o dia parecia rememorar algo que ele expulsara da memória. Era uma impressão ou o corredor dele respirava? Era uma casa peculiar, sem dúvida a mais estreita que já ocupou, mas, nenhum corredor pode tornar-se carnudo – repetia essa afirmativa para que ela, sim, se fixasse na memória. Tudo o que dizemos ter vivo na memória, torna-se uma verdade irrevogável. Depois da última experiência, certificou-se de que nenhum ser “estranho” teria morado ali, ao menos nenhum noticiado. Não poderia ser humano, nem de porco. Reconheceria os cheiros.
Sentou-se no mesmo banco do bar do Zé, pediu o prato do dia, como todo dia, mas ainda era diferente. Estava incomodado. Ainda era possível se incomodar. Matou a barata com tanta força que sentiu o líquido encontrar sua meia pela costura do tênis surrado. Precisava voltar para casa, não havia tempo para comer. Pediu ao Zé para cancelar o do dia e fez as últimas entregas. Chegou à porta da sua casa suado, ofegante e um tanto azul. O tapete estava no mesmo lugar. A porta estava gelada; a maçaneta também. Passou a mão esquerda de cima a baixo no marco da porta, como se procurasse uma ranhura de diferença. Com a mão direita segurava firmemente a maçaneta. A visão daquela Carne o deixou na defensiva. Sobreviveria, tinha certeza. Fez silêncio. Girou lentamente a chave e abriu a porta bruscamente. Nada. Não poderia relaxar, essa é a hora em que o personagem morre. Levou o corpo ao chão [como Indiana Jones, exceto pela falta de carisma], e farejou um rastro estranho, doce. Não se pode tranquilizar com cheiros doces. Na medida em que se lembrava das reportagens sobre a nova droga do século, tencionou os músculos das pernas e dos braços. Seguiu o rastro que passava da cozinha para o corredor. Uma pequena poça de líquido, perto do primeiro taco ausente. Relaxou o ombro esquerdo. Já viu poça similar. Ergueu os olhos para Aquilo e Aquilo estava plano. Um pouco mais verde, mas já não parecia uma ode aos frisos do Parthenon. Aproximou o nariz. Cheiro habitual. Ruim, mas familiar. Conseguiu erguer o corpo e sentir-se mais à vontade. Alongou os ombros. Olhou para trás e a porta continuava aberta. Olhou para o final do corredor, a meio metro do seu corpo, e sentiu confiança para voltar e fechar a porta de entrada, ou de saída de emergência. Quando torceu o corpo, sentiu um calafrio – era o aviso da morte, e ela vinha sem luvas. Um som chegou alto em seus ouvidos – You want a warning, You got a warning. Não precisava de luvas. O aviso estava dado. Correu para fora da casa em uma pressa desengonçada, daquela que não se nota quantos passos foram dados. Fechou a porta atrás de si.
Com as mãos sobre o peito, ergueu o corpo e olhou a casa pelo lado de fora. Ainda estava vivo! Ou ainda estava viva? A música seguia, mesmo que distante. Não podia recuar. Esperou o corpo normalizar e tornar-se razoavelmente racional. Ele queria entrar, mas o cachorro do vizinho insistia em trepar nas plantas da calçada e sussurrar barulhos desconcertantes. “Seja racional”. Entrou na casa aos pulos e gritos, já que o silêncio não funcionou da primeira vez. Passou tão rápido pelo corredor que não pode perceber se tinha corpo ou não, saltou na cama e novamente, no ar, teve uma impressão. A cama estava quente e doce. Mizu tomava um chá, ao som de The Kills. Quantas vezes ele pediu para que Mizu não comesse ou bebesse na cama. Quantas vezes…
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Misu com caneca de cerâmica sobre a cama. Hipopótamo de pelúcia azul, sentado na cama, com uma das pernas cruzadas e um dos braços próximo de uma caneca de cerâmica que forma um círculo branco no centro da imagem.
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